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(Artigo) Anarquismo Negro, por Ashanti Alston

Dando continuidade a série de reflexões sobre Anarquismo Negro, compilação organizada pela Rede de Informações Anarquistas atendendo a necessidade de seguir descolonizando o anarquismo, reproduzimos aqui a tradução de um texto escrito por Ashanti Alston, ex-Panteras Negras. Agradecemos a Mariana Santos, do Coletivo Das Lutas, pela tradução, que contou com apoio de Caralâmpio Trillas. O texto a seguir foi originalmente publicado no site do Das Lutas. Os outros dois textos da série podem ser encontrados aqui (relato da greve na UFRJ sob a perspectiva de um coletivo negro) e aqui (tradução de um texto de outro ex-Panteras Negras, Lorenzo Kom’boa Ervin).


ashantiMuitos anarquistas clássicos consideravam o anarquismo como um corpo de verdades elementares que apenas precisavam ser reveladas ao mundo e acreditavam que as pessoas se tornariam anarquistas uma vez expostas à lógica irresistível da ideia. Esta é uma das razões pelas quais eles tendiam a ser tão didáticos.

Felizmente a prática vivida do movimento anarquista é muito mais rica do que isso. Poucos “convertem-se” de tal forma: é muito mais comum que as pessoas abracem o anarquismo lentamente, à medida que descobrem que é relevante para a sua experiência de vida e permeável a suas próprias percepções e preocupações.

A riqueza da tradição anarquista está justamente na longa história de encontros entre dissidentes não-anarquistas e o quadro anarquista que herdamos do final do Século XIX e início do Século XX. O anarquismo tem crescido através de tais encontros e agora enfrenta contradições sociais que antes eram marginais ao movimento. Por exemplo, há um século atrás, a luta contra o patriarcado era uma preocupação relativamente menor para a maioria dos anarquistas, mas hoje é amplamente aceita como uma parte integrante da nossa luta contra a dominação.

Foi somente nos últimos 10 ou 15 anos que os anarquistas na América do Norte começaram a explorar à sério o que significa desenvolver um anarquismo que tanto pode combater a supremacia branca como articular uma visão positiva da diversidade cultural e de intercâmbio cultural. Camaradas estão trabalhando duro para identificar os referenciais históricos de tal tarefa, como o nosso movimento deve mudar para abraçá-lo, e como um anarquismo verdadeiramente antirracista pode parecer.

O seguinte material, de Ashanti Alston, membro do conselho do IAS, explora algumas destas questões. Alston, que era membro do Partido dos Panteras Negras e do Exército Negro de Libertação, descreve o(s) seu(s) encontro(s) com o anarquismo (que começou quando ele foi preso por atividades relacionadas com o Exército Negro de Libertação). Ele toca em algumas das limitações das visões mais antigas do anarquismo, a relevância contemporânea do anarquismo para os negros, e alguns dos princípios necessários para construir um novo movimento revolucionário.

Esta é uma transcrição editada de uma palestra dada por Alston em 24 de outubro de 2003 no Hunter College, em Nova York. O evento foi organizado pelo Instituto de Estudos Anarquistas e co-patrocinado pelo Movimento Estudantil de Ação Libertadora, da Universidade de Cidade de Nova York ~ Chuck Morse


Embora o Partido dos Panteras Negras fosse muito hierárquico, eu aprendi muito com a minha experiência na organização. Acima de tudo, nos Panteras me marcou a necessidade de aprender com as lutas de outros povos. Eu acho que tenho feito isso e essa é uma das razões pelas quais sou um anarquista hoje. Afinal, quando velhas estratégias não funcionam, precisamos olhar para outras formas de fazer as coisas, para ver se podemos nos descolar e avançar novamente. Nos Panteras, absorvemos muita coisa de nacionalistas, marxistas-leninistas, e de outros como eles, mas suas abordagens para a mudança social tinham problemas significativos e me aprofundei no anarquismo para ver se haviam outras maneiras de pensar sobre como fazer uma revolução.

Eu aprendi sobre anarquismo através de cartas e de literatura enviadas para mim, enquanto estava em várias prisões por todo o país. No começo eu não queria ler qualquer material que recebi – parecia que o anarquismo era apenas sobre o caos e todo mundo fazendo suas próprias coisas – e por muito tempo eu o ignorei. Mas houve momentos – quando eu estava na solitária – que não tinha mais nada para ler e, para fugir do tédio, finalmente comecei a meter a mão no tema (apesar de tudo o que eu tinha ouvido falar sobre o anarquismo até o momento). Fiquei realmente muito surpreso ao encontrar análises de lutas populares, culturas populares e formas de organizações populares – aquilo fez muito sentido para mim.

Estas análises me ajudaram a ver coisas importantes sobre a minha experiência nos Panteras que não estavam claras para mim antes. Por exemplo, eu pensei que havia um problema com a minha admiração por pessoas como Huey P. Newton, Bobby Seal, e Eldridge Cleaver e com o fato de que eu os tinha colocado em um pedestal. Afinal de contas, o que isso diz sobre você, se você permitir que alguém se estabeleça como seu líder e tome todas as suas decisões por você? O anarquismo me ajudou a ver que você, como um indivíduo, deve ser respeitado e que ninguém é suficientemente importante para pensar por você. Mesmo que nós achemos que Huey P. Newton ou Eldridge Cleaver são os piores revolucionários do mundo, eu deveria me ver como o pior revolucionário, exatamente como eles. Mesmo que eu fosse jovem, tenho um cérebro. Eu posso pensar. Eu posso tomar decisões.

Eu pensei em tudo isso enquanto estava na prisão e me vi dizendo: “Cara, nós realmente nos colocamos de uma forma que éramos obrigados a criar problemas e produzir cismas. Fomos obrigados a seguir programas sem pensar”. A história do Partido dos Panteras Negras, tão incrível como é, tem esses esqueletos. A menor pessoa no totem deveria ser um trabalhador e o que estava na parte superior era quem tinha o cérebro. Mas na prisão eu aprendi que eu poderia ter tomado algumas dessas decisões sozinho e que as pessoas ao meu redor poderiam ter tomado essas mesmas decisões. Embora eu tenha apreço por tudo o que os líderes do Partido dos Panteras Negras fizeram, eu comecei a ver que podemos fazer as coisas de forma diferente e, assim, extrair mais plenamente nossas próprias potencialidades e nos encaminharmos ainda mais para uma autodeterminação real. Embora não tenha sido fácil no início, insisti com o material anarquista e descobri que eu não poderia colocá-lo de lado, uma vez que começou a me dar vislumbres. Eu escrevi para pessoas em Detroit e no Canadá, que tinham me enviado a literatura, e pedi para que me enviassem mais.

No entanto, nada do que eu recebi tratava de pessoas negras ou latinas. Talvez houvesse discussões ocasionais sobre a Revolução Mexicana, mas nada falava de nós, aqui, nos Estados Unidos. Houve uma ênfase esmagadora sobre aqueles que se tornaram os anarquistas fundadores – Bakunin, Kropotkin, e alguns outros – mas estes valores europeus, que abordavam as lutas europeias, realmente não dialogavam comigo.

Eu tentei descobrir como isso se aplicava a mim. Comecei a olhar para a História Negra de novo, para a História Africana, e as histórias e lutas das outras pessoas de cor. Eu encontrei muitos exemplos de práticas anarquistas nas sociedades não europeias, desde os tempos mais antigos até o presente. Isso foi muito importante para mim: eu precisava saber que não eram apenas os europeus que poderiam funcionar de uma forma antiautoritária, mas que todos nós podemos.

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“Pantera: poder para o povo… antes e agora.”

