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O perigo de ser mulher e negra na luta por direitos no Brasil

Apesar das transformações nas condições de vida e papel das mulheres em todo o mundo, em especial a partir dos anos de 1960, a mulher negra continua vivendo uma situação marcada pela dupla discriminação: ser mulher em uma sociedade machista, e ser negra numa sociedade racista (MUNANGA, 2006).

Ser mulher negra no Brasil significa constante perigo, principalmente na luta por direitos, contra o machismo, patriarcado, os recortes de classe e a opressão da mulher branca, presente cotidianamente, instituído, naturalizado, acordado. Ser mulher negra no Brasil é passar uma vida inteira tentando descobrir se você está sendo inferiorizada por ser mulher ou por ser negra, e no final percebe-se que por ambas. No Brasil o racismo não é explícito, devido a imposição de um flagelo histórico construído por uma elite branca, o mito da democracia racial. Construído apenas para ser enfiado goela abaixo e silenciar, distorcer e tornar mansos e passivos os que são discriminados, porque é mais importante combater a ideia de que racismo existe, do que combater propriamente o racismo.

Nesse contexto, ser mulher negra é viver uma negritude mutilada emocionalmente e fisicamente desde o nascer até a morte. A questão racial é tratada como mero elemento secundário, não sendo enfrentada com responsabilidade. Alimentando o silencioso acirramento, vivido atualmente nas ruas, faculdades, escolas, trabalho e redes sociais, crescendo de forma contundente e feroz, devido a força da opressão massificada contra os negros e negras. O Estado brasileiro, ao fingir que não vê tal situação, colabora amistosamente em suas instituições na manutenção dessas condições. Mantendo negras e negros como escravos modernos nos porões da sociedade, encarcerados em guetos, favelas e periferias sociais, a carne negra continua sendo vendida, destroçada e consumida de forma mais barata possível.

A carne mais barata do mercado sempre foi a carne negra, principalmente a carne da mulher negra. É a carne de todas as Thamires Fortunato, é a carne de todas as Miriam França. Essas mulheres-meninas negras carregam toda a ancestralidade mutilada e violada de quatrocentos anos de escravização do povo negro no Brasil. O que ambas têm em comum para estarem nesse texto? O fato de serem negras, mulheres de origem pobre. Ambas carregam em si toda carga simbólica que o Estado brasileiro sempre repudiou: a negritude. A grande massa populacional brasileira é negra, e isso o governo sempre lutou para eliminar, fomentando políticas de embranquecimento – é fato registrado nos anais da construção da sociedade brasileira.

Thamires sendo levada pela PM após ser brutalmente agredida, arrastada e ter suas roupas rasgadas.
Thamires sendo levada pela PM após ser brutalmente agredida, arrastada e ter suas roupas rasgadas.

Thamires Fortunato, estudante de filosofia da UFF, passou por uma repetição naturalizada cruelmente na história de ancestralidade negra no Brasil, agarrada brutalmente pela Polícia Militar como uma serva que não se sujeita aos poderes, mandos e desmandos dos senhores da Casa Grande. Foi violada física e emocionalmente – como indicativo de sua condição de negra e servir de exemplo de qual lugar na sociedade deveria ocupar. Thamires foi jogada ao chão, arrastada pelos cabelos, teve suas roupas rasgadas, seu corpo ferido, sua carne friccionada no solo por enormes homens ou melhor, capangas do Estado, que molestaram sua dignidade emocional e física. Qual o motivo? Ser negra e mulher na luta por direitos sociais que lhes são negados historicamente.

Não teve defesa, somente ataques. Apenas uma menina sem forças, abatida como caça, arrastada e dependurada como tecido esfarrapado para dentro de uma viatura cheia de homens. Foi ameaçada, socada na tentativa de quebrarem seus membros – tudo isso dito em alto som. Thamires estava sendo usada como objeto de exemplificação do que poderia ocorrer aos demais negros e negras que reagissem. Ah! A história se repete, lembrando que a corporação da Policia Militar tem em sua hierarquia Comandos Superiores que disseminam a ideologia Nazista pelos Quartéis. Creio que isso já amplia o quadro de compreensão da história atual do Brasil. Essa corajosa mulher/menina negra foi forte, lutou diante de tanta dor imposta, dores físicas e emocionais, que continuaram dentro de uma Delegacia misógina, machista e racista, ou seja, a senzala da modernidade. Thamires viu o tronco dos açoites, a chibata da modernidade. Sua carne foi a mais barata no dia 09 de Janeiro de 2015 na mão dos feitores.

A vivência de Thamires Fortunato vai de encontro ao de Miriam França, não havendo nenhuma coincidência, apenas fatos, ambas vítimas da violação, perseguição, massacre e expropriação pelo Estado brasileiro. É histórico no Brasil a polícia militar, o governo e a sociedade usarem sempre o artificio de jogar a culpa de suas mazelas no povo negro e negra, sentenciado e silenciado-os, para depois receber um julgamento e ter direito a uma investigação. É nessa ordem mesmo. Miriam foi encarcerada pelo simples fato de ser negra, sem provas de que tenha cometido algum delito – tendo seus direitos constitucionais vilipendiados pela magistratura racista do País.

Mirian França foi violada emocionalmente, humilhada e cerceada de seus direitos básicos de defesa – inocente até que se prove ao contrário. Ser negra ou negro no Brasil já os tornam culpados. Vejam que mesmo Mirian atingindo um elevado grau de estudo, estando em igualdade educativa em relação a inúmeras mulheres brancas, foi submetida a marginalização através dos códices racistas subliminares. A situação da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da sua realidade vivida no período de escravidão, com poucas mudanças, carregando as desvantagens do sistema injusto e racista do país, e as poucas que ascendem socialmente não conseguem, mesmo assim, romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial que se estruturam de forma velada. A jovem Miriam foi sentenciada pela polícia, sem julgamento e investigação, pela morte de Gaia uma turista italiana branca. Agora encontra-se em liberdade, graças à revogação de sua prisão. Porém, deverá permanecer no Ceará por 30 dias, tempo necessário para que, segundo declaração da polícia à imprensa, saia o resultado da perícia.

A luta pelo direito de existir, pelo respeito integral e o orgulho de sua negritude as tornam perigosas, indesejáveis e passiveis de serem eliminadas através de inúmeros artífices nas ruas desse país ainda escravocrata. A resistência cultural, social e emocional incomoda, como sempre, a elite branca, que sempre almejou ser “européia”. Mulheres Negras incomodam, porque gestam uma força contínua, suas vozes ecoam ao longo, seja baixo ou em alto bom som, não se rendem, não adormecem, não se dão por derrotadas, não conhecem o significado dessa palavra, são perigosas por que sua batalha é ancestral, nascem lutando e fortes como se soubessem sobre o que as aguardam. E certamente não se calarão, jamais irão se recuar, nunca tiveram opção e seguir em frente sempre foi a única condição.

Sobre a situação recente de Ayotzinapa e as feridas abertas do México

Texto enviado por uma companheira de Guerrero, México.

O refrão de uma música muito conhecida no México entoa “la policía te está extorsionando pero ellos viven de lo que tu estas pagando y si te tratan como un delincuente, no es tu culpa dale gracias al regente. Hay que arrancar el problema de raíz y cambiar el gobierno de nuestro país. A la gente que está en la burocracia, a esa gente que le gustan las migajas.” (Gime the power, Molotov). É difícil encontrar qualquer comemoração no país em que essa canção não esteja presente, e portanto, é preciso ater-se ao simbolismo de um cântico tão onipresente: as instituições, sobretudo a polícia, não são consideradas pela população mexicana como confiáveis, e Guerrero não é uma exceção, figurando entre um dos maiores índices de desconfiança às instituições do país.

A essa altura não é nenhuma surpresa que o México tem lidado com uma crise institucional, frequentemente definida por acadêmicos norte-americanos e, mais recentemente pelo presidente do Uruguai José Mujica, como efeitos colaterais de um Estado Falido, mas em verdade com contornos de uma crise civilizacional. O desaparecimento de 43 alunos no final de Setembro, seguido da morte de seis, em Iguala, no sul do estado de Guerrero, na Escola Normal Rural de Ayotzinapa, mostrou ao mundo o lado mais cruel da falida guerra às drogas mexicana, como suas ligações perigosas entre o prefeito, governador e os narcotraficantes, reavivando importantes e sistemáticos protestos nas ruas, desde setembro de 2014.