Fui encorajado por coisas que eu encontrei na África – não tanto pelas antigas formas que chamamos de tribos – mas por lutas modernas que ocorreram no Zimbabwe, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ainda que fossem liderados por organizações vanguardistas, eu vi que as pessoas estavam construindo comunidades democráticas radicais na base. Pela primeira vez, nesses contextos coloniais, os povos africanos estavam criando o que era chamado pelos angolanos de “poder popular”. Este poder popular tomou uma forma muito antiautoritária: as pessoas não estavam só conduzindo suas vidas, mas também as transformando enquanto lutavam contra qualquer poder estrangeiro que os oprimia. No entanto, em cada uma dessas lutas de libertação, novas estruturas repressivas foram impostas logo que as pessoas chegavam próximo à libertação: a liderança estava obcecada com idéias de governança, em estabelecer um exército permanente, em controlar as pessoas depois que os opressores forem expulsos. Uma vez que a tão apregoada vitória foi conseguida, o povo – que havia lutado durante anos contra os seus opressores  – foi desarmado e, em vez de existir um poder popular real, um novo partido foi instalado no comando do Estado. Assim, não houve reais revoluções ou a verdadeira libertação em Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Zimbabwe, porque eles simplesmente substituíram um opressor estrangeiro por um opressor nativo.

Então, aqui estou eu, nos Estados Unidos, lutando pela libertação negra e me perguntando: como é que podemos evitar situações como essa? O anarquismo me deu uma maneira de responder a esta questão, insistindo que nós ponhamos no lugar, como fazemos em nossa luta agora, as estruturas de tomada de decisões e de fazer coisas que continuamente tragam mais pessoas para o processo, e não apenas deixar a maioria das pessoas “iluminadas” tomarem decisões por todos os outros. O próprio povo tem que criar estruturas em que articulem sua própria voz e em que tomem suas próprias decisões. Eu não recebi isso de outras ideologias: eu recebi isso do anarquismo.

Também comecei a ver, na prática, que as estruturas anarquistas de tomada de decisão são possíveis. Por exemplo, nos protestos contra a Convenção Nacional Republicana, em agosto de 2000, eu vi os grupos normalmente excluídos – pessoas de cor, mulheres e gays – participarem ativamente de todos os aspectos da mobilização. Nós não permitimos que pequenos grupos tomassem decisões por outros e, apesar de as pessoas terem diferenças, elas eram vistas como boas e benéficas. Era novo para mim, depois da minha experiência nos Panteras, estar em uma situação onde as pessoas não estão tentando disputar o mesmo lugar e realmente abraçam a tentativa de resolver nossos interesses por vezes contraditórios. Isso me deu algumas idéias sobre como o anarquismo pode ser aplicado.

Também me fez pensar: se pode ser aplicado para os diversos grupos no protesto contra a Convenção, poderia eu, como um ativista negro, aplicar essas coisas na comunidade negra?

Algumas de nossas idéias sobre quem somos como povo bloqueiam nossas lutas. Por exemplo, a comunidade negra é muitas vezes considerada um grupo monolítico, mas na verdade é uma comunidade de comunidades com muitos interesses diferentes. Penso em ser negro não tanto como uma categoria étnica, mas como uma força de oposição ou como pedra de toque para ver as coisas de forma diferente. A cultura negra sempre foi opositora e tudo isso é a busca de caminhos para criativamente resistir à opressão aqui, no país mais racista do mundo. Então, quando eu falo de um Anarquismo Negro, não está tão ligado à cor da minha pele, mas quem eu sou como pessoa, como alguém que pode resistir, quem pode enxergar de uma forma diferente quando eu estou bloqueado e, assim, viver de forma diferente.

O que é importante para mim sobre o anarquismo é a sua insistência de que você nunca deve ficar preso em velhas e obsoletas abordagens e sempre deve tentar encontrar novas maneiras de ver as coisas, de sentir e de se organizar. No meu caso, eu apliquei pela primeira vez o anarquismo no início de 1990 em um coletivo que criamos para rodar o jornal dos Panteras Negras novamente. Eu ainda era um anarquista “no armário” neste momento. Eu ainda não estava pronto para sair e me declarar um anarquista, porque eu já sabia o que as pessoas iriam dizer e como eles iriam olhar para mim. Quem eles veriam quando digo “anarquista”? Eles veriam os anarquistas brancos, com todos aqueles cabelos engraçados, etc. e dizer “como diabos é que você vai se envolver com isso?”

Houve uma divisão neste coletivo: de um lado havia companheiros mais velhos que estavam tentando reinventar a roda e, por outro, eu e alguns outros que diziam: “Vamos ver o que podemos aprender com a experiência vinda dos Panteras e construir em cima dela e melhorá-la. Nós não podemos fazer as coisas da mesma maneira”. Enfatizamos a importância de uma perspectiva antissexista – uma velha questão dentro dos Panteras – mas do outro lado estava algo do tipo “eu não quero ouvir todas essas coisas feministas”. E nós dissemos: “Tudo bem se você não quer ouvir isso, mas queremos que as pessoas jovens ouçam, para que eles saibam sobre algumas das coisas que não funcionaram nos Panteras, para que eles saibam que nós tivemos algumas contradições internas que não poderíamos superar”. Nós tentamos forçar a questão, mas se tornou uma batalha e as discussões tornaram-se tão difíceis que uma separação ocorreu. Neste ponto, deixei o coletivo e comecei a trabalhar com grupos anarquistas e antiautoritários, que foram realmente os únicos a tentarem lidar de forma consistente com essas dinâmicas até o momento.

Uma das lições mais importantes que eu também aprendi com o anarquismo é que você precisa olhar para as coisas radicais que já fazemos e tentar incentivá-las. É por isso que eu acho que há muito potencial para o anarquismo na comunidade negra: muito do que já fazemos é anarquista e não envolve o Estado, a polícia ou os políticos. Nós tomamos conta um do outro, nós nos importamos com os filhos uns dos outros, nós vamos para o mercado uns para os outros, encontramos maneiras de proteger nossas comunidades. Até mesmo igrejas ainda fazem as coisas de uma forma muito comunal, até certo ponto. Eu aprendi que existem maneiras de ser radical sem ficar distribuindo literatura e dizendo às pessoas: “Aqui está o retrato da situação, se você enxergar isso, vai seguir automaticamente a nossa organização e se juntará à revolução”. Por exemplo, a participação é um tema muito importante para o anarquismo e também é muito importante na comunidade negra. Considere o jazz: é um dos melhores exemplos de uma prática radical existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de um ambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. Nossas comunidades podem ser da mesma forma. Podemos reunir todos os tipos de perspectivas de fazer música, de fazer revolução.

Como podemos nutrir cada ato de liberdade? Seja com as pessoas no trabalho ou as pessoas que passam o tempo na esquina, como podemos planejar e trabalhar juntos? Precisamos aprender com as diferentes lutas ao redor do mundo que não são baseadas em vanguardas. Há exemplos na Bolívia. Há os zapatistas. Há grupos no Senegal construindo centros sociais. Você realmente tem que olhar para as pessoas que estão tentando viver e não necessariamente tentando chegar com as idéias mais avançadas. Precisamos tirar a ênfase do abstrato e focar no que está acontecendo na base.

Como podemos construir com todas estas diferentes vertentes? Como podemos construir com os Rastas? Como podemos construir com as pessoas da Costa Oeste que ainda estão lutando contra o governo, por conta da mineração em terras indígenas? Como podemos construir com todos esses povos para começar a criar uma visão da América que seja para todos nós?

Pensamento de oposição e os riscos de ser oposição são necessários. Eu acho isso é muito importante neste momento e uma das razões pelas quais eu acho que o anarquismo tem muito potencial para nos ajudar a seguir em frente. E isso não é um pedido para aderirmos dogmaticamente aos fundadores da tradição, mas para estarmos abertos a tudo o que aumenta a nossa participação democrática, a nossa criatividade e nossa felicidade.