São vários os simbolismos sobre os protestos a serem considerados, mas no geral o fato de que os alunos foram vítimas do que é conhecido no México como levantón (uma mistura de seqüestro e desaparecimento) retratou o mundo a crueldade da narcopolítica que governa o país. Os estudantes desaparecidos estavam, em 26 de setembro, à caminho para a Cidade do México, para o protesto anual de 2 de outubro, marca do (in)feliz aniversário do massacre de Tlatelolco, em 1968, onde mais de uma centena de estudantes foram mortos pelo exército mexicano.

1968, 2014... até quando?
1968, 2014… até quando?

Assim, é importante ressaltar como a escalada da violência vista nas últimas décadas no país, especialmente após a instalação da “guerra às drogas”, iniciada no governo de Felipe Calderon, em 2006, revelou repetidamente a sua ineficiência. As taxas de homicídio, bem como as taxas de desaparecimento têm aumentado acentuadamente desde o início dessa batalha perdida, chegando a 22 mil desaparecimentos desde 2006, segundo os cálculos da HRW¹, em 2013.

Enquanto o debate acadêmico busca enquadrar o México como um Estado falido, como se a solução de seus problemas passasse necessariamente pelo Estado ou ressalta a incapacidade estatal de lidar com o narcotráfico e à ausência de Estado, especialmente nas áreas rurais do país, categorias importantes trazidos pelas ruas têm sido largamente ignoradas. Essas fazem menção à existência da violência estatal e do terrorismo de Estado, em que se ouve frequentemente “fuel el Estado” e, após a resposta altamente repressiva do governo federal, “fuera Peña!”. Se para Foucault as categorias do “fazer viver e deixar morrer”, demonstram como o Estado seria um ator ativo na matança da população, a necropolítica mexicana evidencia tal realidade. Nesse sentido, apesar de às ruas seguirem com suas mensagens profundamente negligenciadas, seus protestos persistem: “vivos los levaran, vivos los queremos!”, entre outros gritos, clamando por justiça e castigo aos responsáveis pelo massacre.

Vivos los queremos
“Vivos se los llevaron; vivos los queremos”

Ademais, as ruas têm sido enfáticas em enviar outras mensagens que revelam o estado de abandono e descrédito institucional que enfrenta o “narcogobierno”. Um deles é sintomático da desconfiança em relação às instituições: “pienso, luego me desaparecen”, um provável indicador do relativo silêncio dos movimentos sociais nos últimos anos. Se 1968 foi um divisor de águas para os movimentos sociais que enfrentaram a polícia e brutalidade militar em toda a sua forma, foi também um período de efervescência social, a partir de maio na França, mas que se espalharam para outras partes do mundo, incluindo o México, com causas distintas, mas com um lema comum “soyons réalistes, demandons l’impossible” (sejamos realistas e exijamos o impossível).

Dessa forma, os protestos que começaram em 2 de outubro seguem até esse final de novembro, assistindo a um recrudescimento da brutalidade e arbitrariedade policial, que, se aparentemente orientada para não intervir nas primeiras marchas, busca censurar às ruas desde o a segunda quinzena de novembro. A longa marcha do dia 20 de novembro, por exemplo, foi um divisor de águas no movimento, pelo seu enorme contingente, que incluía a concentração em três pontos da cidade, sendo um deles o local do massacre de 1968, Tlateleloco, até o abuso da violência policial e detenções arbitrárias de 11 jovens no final da noite. Entre os presos figura o estudante de doutorado chileno Lawrence Maxwell Illabaca, de 45 anos de idade, provocando uma intensa mobilização em seu país de origem. É importante observar que todos esses jovens já foram encaminhados para presídios de segurança máxima, fora da capital do país, em um processo cuja agilidade difere diametralmente dos empenhos por encontrar os responsáveis pelo desaparecimento dos estudantes.

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#FueElEstado

Em uma tentativa de desarticular os movimentos de massa, são muitas as histórias de violações de direitos, em episódios cujo o ator central é o governo federal. Assim, os relatos de aparecimento de infiltrados e os subsequentes atos de depredação e vandalismo, conforme os termos da mídia hegemônica, proliferam como sendo iniciados pelos policiais, de forma a sustentar a repressão posterior e imputar uma dura legislação criminal aos manifestantes. Pesam sobre os presos políticos as acusações de responsabilidade em delitos de foro federal como tentativa de homicídio, associação delituosa e motim, com o provável adendo de terrorismo. Contudo, há uma ausência de provas para justificar as prisões realizadas até agora, recorrendo à falas de policiais, por exemplo, que afirmavam que os jovens se referiam uns aos outros como “compas”, de forma a provar que, portanto, fariam parte de organizações subversivas e criminosas.