Acabamos de ter uma Conferência Anarquista de Pessoas de Cor em Detroit, de 03 a 05 de outubro. Cento e trinta pessoas vieram de todo o país. Foi ótimo para vermos nós mesmos e bem como o interesse das pessoas de cor de todo o Estados Unidos em busca de formas marginais de se pensar. Vimos que poderíamos nos tornar aquela voz em nossas comunidades, que diz: “Espere, talvez nós não precisemos nos organizar assim. Espere, a maneira que você está tratando as pessoas dentro da organização é opressiva. Espere, qual é a sua visão? Gostaria de ouvir a minha?”. Há uma necessidade para esses tipos de vozes dentro de nossas diversas comunidades. Não apenas as nossas comunidades de cor, mas em toda comunidade há uma necessidade de parar o avanço dos planos pré-fabricados e confiar que as pessoas podem descobrir coletivamente o que fazer com este mundo. Eu acho que nós temos a oportunidade de deixar de lado o que nós pensamos que seria a resposta e lutarmos juntos para explorar diferentes visões do futuro. Podemos trabalhar nisso. E não há uma resposta: temos de trabalhar com isso à medida que avançamos.

Embora queiramos lutar, vai ser muito difícil por causa dos problemas que herdamos deste império. Por exemplo, eu vi algumas lutas muito duras, emocionadas, em protestos contra a Convenção Nacional Republicana. Mas as pessoas se mantiveram bloqueadas, mesmo quem começou a chorar no processo. Não vamos superar algumas das nossas dinâmicas internas que nos mantiveram divididos, a menos que estejamos dispostos a passar por algumas lutas realmente difíceis. Esta é uma das outras razões pelas quais eu digo que não há uma resposta: só temos que passar por isso.

Nossas lutas aqui nos Estados Unidos afetam todos no mundo. As pessoas nas classes subalternas vão desempenhar um papel fundamental e a maneira como nos relacionamos com elas vai ser muito importante. Muitos de nós somos privilegiados o suficiente para ser capaz de evitar alguns dos desafios mais difíceis e vamos ter de abrir mão de parte desse privilégio, a fim de construir um novo movimento. O potencial está lá. Nós ainda podemos ganhar – e redefinir o que significa vencer – mas temos a oportunidade de promover uma visão mais rica da liberdade do que já tinha antes. Temos que estar dispostos a tentar.

Como um Pantera, e como alguém que passou à clandestinidade enquanto guerrilha urbana, pus a minha vida no limite. Eu assisti meus companheiros morrerem e passei a maior parte da minha vida adulta na prisão. Mas eu ainda acredito que podemos vencer. A luta é muito difícil e quando você cruza esse limite, você corre o risco de ir para a cadeia, ficar gravemente ferido, morto, e assistir seus companheiros ficando gravemente feridos e mortos. Isso não é uma imagem bonita, mas isso é o que acontece quando você luta contra um opressor enraizado. Estamos lutando e isso vai tornar tudo mais difícil para eles, mas a luta também vai ser difícil para nós.

É por isso que temos de encontrar maneiras de amar e apoiar uns aos outros através de tempos difíceis. É mais do que apenas acreditar que podemos vencer: precisamos ter estruturas consolidadas que possam nos ajudar a caminhar, quando sentirmos que não podemos dar mais nenhum passo. Acho que podemos mudar novamente se pudermos descobrir algumas dessas coisas. Este sistema tem que cair. Isso nos fere a cada dia e não podemos desistir. Temos que chegar lá. Temos que encontrar novas maneiras.

O anarquismo, se significa alguma coisa, significa estar aberto para o que quer que for preciso em nosso pensamento, em nossa vivência e nas nossas relações –  para vivermos plenamente e vencermos. De certa forma, eu acho que são a mesma coisa: viver a vida ao máximo é ganhar. É claro que vamos e devemos entrar em conflito com os nossos opressores e precisamos encontrar boas maneiras de fazê-lo. Lembre-se daqueles das classes subalternas, que são os mais afetados por isso. Eles podem ter diferentes perspectivas sobre como essa luta deve ser feita. Se nós não podemos encontrar caminhos para nos encontrarmos cara-a-cara afim de resolvermos essa situação, velhos fantasmas reaparecerão e nós voltaremos à mesma velha situação em que estivemos antes.

Vocês todos podem fazer isso. Você tem a visão. Você tem a criatividade. Não permitam que ninguém bloqueie isso.


De Perspectivas sobre a teoria anarquista, Primavera 2004 – Volume 8, número 1, do Instituto de Estudos Anarquistas

(Artigo) O anarquismo pode nos ajudar a salvar o mundo

 é um historiador britânico que no último dia 3 de julho publicou um artigo no jornal The Guardian, tradicional periódico progressista na Grã-Bretanha, a exemplo do extinto Jornal do Brasil. O autor argumento que depois da falência do socialismo de estado e do neoliberalismo ocidental é preciso voltar aos ideais anarquistas e aos ensinamentos de alguns dos seus teóricos, nomeadamente Peter Kropotkin. Reproduzimos a seguir uma tradução do artigo, que é mais uma prova da atualidade renovada – e da atração que continua a suscitar – do pensamento libertário.


O socialismo de estado falhou, tal como o de mercado. É preciso redescobrirmos o pensador anarquista Peter Kropotkin.

Por David Priestland

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O comediante Russell Brand

A peregrinação de fim de tarde de Ed Miliban (1) até ao apartamento de Russell Brand (2), dias antes do último acto eleitoral, foi vista pelos seus partidários como um golpe inteligente para atrair o voto da juventude e pelos seus críticos como uma tentativa embaraçosa de aproveitar o carisma do messias de Shoreditch (3). No entanto, nenhum dos pontos de vista traduz o seu real significado que é um sinal da profunda fraqueza da corrente dominante da social-democracia e dos seus desesperados esforços para cooptar as energias do elemento mais dinâmico da esquerda de hoje: o anarquismo. Na sua ânsia de ridicularizar as “divagações” de Brand, os comentaristas têm ignorado a sua forte identificação com a tradição da esquerda anarquista. De fato, entre as obras que ele recomendou aos seus seguidores há uma coleção de textos duma outra figura carismática, que viveu em Londres durante alguns períodos, o pai do comunismo anarquista: o príncipe Peter Kropotkin.

A comparação entre Kropotkin e Brand pode parecer forçada. Os antecedentes de Kropotkin, que foi o herdeiro de uma das maiores e mais antigas famílias aristocratas russas, estão muito distantes das origens humildes de Brand. Kropotkin era um erudito altamente qualificado, enquanto Brand – embora inegavelmente inteligente – tem desempenhado o papel de artista popular e de orador inspirado.

No entanto, como Brand, o exilado Kropotkin tornou-se uma figura popular em Londres, elogiado pela vanguarda artística e intelectual do fim do período vitoriano – de William Morris a Ford Madox Ford. Numa estranha antecipação do namoro Miliband-Brand, ele próprio recebeu o primeiro líder do Partido Trabalhista Keir Hardie na sua casa de Bromley. E, tal como as comparações satíricas que são feitas entre Brand e o filho de Deus, também Oscar Wilde descreveu Kropotkin como um “belo Cristo branco”.

Não é nenhuma surpresa que os sábios e profetas anarquistas estavam tão na moda tanto naquela época como agora. Na Europa, antes da primeira guerra mundial, as variantes do socialismo que colocavam a sua fé nas reformas sociais lideradas pelo Estado – a social-democracia e o marxismo-leninismo – ainda não tinham começado a eclipsar o seu concorrente anarquista. E agora que o otimismo estatizante acabou, uma esquerda revigorada pela crise atual do capitalismo global está à procura de alternativas mais adequadas à nossa era individualista.

Peter Kropotkin Alexeyevich, nascido em 1842, atingiu a maioridade em tempos conturbados. Humilhado pela derrota na guerra da Crimeia, em 1856, Alexander II decidiu fazer reformas na arcaica ordem aristocrática da Rússia, embora preservando os seus fundamentos, e a família Kropotkin era partidária do antigo sistema. Em jovem, Kropotkin foi treinado na academia militar de elite da Rússia, mas a sua capacidade intelectual fez com que fosse escolhido como pajem para a corte do czar. Depressa começou a desprezar o esnobismo obsessivo e cruel do antigo regime, identificando-se não com a nobreza, mas com os camponeses que tinham cuidado dele quando criança.

Esta aliança da empatia para com os pobres com o compromisso com a atividade intelectual, especialmente a nível da ciência, veio a definir a carreira de Kropotkin – fosse ao serviço do Estado czarista ou na realização da revolução anarquista. Enviado pelos militares para a Sibéria procurou melhorar a vida dos presos, ao mesmo tempo que conduziu expedições geográficas pioneiras. E uma vez no exílio, fora da Rússia (perseguido pela sua atividade revolucionária), dedicou-se a conciliar a sua indignação moral profunda pela desigualdade social com o seu amor pela ciência através do desenvolvimento de uma visão anarquista coerente – marcando-o para além do que tinham feito os seus predecessores anarquistas intelectualmente menos ambiciosos, Pierre -Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin .

A síntese do pensamento de  Kropotkin pode ser encontrada em dois dos mais importantes – e acessíveis – textos do anarquismo: “A Conquista do Pão” (1892) e “Campos, fábricas e oficinas” (1899). A sociedade, defendia ele, poderia ser organizada tendo como base as comunidades camponesas que viu na Sibéria, com a sua “organização fraternal semi-comunista”, livre da dominação seja do Estado, seja do mercado. E isso, insistia, não era mero saudosismo ou utopia, porque as novas tecnologias e a agricultura moderna tornariam tal desenvolvimento descentralizado altamente produtivo. Mas Kropotkin estava ciente, também, das necessidades do meio-ambiente, uma consciência que teve origem nas suas preocupações geográficas e científicas e é, por isso, justamente considerado um dos teóricos pioneiros das políticas verdes e ecológicas.

Ele também baseou a sua visão do anarquismo na ciência evolucionista. No livro “Apoio Mútuo“ (1902) defendeu que as comunidades fundadas na igualdade radical e na democracia participativa eram viáveis porque a natureza humana era cooperativa de uma forma inata. Ao contrário dos darwinistas sociais, como Herbert Spencer, que argumentavam que todas as formas de vida tinham evoluído através da “luta pela existência” e da concorrência entre organismos, Kropotkin insistiu que havia outro tipo de luta mais importante – entre os organismos e o meio ambiente. E nesta luta, a “ajuda mútua” era o meio mais eficaz encontrado para a sobrevivência.

Entre os anos de 1880 e 1920, a influência do anarquismo comunista de Kropotkin competiu com o marxismo mais estatista e ganhou muitos adeptos entre os intelectuais, camponeses e operários, especialmente no sul da Europa e nos Estados Unidos (incluindo os “Wobblies” – os trabalhadores industriais do mundo (4)). Na Ásia, o anarquismo impregnava a ideologia do Partido Comunista Chinês, e serviu de base às campanhas de desobediência civil indianas de Gandhi – embora este estivesse mais próximo do anarquismo mais religioso de Tolstói.

Mas as próprias lutas travadas pelos anarquistas acabariam por ser perdidas, em parte porque o seu compromisso com a participação democrática minou a sua capacidade de viabilizar organizações de massas estáveis e porque foram prejudicados pela violência defendida por alguns grupos anarquistas (contra a opinião de Kropotkin), o que provocou uma repressão estatal implacável. Porém, o seu destino ficou selado por uma mudança intelectual mais ampla, com o aumento do prestígio do papel dos Estados na sequência da guerra total – especialmente nas décadas de 1950 e 1960, quando quer o leste comunista e o ocidente capitalista apresentavam visões rivais de “modernização” liderada pelo Estado.

Atualmente, os Estados decaíram mais uma vez na estima popular, atingidos desde a década de 1970 pela crise da economia keynesiana e comunista, e pelo surgimento dos valores dos anos 60, que valorizam a auto-afirmação individual e a realização pessoal por cima da lealdade aos Estados-nação e a outras instituições centralizadas.

Este individualismo é particularmente forte entre as pessoas mais instruídas e entre os jovens, tal como era entre os boêmios da Inglaterra vitoriana. E não é nenhuma surpresa que o anarquismo se tenha tornado relevante novamente no espaço na esquerda nos últimos anos – desde os “anti-globalização” de finais de 1990 ao movimento Occupy de 2011. De fato, o principal teórico do Occupy, David Graeber, é um entusiasta de Kropotkin.

Os desafios do anarquismo permanecem praticamente os mesmos que existiam na época de Kropotkin. Como pode um grupo que suspeita tanto das organizações estabelecidas construir um movimento que seja eficaz a longo prazo? Como é que pode conquistar uma maioria de pessoas viciadas em um crescimento infinito e em padrões de vida cada vez mais elevados? E como pode a sua sociedade ideal, fundada sobre a democracia participativa local, controlar as enormes concentrações de poder existentes nos Estados e nos mercados internacionais?

No entanto, muita coisa mudou a favor do anarquismo. Uma sociedade mais educada está a tornar-se cada vez menos dócil e, possivelmente, menos materialista.  Enquanto isso, a falência quer do Socialismo de Estado em 1989, quer do capitalismo global em 2008, e a sua incapacidade flagrante para lidarem com a degradação ambiental, põem em questão, como nunca até hoje, a forma como vivemos. Kropotkin não é nenhum messias, mas os seus textos levam-nos a imaginar politicas que nos poderiam, de fato, ajudar a salvar o mundo.

Notas do tradutor:

(1) Antigo líder do Partido Trabalhista britânico. Demitiu-se depois da derrota do seu partido nas eleições legislativas de 7 de Maio de 2015.

(2) Ator e comediante britânico, que se tem assumido como anarquista em múltiplas entrevistas e declarações.

(3) Zona de Londres em que vive Russell Brand.

(4) Industrial Workers of the World – sindicato inspirado no sindicalismo revolucionário e no anarco-sindicalismo com grande expressão nos Estados Unidos e Canadá. Ainda existe, embora com muito menos influência do que a que tinha nas décadas de 1910 e 1920.

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(Artigo) Antropologia Anarquista: poder e hierarquia

O texto a seguir é uma tradução colaborativa da Rede de Informações Anarquistas de um artigo sobre Antropologia Anarquista escrito por Sarah Lester e publicado originalmente no The Journal of Wild Culture. A versão em inglês pode ser encontrada aqui.


Kotsuis and Hohhuq - NakoaktokA antropologia é conhecida – mais notoriamente – como uma disciplina ainda abraçada com os grilhões de seu passado colonial. É talvez um pouco menos conhecida por sua afinidade com a anarquia. Mas se tomarmos o anarquismo como a crença em uma democracia livre do aparato estatal, então não é de surpreender que exista uma ressonância natural entre ambos. Uma certa propensão a analisar sociedades sem estruturas de poder assimétricas pode explicar a escolha de tantos antropólogos e antropólogas de prefixarem os seus cargos com a palavra “anarquista”. Essas pessoas possuem evidências empíricas que sociedades sem estado são possíveis. Como David Graeber – um antropólogo acadêmico recentemente aclamado como o anti-líder do Movimento Occupy – insiste, qualquer crença em um sistema anárquico tem que decorrer da suposição otimista que um outro mundo é possível.

Mesmo apesar de seus paradoxos e tendências em exoticizar seus objetos de estudo, a antropologia é provavelmente a única disciplina que tenta considerar toda a gama de estruturas societárias e políticas em termos igualitários. Ela buscou melhor compreender sociedades que operam sem uma lei ou estado formal, mesmo – ou especialmente – os casos em que essas sociedades foram consideradas como irrelevantes. A fixação da modernidade com o progresso deu origem a uma visão de sociedades sem estado como estáticas e embrionárias, como se existissem fora da história. Sem a força propulsora da dialética, as ditas “sociedades primitivas” se encontrariam estagnadas na pré-história. Essas sociedades são vistas, portanto, como “totalmente foras do interesse da filosofia da história” – nas palavras de Hegel, fustigadas ao longo de seu compromisso com a teologia.