Em um país onde o levante zapatista comemora o seu 20º aniversário resistindo a uma luta contra o “mal gobierno“, no sul do país, o estado de desconfiança estatal é um campo de batalha comum das ruas. No entanto, no que tem sido conceituada como uma “societas sceleris” (sociedade do crime), as sociedades onde o crime, ilegalidade e violações no Estado de direito não só são comuns, mas promovidos pelas forças políticas institucionais, ainda é difícil separar o alianças políticas e redes de narcotráfico que levaram o país ao que está sendo referido como uma crise institucional e à reativação de grandes protestos de rua. Pode-se ter a certeza, no entanto, que o movimento estudantil #YoSoy123, iniciado logo após a vitória apertada de Enrique Peña Nieto nas eleições presidenciais de 2012 deixou uma mensagem clara para os seguintes protestos: “nos quitaron todo, hasta el miedo“.

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A los anarquistas les compete la especial mision de ser celosos custodios de la libertad

1. HRW – Human Rights Watch – Observatório de Direitos Humanos

A Garizada do Rio de Janeiro deu o papo: Não Tem Arrego!

O local é a Fazenda Botafogo, uma região marcada pela pobreza e pela violência comum no subúrbio carioca. Próximo à um rio assoreado, que se tornou uma grande vala de esgoto a céu aberto, fica uma das gerências regionais da ComlurbCompanhia Municipal de Limpeza Urbana. Em sua página de divulgação, a Companhia se define como “sociedade anônima de economia mista” cuja prefeitura Rio de Janeiro aparece como acionista majoritária. E no meio dessa verdadeira salada de gestores fica a grande (e exploradíssima) mão-de-obra representada pelos profissionais da limpeza urbana, tradicionalmente conhecidos como gari, ou como os próprios gostam de se reconhecer, “A Garizada”.

Na tarde do dia 12 de Novembro, um grupo desses profissionais foi à regional da Fazenda Botafogo para continuar um processo de mobilização da classe na luta por direitos e melhorias na condição de trabalho. Essas reuniões, nomeadas pelos próprios como Reuniões para Propostas de Pauta, acontecem de forma simples e direta entre os próprios garis, e vêm se desdobrando atrás dos holofotes que nos últimos meses foram dados à realização da Copa do Mundo e ao processo eleitoral.

Não tem Arrego!
Não tem Arrego!

As reuniões de propostas de pauta possuem a estrutura já conhecida pelo movimento assemblear que eclodiu no Rio de Janeiro após as manifestações populares de Junho/2013. Na calçada da regional faz-se uma roda e os participantes iniciam um debate direto, sem líderes ou mesa centralizadora para dar o comando da reunião. Todos possuem direito à voz e destaca-se um responsável para realizar a inscrição dos participantes. Os que chegam depois e ficam curiosos para saber o que ocorre são recebidos por um participante, que os explica o que está acontecendo e qual o objetivo. Os assuntos são esgotados entre os participantes até que se defina um consenso. Do início da mobilização até o momento, as reuniões de propostas, seguindo este método, já definiram 25 pautas possíveis para representar as reivindicações dos garis. Entretanto, que fique claro, como os presentes fizeram questão de enfatizar: são propostas, e não definições. Ou seja, novas pautas podem ser acrescentadas e até mesmo algumas anteriores podem ser rediscutidas durante as assembleias deliberativas, que ocorrerão na sede do sindicato.

A ideia desse movimento de organização da base pela base partiu dos próprios garis que tiveram um papel mais participativo nas mobilizações de Março de 2014 e nas mobilizações anteriores. A lembrança da histórica luta dessa classe durante o carnaval carioca enche de orgulho (e por que não?) os que hoje participam da nova onda de reuniões. E é com a esperança de um futuro mais justo e organizado, e com o ardente desejo de que as outras classes de trabalhadores unam-se ao processo dos garis, que esse movimento de base pretende continuar. Não obstante, a garizada deixa bem claro: qualquer um, gari ou não, que deseja ajudar na organização dos trabalhadores é bem-vindo, desde que respeite a estratégia de organização dos garis e suas deliberações.

E parece que algumas vitórias, ainda que tímidas, começam a ser obtidas: numa tentativa de boicotar a organização, os gerentes das regionais estão realizando manobras para esvaziar o local no horário marcado para início da reunião. O mesmo fato se repetiu na Fazenda Botafogo e em outros locais, como Madureira. A consequência direta deste fato são folgas fora comum e maior curiosidade dos outros garis em conhecer a proposta de organização. E que fique explícito aos gerentes: as reuniões vão continuar acontecendo e a agenda de visitas às regionais será mantida, com ou sem sanções ordenadas pela prefeitura!

Uma das reuniões, também realizada em Bangu
Uma das reuniões, também realizada em Bangu

Um dos objetivos discutidos pelos presentes na reunião da última quarta-feira é exatamente pensar um movimento para além dos atuais sindicatos, que estão corrompidos e, obviamente, engessados. Por isso mesmo, uma nova organização com novos métodos se faz necessária e presente na vida destes trabalhadores, cujo empenho e desejo de mudança os mantém com forte convicção de que a classe irá unir-se e não haverá sindicato eleitoreiro ou qualquer barreira burocrática capaz de detê-los.

A nós, que não vivemos suas realidades e tampouco sentimos na pele a indiferença que os mesmos sentem diariamente, resta o desejo para que as estratégias que vêm sendo amplamente discutidas pelos garis tornem-se realidade e consiga contornar toda a burocracia presente no sindicato, além, claro, do apoio na divulgação de suas conquistas. A primeira delas nós deixamos aqui, para todos os nossos colaboradores e leitores: a garizada tá se organizando!

DROGAS, PRAZER, LIBERDADE & ANARQUISMO[1].

homemDrogas

 

Se eu quiser fumar, eu fumo / Se eu quiser beber, eu bebo / Eu pago tudo que eu consumo / Com o suor do meu emprego / Confusão eu não arrumo / Mas também não peço arrego / Eu um dia me aprumo / Pois tenho fé no meu apegoManeiras – Zeca Pagodinho.

  1. Vida e Intensidade das Drogas: um depoimento pessoal de um anarquista.

Escrever esse texto foi mais difícil que fazer a palestra com o mesmo titulo no Núcleo de estudos Libertários Carlo Aldegheri (Guarujá – 28/9/13)[2]. Em uma palestra temos menos pessoas e as bobagens, mesmo gravadas, tem uma repercussão menor.

Contudo, há tempos que desejo questionar algo que está muito difundido em nosso meio, a ideia de que fazer o uso de varias substancias químicas é expressão de uma determinada forma de liberdade. Para alguns é a própria expressão do anarquismo, outros mais ingênuos acreditam que esse uso é uma forma de contestação da ordem.

Tais reflexões são resultados dos meus 49 anos de existência, sendo 20 desses como usuário dos mais diferentes tipos de drogas, além, de uma longa busca de entendimento sobre as causas que me levaram a esse comportamento. Busca essa que sempre acompanhou minha diferente forma de viver, porém, que se torna mais critica, a partir de 1993, quando escrevi meu primeiro projeto pedagógico de pesquisa sobre o tema, para o CEFAM (Centro de formação do magistério), e em 1995 para o centro de Convivência (PUC/SP). No entanto, a reflexão se aprofunda quando assumi a perda de controle sobre minha própria vida, e fui para um grupo de autoajuda em 1998, portanto, sou um dependente químico em recuperação e tento ser um estudioso sobre o tema. Meu pai era alcoólatra e com o desenvolvimento da doença se tornou uma pessoa bastante violenta, assim, somada a experiência familiar meu tempo de contato com essa situação é maior.

Infelizmente, em nosso meio alguns tem muita pressa em tomar uma posição sem conhecer o todo, limitando-se a análise das partes, assim, sugiro que leiam o texto todo e mantenham a mente aberta. Outra característica comum, é que aqueles que se posicionam e desagradam são execrados, viram traidores ou inimigos mortais. Entendo essa limitação ética, solidaria e intelectual dos que julgam, não gostaria de ser um desses excluídos, mas se assim for, que seja. Nunca quis ser ou fazer parte da maioria. Essa é uma das mais fortes razões desse texto ser tão difícil!

 

2.Essas ideias ja foram questionadas

As divergências entre libertários tem que ser cordiais. Cada militante deve ter a sua própria personalidade, apresentar os problemas como melhor interpretar, mas disposto sempre acorrigir erros e retificar sempre que se demonstrar o equivoco e afalta de razão. O não compartilhar da opinião dos demais, não estar de acordo com fulano ou beltrano não justificas tirar o corpo e não contribuir com aparte que lhe corresponde na hora de meter o ombro na obra comum” (Fragua Social, nº 24, out./1980 de Jose Hiraldo).