MAUSS POSTULOU QUE AS ECONOMIAS DE DÁDIVA ERAM BASEADAS EM UMA RECUSA PELO CÁLCULO

A visão de Hegel da história enfatiza a importância da razão, da racionalidade e do progresso. Acima de tudo, a filosofia de Hegel foca no Estado, o qual ele vê como um princípio universal com o qual os desejos subjetivos dos cidadãos e cidadãs devem coincidir para atingir algum tipo de perfeição. Enquanto os exames minuciosos de antropólogos e antropólogas de sociedades sem estado sempre arriscaram incorrer em acusações fáceis de primitivismo, em um nível mais básico, a experiência diária do trabalho de campo entre os – ouso eu dizer – primitivos tem destacado o fato de que alternativas viáveis ao modelo estatal existem de fato. Essas pessoas descobriram que sociedades podem operar com sucesso sem alguma regulação constante de uma coerção estrutural sistemática. E, ao contrário do que dizem crenças dominantes, tais sociedades não terminam com todo mundo se matando. Independentemente do quão prático a sua implementação pode ser, análises do poder não-hierárquico e da liderança não-autoritária podem desafiar as noções básicas sobre as quais a nossa concepção de civilização está baseada.

Já em 1925, o fundador da antropologia francesa, Marcel Mauss estava notoriamente advogando a moralidade alternativa de sociedades sem estado em seu “Ensaio sobre a Dádiva”. O seu estudo de trocas de produtos em sociedades de parentesco – como o Potlatch dos índios americanos do sudoeste do Pacífico e os elaborados anéis Kula dos trobriandeses – desafiou o pressuposto universal que economias sem mercado ou dinheiro devem operar por meios do escambo. Longe de procurarem se envolver em um comportamento mercantil, no qual cada lado se esforça para obter as melhores mercadorias ao menor custo possível para si próprio, Mauss postulou que as economias de dádiva não eram baseadas em cálculos, e sim em uma recusa de calcular. Não se trata de argumentar que eles falharam em desenvolver um sistema sofisticado o suficiente para render lucros de uma forma eficiente, mas sim de que esses sistemas de troca estavam enraizados em um sistema ético que rejeitava conscientemente as noções mais básicas sobre as quais nós geralmente acreditamos que a economia se baseia.

Wedding party - Qagyuhl

Mauss, um socialista revolucionário, alinhado pessoalmente com várias posições anarquistas clássicas, nunca chegou a se intitular como um anarquista. Significativamente, outro francês, Pierre Clastres – que, por sua vez, se proclamava como anarquista – ficou bastante conhecido por fazer um argumento similar a Mauss em um nível político. Enquanto Mauss usou a antropologia para iluminar caminhos possíveis para a construção de uma economia anticapitalista (em resposta à crise do socialismo de Lênin), Clastres usou a antropologia para demonstrar como era possível o poder operar de uma forma igualitária e não-coercitiva. Através da consideração das estruturas de poder de sociedades sem estado, em seus próprios termos Clastres encontrou um caminho para politizar sociedades primitivas. Ao fazer isso, ele desafiou radicalmente a noção, delineada mais proeminentemente por Thomas Hobbes, que o poder estatal é uma ilusão necessária.

Quando Hobbes escreveu o Leviatã, o seu tratado sobre o contrato social em resposta a sangrenta Guerra Civil inglesa, ele alegou que a submissão do indivíduo a um todo-poderoso estado não era apenas benéfica em prol de uma sociedade igualitária, mas de fato essencial para a sobrevivência de nossa espécia. Sociedades naturais inevitavelmente iriam ser jogadas em um estado de “guerra, onde todo homem é inimigo de todo homem”. Nas últimas três décadas, o argumento de Hobbes que a sociedade civilizada pode apenas existir através do poder coercitivo se transformou em um princípio central da atividade política hegemônica, tanto na direita quanto na esquerda. Uma vez que a ameaça da guerra é onipresente, nós entramos em um contrato social e ficamos sujeitos a um grande Leviatã, o Estado, porque sem ele existiria nada a não ser carnificina a nossa espera em cada esquina.

Clastres, perplexo com a ideia de servidão voluntária, colocou esse axioma em questionamento. Seu trabalho constantemente reitera a seguinte questão: por que nós abandonamos a autonomia e obedecemos a um governo? Se o estado se baseia na autoridade restrita de poucos contra muitos, então por que o estado trinfou? Ou, nas palavras de Etienne de la Boétié, “que desfortuna foi essa que pôde desnaturar tanto o homem”?

O uso da palavra “desnaturado” aqui é particularmente instrutivo, pois, sem dúvida, são as diferentes concepções de “natureza humana” que se encontram no centro desse debate. A orientação hobbesiana assume que a natureza humana é algo selvagem, guerreira e irracional, a ser domesticada pelas forças civilizatórias do controle estatal. Atualmente, a política ocidental mantém essa orientação. Mas ao examinar culturas com diferentes atitudes diante do poder o que a antropologia pode nos mostrar é que esse pressuposto é exatamente o que ele é: apenas um pressuposto.

VOCÊ VALE NÃO MAIS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA; VOCÊ VALE NÃO MENOS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA

Através de seu extensivo trabalho de campo dos índios Guayaki do Paraguai, Clastres demonstrou como o poder pode ser efetivamente organizado sem um aparato separado do corpo social. Sua análise sugere que é possível falar de poder localizado fora dos domínios das relações de comando-obediência. Tomemos, por exemplo, suas descrições da aparentemente paradoxal “liderença” da chefia indígena americana. Enquanto as sensibilidades ocidentais iriam automaticamente assumir que um chefe necessariamente possui algum meio de exercer poder sobre o resto do grupo, Clastres destaca que, em várias instâncias, a mais notável característica do chefe indígena é a sua completa falta de autoridade. Clastres insiste que o papel do chefe é essencialmente reconciliatório; ele não é um homem de poder mas um pacificador e árbitro. Um chefe é obrigado a possuir um talento retórico grandioso o qual, junto com o seu prestígio e generosidade, ele usa para tentar manter a ordem social. Mas, a qualquer momento, o chefe permanece sob o perigo de ser repudiado.

Qualquer um que associa poder político com a autoridade governante iria certamente achar que uma liderança nesse sentido não apenas não compensa, como também preocupa pela sua instabilidade. No entanto, Clastres insiste que a questão não é questionar a falta de autoridade do chefe em si, mas entender as relações de poder no contexto envolvido. Como alguém pode explicar a bizarra persistência de um poder que é praticamente impotente?

Clastres descreve o ato ritualizado dos discursos do chefe, o qual acontece diariamente ao amanhecer e ao anoitecer. Um chefe não adquire o direito de falar simplesmente em razão de sua chefia – a sua chefia que o obriga a falar. A tribo demanda ouvi-lo: um chefe mudo não é mais um chefe, mas, em mais um ataque às nossas expectativas, Clastres continua a demonstrar que enquanto o chefe fala, ninguém presta qualquer atenção a ele. Independente da força de sua voz ou de suas habilidades oratórias, o resto do grupo parece seguir com as ruas rotinas como se nada estivesse acontecendo. O poder não se encontra no lado do chefe, o que faz com que as suas palavras não sejam autorizativas ou poderosas.

Clastres utiliza seus achados etnográficos para alegar que está na natureza das sociedades primitivas saber que a violência é a essência do poder, e que o discurso é o oposto de violência. Ao restringir o chefe para o domínio do discurso apenas, a tribo garante que nenhum deslocamento de forças perturbará a ordem social. O chefe não pode usar as palavras para seus ganhos pessoais ou por razões de conveniências políticas, porque o chefe que tenta apropriar poder desse jeito é logo abandonado. A sociedade primitiva é o lugar onde o poder separado é recusado, porque a sociedade em si, e não o chefe, é o lugar real do poder.