Durante a palestra citada, um companheiro que muito estimo disse que minha fala parecia com a dos militantes do século passado que faziam campanha contra as bebidas alcoolicas, respondi que de certa forma sim. Eu, talvez mais que muitos, posso por exeperiência pessoal, falar dos malefícios que o uso abusivo e indevido de varias substâncias químicas podem causar. Tambem reafirmei que não estava ali falando contra ninguem ou nenhuma substancia quimica em particular. Compreendo que dentro das garrafas de bebida alcoolica não vem violência, a violência está no indivíduo que a usa, e que por razões de sua historia pessoal ou contexto se torna violento. Ademais, o dono do bar, da padaria, da farmácia, em muitos casos, dependendo do contexto, são tão traficantes quanto aqueles que ficam escondidos, nas quebradas da vida, vendendo sem marketing e a “proteção” da policia, seus “bagulhos”.

Uma garota que fez parte da Marcha da Maconha no litoral paulista disse que minha fala era igual a da Globo, fiquei com uma vontade enorme de rasgar o verbo, mas isso tudo é tão desnecessário, não estava lá para brigar com ninguém. Inclusive quem acredita nos efeitos benéficos da maconha, coisa que em parte posso até não dicordar, afinal, pesquisas demonstram que o uso medicinal da maconha para doentes crônicos tráz vários benefícios, que uma taça de vinho ou um copo de cerveja não são de todo prejudiciais, mas, será que isso se aplica para todos os que estão agora experimentando, ou os que fazem o uso diário?

Ninguém, absolutamente ninguém nasce sabendo quem será ou não um dependente quimico. Mesmo os filhos de dependentes quimicos que tem uma diferença genética que os torna mais suscetiveis não estão obrigatoriamente fadados a serem portadores dessa doença chamado álcoolismo ou “adicção”[3], depende de outros fatores e do contexto de suas vidas. Como saber quem se tornará um doente? O que nos leva a ficar doente? Penso sempre na brincadeira da roleta russa, um revolver, seis espaços, uma bala, puxa o gatilho, pode não ser na primeira, talvez nem na segunda, mas em algum momento, BUM! Nos tornamos um dependete quimico, um doente.

Curioso faço uso de diferentes substâncias desde 1980, e as músicas consideradas de contestação e que fazem apologia das drogas, como as de Raul Seixas, ou do grupo de RapDe menos crime”, com a musica “Fogo na bomba”, Racionais MC, em varias de suas músicas, Marcelo D2 em outras, exaltam a maconha, mas ao mesmo tempo, alertam “cuidado que ela pode te dominar!”, “voce tem de fazer a cabeça não ela te fazer a cabeça”.

Mesmo os que acreditam no carater benéfico dessas substâncias deveriam ter em mente que nenhum ser humano é igual a outro e que aquilo que não me faz mal talvez faça para outra pessoa, assim associado a toda luta pela discriminalização ou liberação deveria estar tambem a luta pelos esclarecimenos necessários quanto aos possíveis prejuízos que podem trazer a muitos.

Quanto a minha fala ser semelhante a da Globo, mais que isso o importante são meus atos. Moro no extremo da Zona Leste, PQ S. Rafael, distrito de São Matheus, minha casa fica em frente a um córrego poluído e fétido. Logo depois uma favela, hoje urbanizada, que existe há tanto tempo, ou mais que eu de vida. Trabalho em uma escola estadual que fica encravada no meio de outra favela próxima de casa; há tempos tive condições de sair desse lugar, de trabalhar em uma escola melhor localizada, mas….. fiz uma opção na vida. Ficar entre aqueles com que me identifico, viver onde minha familia viveu, colocar meus parcos recursos a sua disposição, a disposição de uma causa.

 

3. Algumas considerações sobre o tema drogas

Droga é toda substância química que, introduzida no organismo, provoca alterações no sistema nervoso central. Há vários tipos de drogas e aqui não nos interessa se são lícitas ou ilícitas. As características do indivíduo, a qualidade da droga, a expectativa sobre seus possíveis efeitos e as circunstâncias em que ocorre o consumo implicam situações diferentes. Por isso que é importante ressaltar que, para ser mais bem compreendido, o tema drogas precisa ser abordado considerando-se três fatores: o indivíduo, o produto e o contexto sociocultural. Há sempre um indivíduo que tem acesso a um produto em um contexto sociocultural qualquer.