Dancing to Restore an Eclipsed Moon - Qagychl

O trabalho de Clastres se opõe a noção hegeliana que o estado é o destino final de todas as sociedades. Longe do estado ser o objeto preciso da história mundial, as sociedades sem estado, argumenta, possuem mecanismos preventivos para evitar a formação de um aparato estatal: a oratória impotente do chefe representaria um desses dispositivos. Da mesma forma, Clastres descreve o ato ritualístico de marcar os corpos como uma outra maneira de frustrar o desejo humano por poder. Ao contrário da lei escrita da sociedade hierárquica que é imposta por poucos sobre muitos, a lei das sociedades primitivas, a qual é escrita sobre todos os corpos, diz: “você não vale mais do que qualquer outra pessoa, você não vale menos do que qualquer outra pessoa”. A essas sociedades não falta um estado, simplesmente. Elas são, nas palavras de Clastres, sociedades contra o estado.

Assim como Mauss desafiou a lógica assumida da economia de mercado, Clastres questionou a noção de que o poder pode apenas ser identificado como uma autoridade coercitiva. Ambos os antropólogos desafiaram a lógica evolucionista que assume que o estado e o mercado são destinos inevitáveis de todas as sociedades. Entretanto, mais do que isso, ambos fizeram a sugestão radical de que – longe de serem incapazes de alcançar o estágio avançado da civilização ocidental – essas sociedades estão realizando um esforço conjunto para conter as capacidades humanas de ganância e sede de poder de um jeito que impede que estruturas sociais autoritárias se formem.

Em oposição a descrição de Hobbes da guerra primitiva como perpétua e caótica, Clastres identifica a guerra como um mecanismo preventivo último que possibilita essas sociedades de evitar a emergência do estado. Como os eventuais colaboradores de Clastres, Gilles Deleuze e Félix Guattari, sugeriram, assim como Hobbes percebia claramente que o estado está contra a guerra, Clastres defenda que, nas sociedades “primitivas”, a guerra está contra o estado.

A QUESTÃO NÃO É SE AS PESSOAS SÃO “BOAS O SUFICIENTE” PARA EXISTIREM EM UMA SOCIEDADE PARTICULAR OU NÃO…

Aqui podemos enxergar o valor da antropologia, não como uma disciplina que analisa culturas antigas chamadas de “primitivas” que ainda existem, mas como uma ferramenta que nos possibilita imaginar novas sociedades. A anarquia, atualmente, é comumente julgada como destrutiva, violenta e niilista; é utilizada como sinônimo de caos e desordem. No entanto, anarquia, como compreendida pela maior parte dos e das anarquistas, na verdade significa o oposto. Uma sociedade anárquica – como as igualitárias que Clastres estudou – é baseada na ordem, na autonomia dos indivíduos e na cooperação sem governantes. Enquanto a maioria dos e das anarquistas, seguindo o revolucionário russo Mikhail Bakunin, acredita que caos e desordem possuem potencialidades inerentes, e que a destruição pode ser um ato criativo, o seu objetivo último é de criar uma ordem social que elimina completamente a necessidade da violência legitimada. Esforçar-se para a abolição de instituições sociais que usam a força coercitiva para criar uma nova ordem está longe de desejar um estado de permanente desordem e violência. Na verdade, alguns dos pensadores anarquistas mais conhecidos, Henry David Thoreau, Tolstói e Gandhi, eram também pacifistas.

Outra crítica comum feita ao anarquismo é que ele é idealístico demais. As moralidades anarquistas alternativas e suas visões de um mundo mais livre, com – de todas as sugestões – menos horas de trabalho, foram eventualmente descartadas como utópicas; é o risco ocupacional de reimaginar as estruturas sociais existentes. Ainda assim, um olhar mais considerado no anarquismo relevaria que ele promove uma visão da humanidade que é resolutamente realístico. Humanos não são inerentemente belicosos ou naturalmente benignos; eles possuem a capacidade para o bem e para o mal. A questão, como o escritor e crítico social Paul Goodman colocou talvez da forma mais eloquente possível, não é se as pessoas são “boas o suficiente” para existir em uma sociedade particular ou não. Mas sim como as instituições sociais podem ser desenvolvidas de um jeito que se torne mais propício das pessoas expressarem suas capacidades para a inteligência, benevolência, sociabilidade e liberdade. Anarquistas podem estar precisando de esperanças e de imaginação para vislumbrar um mundo diferente; antropólogos e antropólogas, no meu ver, estão particularmente bem situados para os guiar nesses aspectos para fazer com que isso se transforme em realidade.

(Artigo) “Camarão que dorme a onda leva”: a esquerda antiautoritária no contexto da ascensão conservadora

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“Faça do anarquismo uma ameaça de novo”

Passado um ano das eleições nacionais, a ascensão da direita se consolida gradativamente com a aprovação parcial da redução da maioridade penal na Câmara Legislativa simbolizando a cereja do bolo. Independente de tal manobra ser apenas uma maquinaria para PMDB e PSDB minar ainda mais o PT de olho nas próximas eleições, de qualquer forma celebrou o avanço dessas pautas enquanto progressistas e esquerdistas assistiam – de arquibancada – revoltosos o que se passava. Nas redes sociais, a esquerda denunciava o avanço do conservadorismo. Faz parte do jogo.

No entanto, acreditar que a própria esquerda, seja partidária ou radical, está livre da crítica de que somos também responsáveis pelo cenário que se constrói em frente aos nossos incrédulos olhos, é querer forçar uma miopia grande o suficiente para falharmos em compreender a atual conjuntura política enquanto conseguimos, mesmo míopes, assistir indignados a barbárie de camarote. A esquerda que se conforma em ser reativa, “nenhum passo para trás, mesmo que nenhum seja dado para frente!”, a esquerda VIP, por assim dizer. Como se nunca tivéssemos desconfiado da força do conservadorismo e do reacionarismo, como se acreditássemos que, quase por um milagre divino de deuses marxistas ou bakuninistas, um despertar geral se espalharia pelo país, alterando consciências e pavimentando o caminho para o mundo livre. Tudo muito espontâneo.

Como detestamos a palavra “espontâneo”. Não aquela que sugere a criatividade dos indivíduos precarizados e das periferias marginalizadas de se organizarem espontaneamente para resolver problemas cotidianos de suas localidades (aliás, práticas que se tratam de ações diretas por tabela que em muito escapam ao limitado discurso militante tradicional). Mas sim aquela “espontaneidade” utilizada por cientistas e analíticos políticos para se referirem ao caráter definidor das revoltas de junho de 2013. Como se elas tivessem acontecido ao acaso, devido a uma série de encontros e desencontros que, por pura sorte, engrenaram em um processo que desencadeou as revoltas que tomaram Brasil afora, como se por trás daquelas revoltas não permeassem redes, relações, sociabilidades e rebeldias que já estavam sendo construídas há anos, por que não décadas.

Que o sistema representativo democrático em nada representa os anseios libertários, nós, militantes anarquistas, já sabemos. Que a democracia no Brasil tem donos, nomes, sujeitos diretos e indiretos e que não devemos mais ficar à mercê de partidos, sejam de esquerda ou de direita, também sabemos. Aliás, até o cidadão ou cidadã que pede por impeachment, intervenção militar ou coisas afins também compartilha de sentimentos parecidos, embora por propósitos completamente distintos. A antipolítica, ou a recusa pela política institucional, é crença disseminada pela sociedade brasileira. A solução seria deixar a governança dessa sociedade para aqueles que representam integralmente a tal da “moral e dos bons costumes”. Mas o que a esquerda tem a ver com isso?

Tem a ver porque o vazio que se sucedeu a negação da política é um espaço em disputa, a qual estamos perdendo de 7 a 1. Vamos por parte. Primeiro, falemos da esquerda institucional. E aqui retornamos à questão das eleições de 2014. Cada vez mais temos lido e ouvido companheiros e companheiras anarquistas sobre o tema do voto nulo. O que se sucedeu é notório dentro do movimento. Ouvimos a crítica proveniente da esquerda partidária de que o “voto nulo” não é instrumento de mobilização política legítima. O seu uso estaria contribuindo com a ascensão da direita no país, em uma lógica “melhor Dilma do que Aécio” (ou “melhor uma esquerda vendida para a direita do que a própria direita”?). Conforme assistíamos a aprovação parcial da redução da maioridade penal, vozes do passado se reafirmavam. A outrora ingenuidade de anarquistas, libertários e marxistas radicais era evocada com o recadinho “quem mandou não fortalecer em uma unidade de esquerda para disputarmos as instituições?”

Desmascaremos tal mesquinharia de pessoas que insistem em um jogo ideológico ao fazerem questão de afirmar suas tão preciosas identidades políticas (como se a valoração de meios fosse mais importante do que o exercício dos próprios meios), isso tudo enquanto está em vigência um processo que pode resultar na ampliação do genocídio e do encarceramento da juventude, em especial a pobre e negra. A nossa resposta é curta e seca: pois bem, foram os quase 15 anos de “atuação institucional” desde a eleição de 2002 que produziram esse monstro. Durmam com esse barulho.

O fato é que os 16 partidos da base que compõem o tal do governo dos trabalhadores votaram pela redução da maioridade penal. Esse é o belíssimo resultado do presidencialismo de coalização sustentado pelo projeto progressista do Partido dos Trabalhadores. A revolução é aumentar o poder de compra dos de baixo a partir da expansão do crediário e do famoso “20 vezes sem juros”. Os conchavos com banqueiros, agronegociantes, donos de abatedouros multimilionários, empreiteiros, bispos e tantos outros – como o próprio PMDB que encena o seu “golpe” – agora reivindicam o seu preço. E o custo cobrado é alto na conta da população brasileira, em especial a marginalizada, a desprovida, a precarizada, a assassinada. Em suma, a desgraça da esquerda foi causada por ela mesma. Até alguns militantes do PT passaram a reconhecer isso, embora insistem em acreditar em uma “volta triunfal”, no melhor estilo do mito de Dom Sebastião.

Aliás, sobre o tal “golpe”.  Os partidos de esquerda fizeram um apelo ao “regimento interno da câmara”, como se houvesse alguma imparcialidade e neutralidade que regesse o espaço legislativo, “além do bem e do mal”. Contudo, todos e todas ali, e aqui incluímos PT e PCdB, se beneficiam de tais costuras de acordos para seus respectivos projetos de poder ao invés de se servirem da dita “racionalidade iluminada da norma”. Esquecem também que a própria existência de um congresso a decidir sobre, como e o porquê de nossos corpos existirem (congresso esse que, baseando-se em uma política de representação e legitimação acaba por despolitizar e desmobilizar possibilidades além-institucionais) é o que permite o ocorrido do último dia 2 acontecer – e continuará acontecendo, em um trágico mito do eterno retorno, independente de quaisquer novos acordos a serem costurados. Ou vocês conhecem algum congresso ou parlamento no mundo, mesmo nos países historicamente mais progressistas, que não tenha violado o corpo de suas minorias, de grupos oprimidos que constituem as sociedades que eles dizem representar?

Já a oposição de esquerda, boa parte dissidências que vazaram do próprio PT, não conseguiu até o presente momento mobilizar sociedade, base e trabalhadores e trabalhadoras de forma significativa. Preferem gastar suas energias aparelhando sindicatos, hegemonizando movimentos estudantis de universidades públicas até então elitizadas, se fechando em panelas onde só o membro afiliado garante o seu, enquanto a pauta máxima que deveria ser tocada por todo e qualquer movimento de esquerda sai perdendo: a autodeterminação da classe trabalhadora. Pois bem, vocês tiveram a sua oportunidade, e fracassaram. A fila anda, companheiros e companheiras. Para aqueles que possuem a coragem de não mais acreditar na via institucional da, nos perdoem o trocadilho, ex-querda: autogestão e autonomia.

Mas se o movimento que opta por atuar em outros espaços para além do institucional possui alguma ingenuidade, ela é outra. Pois ainda há aqueles e aquelas que acreditam que “a revolução será amanhã”, a ponto de sensacionalizar no melhor estilo “tabloide inglês” em cima da importante e fundamental pauta dos presos e presas políticas na espera da população imediatamente, “espontaneamente”, aderir a suas bandeiras e seguir seus delírios revolucionários. A verdade é mais dura que essa. De novo, a questão da redução da maioridade penal. Pesquisas demonstraram que a maioria esmagadora da população aprova tal medida. Independente de nossas descrenças nesses institutos estatísticos regidos pela grande mídia, a todo momento o cotidiano nos lembra do conservadorismo pulsante da sociedade brasileira com as inúmeras opressões que acontecem dia após dia. Sim, é tempo para outras alternativas. Mas cair na crença do povo libertário perpetuado pelos guetos virtuais é um equívoco colossal.

Aliás, o que diabos queremos dizer com “povo”? Sinceramente, não sabemos. Mesmo assim, preferimos agir como vanguarda iluminada a liderar as massas para a revolução com discursos dignos dos tempos de grêmio estudantil. Argumentamos: o avanço da pauta conservadora entre o “povo” também é de nossa responsabilidade, pois nunca soubemos bem dizer o que seria esse “povo”, muito menos se articular com “ele”. Correndo o risco do simplismo exacerbado, pois o desafio é árduo e a solução não está muito clara: apenas o trabalho de construção paulatina, pelas bases, aberto, dialógico e comunitário irá fazer com que o conservadorismo seja desconstruído e o anseio libertário, presente em todos nós mas talvez ainda dormente (assim insistimos em acreditar), disseminado.

Um último adento. Supracitando, “trabalho de construção paulatina, pelas bases, aberto, dialógico e comunitário”.  Se abrirmos o escopo político e tivermos que dar um exemplo de quem realiza tal trabalho com maestria, diríamos: a igreja. Sim, a igreja. Esses templos religiosos pipocam nas periferias de grandes cidades, no interior esquecido. São edificadas sem a menor preocupação de holofotes, de alcançarem grandiosidades, de reivindicarem prestígio no próximo encontro internacional de algumas dúzias dos verdadeiros revolucionários (e aqui não há flexão de gênero, pois o normal desses grandes revolucionários é serem homens – ah, e brancos!). Na surdina, trabalham. Pequenos ou grandes, agregam, crescem, disseminam fé e comunhão. Se encontram articulados nos menores espaços que o tal do “povo” circula: brechós, festas tradicionais, cursos de alfabetização, salões de beleza, mutirões comunitário, distribuição de comida, entre outros.

Enquanto isso, o que nós conseguimos? Onde nós estamos? Restritos a guetos identitários querendo afirmar retóricas superiores, se preocupando com delírios dignos dos milagres da bíblia. Enquanto zombamos dos evangélicos, eles nos dão uma aula de política de base. Mesmo assim, quando a redução da maioridade penal é aprovada na câmara com apoio decisivo da bancada evangélica, buscamos apenas o alheio para responsabilizar, expurgamos Malafaias e Bolsonaros acreditando que a culpa reside inteiramente neles. Afinal, não somos a esquerda iluminada oprimida pela insolência do “povo” que teima em suas escolhas eleitorais? Dizemos fazer pelo “povo”, mas nos julgamos melhores que o próprio “povo”. Quem irá nos seguir?

A situação é trágica. Mas a saída, antes de qualquer teorização magnânima ou elaboração de grandes estratégicas, está em um gesto simples. Está na hora de nos olharmos no espelho, não temer a autocrítica e começar a trabalhar pelo que dizemos acreditar. Organização, olho-no-olho, trabalho cotidiano, ações incessantes e autogestão. Não é de baixo para cima? Então façamos micropolítica, pois os de baixo são muitos e sem tato e proximidade nós nos distanciaremos de nossos próprios ideais. Fazemos esse convite. Saiamos da reatividade. Passemos a pautar.

“O Estado não é, como pensam muitos socialistas, uma instituição que pode ser destruída por uma revolução, mas antes (…) uma condição, uma espécie de relacionamento entre seres humanos, um modo de comportamento humano; nós o destruímos começando outros relacionamentos, nos comportando de maneira diferente.” (Gustav Landauer, Um Chamado ao Socialismo)

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De baixo para cima, RIA você também!

(Grécia) Por que eu vou votar “não” no plebiscito grego de Domingo

Em sua essência, a questão de domingo é uma de dignidade e sobre nossas vidas a partir desse momento.

Por Antonis Vradis

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Marcha pelo “não” em Atenas

O plebiscito de domingo não é sobre um detalhe fiscal ou outro, um acordo ruim ou outro menos pior. Na sua essência, a questão de domingo é sobre dignidade e sobre nossas vidas a partir desse momento.

É sobre a dignidade para acabar com as gangues de colarinho branco que fizeram com que a até então desprezível face do poder político parecesse bem intencionado e inocente. E é sobre uma questão de saber se nós (enquanto indivíduos, não essa ideia estranha de “povo”: mais sobre isso daqui a um momento) queremos continuar vivendo uma vida de incertezas excruciantes, ultimatos e emergências intermináveis, de humilhação e tristeza.

É uma questão que aqueles entre nós sortudos os suficientes para chegarem nas urnas terão que responder por aqueles que não conseguiram chegar. É por isso que eu, se o plebiscito for adiante, vou votar pela primeira vez na minha vida. Eu vou votar pelos meus amigos e familiares afugentados e a que foi negada a capacidade de viver aqui. Eu vou votar por um amigo querido que decidiu, nas horas mais escuras da crise, que a sua vida não valia ser vivida. Vou votar na esperança que assim ajudarei a fazer com que as vidas da gangue do mercado se tornem verdadeiramente inviáveis.

Como um anarquista, não tenho nenhuma fé no sistema de representação eleitoral, nem tenho vontade de entregar minhas demandas políticas para qualquer líder, por qualquer período de tempo. Mas isso não é o que esse plebiscito irá fazer. Seja ele um plano bem orquestrado pelo Syriza para fazer as pessoas engolirem o remédio da austeridade, o seu blefe já foi lançado. Com certeza, o voto “não” no domingo não irá garantir que mais um outro programa de austeridade não se siga a esse. Mas nós iremos lidar com isso se e quando tal programa chegar. E com certeza, ao votar “não” nós não temos nenhuma ideia para o que nós estamos votando “sim”.

Mas eu tenho uma ideia bem clara para quem o meu “não” se dirige. Esse “não” vai para o mercado, essa força onipresente que nós permitimos permear mesmo os nossos espaços mais íntimos, mesmo os mais internos, as fundações basilares de nossa existência. Vai para a escória parasitária em ternos e gravatas, os padres da ortodoxia bancária e sua pomposa e arrogante crença de que eles podem se manter comandando o show para sempre.

Não, vocês não podem. O voto vai para aqueles que estão alimentando o nacionalismo na Europa, vai contra a invocação do Syriza de um “povo” grego. Existe tal coisa como o “povo”? Claro que não; eu não tenho nenhuma ideia do que essa ideia significa. Onde se encontra qualquer comunalidade? Na língua que nós falamos? Nos espaços que nós habitamos? Nossos interesses são de alguma forma compatíveis, ou ao menos comuns, com a escória parasitária sugando o sangue para fora de nossas próprias vidas?

A esquerda nesses cantos, e no continente como um todo, será historicamente responsável por colocar essa ideia para frente, por alimentar nacionalismos, por ajudar a formar um ambiente onde em que a mais a mais desprezível das ideologias da extrema-direita pode prosperar. Nossas comunalidades não estão na língua, nossos laços não dependem de nossas proximidades físicas.

Há não muito tempo atrás nós conseguimos desenvolver um movimento anti-capitalista nesse continente baseado na seguinte compreensão: nós estamos no caminho de criar uma consciência política da Europa como um espaço comum. Esse “não” é uma homenagem ao nosso legado comum anti-capitalista e anti-autoritário, legado este que foi esmagado nesse cenário de emergência permanente e governo mercantil.

Agora é quando nós começamos a reimaginar nossas comunalidades e interesses trans-fronteiriços, agora é quando nós expomos nossos inimigos dentro e fora das fronteiras por aquilo que são, agora é quando nós trazemos para baixo a fachada do mercado e da unidade nacional. E tudo começa com esse “não”.

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Manifestante queima bandeira da União Européia em marcha pelo “não”

Texto originalmente publicado em inglês no portal Open Democracy e repassado pelo ativista Antonis Vradis para tradução e publicação na Rede de Informações Anarquistas.

Versão em inglês:

Sunday’s referendum vote is not about one fiscal detail or another, a bad agreement or one that is less so. In its essence, Sunday’s question is about dignity and our lives from this point on.

It is about the dignity to do away with the criminal gang-in-suits that has made even the otherwise despicable face of political power appear well-intended and innocent. And it is a question of whether we (as individuals, not as this weird idea of “a people”: more on this in a second) want to continue living a life of excruciating uncertainty, never-ending ultimatums and emergencies, of humiliation and sorrow.

It is a question those of us lucky enough to have made it to the ballot box will have to answer for those who didn’t make it. This is why, should the referendum go ahead, I will be casting a vote, for the first time in my life. I will be voting for my friends and family chased away and denied the capacity to live over here. I will be voting for my dear friend who decided, in the darkest hours of the crisis, that his was a life not worth living. I will be voting in the hope that doing so will help make the lives of the criminal market gang truly unlivable.

As an anarchist, I have no faith in the system of electoral representation, nor do I have the will to surrender my political demands to any leader, for any amount of time. But this is not what this referendum will do. Should this be a well-orchestrated plan on the side of Syriza to let people swallow the austerity medicine, their bluff is already called. Sure enough, a ‘no’ vote on Sunday doesn’t guarantee that yet another austerity programme won’t follow. But we’ll deal with that if and when it comes. And sure, in voting ‘no’ we have no idea what we are actually voting ‘yes’ to.

But I have a pretty good idea who my ‘no’ will go out to. This ‘no’ will go out to the market, this ubiquitous force we have allowed to permeate even the most intimate of our spaces, even the innermost, the core foundations of our existence. It will go out to the parasite scum in suits and ties, the priests of the banking orthodoxy and their pompous, arrogant belief that they can keep running the show, for ever.

No, you can’t. It will go out to those fueling nationalism in Europe, it will go out against Syriza’s invocation of a Greek “people”. Is there such a thing as a “people”? Of course not; I am not sure what the idea even means. Where does any such commonality lie? Is it in the language that we speak? In the spaces that we inhabit? Are our interests in any way compatible, let alone common, with the parasitic scum sucking the blood out of our very lives?

The Left on these shores, and in the continent as a whole, will be historically liable for putting this idea forward, for fueling nationalisms, for helping form an environment in which the most despicable of far-right ideologies can thrive. Our commonalities do not lie in language, our bonds do not depend upon our physical proximities.

Not too many years ago, we succeeded in developing an anti-capitalist movement on this continent based on this understanding: we were on course in creating a political consciousness of Europe as a common space. This ‘no’ is a homage to our common anti-capitalist, anti-authoritarian legacy, one that was crushed in this landscape of permanent emergency and market rule.

This is when we start re-imagining our cross-border commonalities and interests, this is when we expose our enemies within and beyond borders for what they are, this is when we bring down the facade of the market and national unity. And it all starts with this ‘no’.