Realmente existe prazer no uso de drogas. O problema está na memória, que, com o tempo, vai nos traindo, até chegarmos a uma doença incurável, que afeta o físico, o mental. Não negamos o prazer que se obtém com o uso de drogas, porém, o consideramos imediatista, e o preço a ser pago por ele extremamente alto.

Fala-se em predisposição do indivíduo, que seria determinada por sua história familiar e individual; porém, é necessário levar em conta o efeito atrativo do prazer e o significado que ele assume no universo do indivíduo, ou seja, o espaço que preenche e as expectativas que atende.

A tolerância se estabelece lentamente; o organismo permanece sensível ao excesso de droga. Isso significa que o uso repetido de determinada droga faz com que seja necessário usar doses cada vez maiores para obter os mesmos efeitos experimentados.

Nem todos fazem uso abusivo das drogas. Há os experimentadores, que se limita a poucas vezes; aqueles que fazem uso recreativo ocasional, isto é, indivíduos que utilizam um ou vários produtos de maneira esporádica; aqueles que fazem uso habitual ou funcional, ou seja, aqueles que reiteram o uso do produto, o qual, embora controlado, já ocasiona ruptura escolar, profissional, familiar e afetiva, mesmo quando a integração social (funcional) é preservada. O dependente disfuncional (toxicomaníaco) é aquele que estabelece uma relação de exclusividade com a droga, quando ela passa a dominar toda a sua vida e o torna um dependente químico.

Algumas das motivações podem ser: a curiosidade, qualidade natural do ser humano; os grupos ou movimentos culturais, em virtude da identificação com determinados modelos de comportamento; a fome, a falta de perspectivas, as dificuldades de relacionamento, a saúde, as dificuldades de acesso à informação e à formação cultural; a já citada busca do prazer imediato/intenso, ou seja, o desejo de chegar ao êxtase sem esforço da consciência.

A questão é que a memória registra o primeiro prazer. O uso contínuo é a busca da repetição desse prazer, que ficou registrado na memória, mas que não ocorrerá mais da mesma forma. A partir daí, vai-se desenvolvendo a doença.

A dependência não se dá somente em relação às drogas, mas também em relação às pessoas, aos objetos, às situações etc. e pode ser física (adaptação do organismo ao uso de determinada droga) ou psicológica (impulso para continuar usando a droga, [compulsão], para reexperimentar o prazer). Apesar de incurável, essa doença tem um tratamento, que pressupõe total abstinência das drogas e mudança radical na qualidade de vida.

Entre outros aspectos do processo de recuperação cito, como sugerem nos grupos de auto ajuda “abandonar as velhas companhias e os velhos lugares” esses estão muito associado a nossa vida durante o consumo dessas substancias, dentro do possível “reparar os erros que cometemos”, etc.

4.Nosso passado mais distante

Pensemos. Como na virada pro seculo XX os jovens do passado tinham contato ou chegavam ao anarquismo? Pelo que vemos na literatura e nos relatos que nos contaram os companheiros (as) mais velhos (as), eles chegavam pela familia que os levava ou através das juventudes libertárias que eram espaços de organização dos jovens.

Muitos desses pais e mães eram os mesmos homens e mulheres que faziam a campanha contra o tabaco ou as bebidas alcoólicas, por outro lado, ainda que se tomasse um copo de vinho isso não era fora de um contexto social, ou antes, das refeições. Com certeza havia os “borrachon”, dependentes das bebidas alcoólicas e até de outras substâncias no meio anarquista, mas o contexto, as relações interpessoais e a forma de organização devia proporcionar uma forma mais proterora e coerente de lidar com o problema.

Lembremos que no Brasil durante muito tempo uma das parcelas mais expressivas do movimento libertário era de cunho anarcosindicalista, contra esses a repressão estatal das várias ditaduras foi mais intensa. Sem contar os diversos outros problemas que o movimento enfrentou e que contribuiu para que o movimento perdesse muito da combatividade das décadas anteriores.

 

4.1.Década de 1960: É proibido proibir!

Posso estar falando uma besteira gigantesca, mas em nosso caso particular, acredito que começa a ocorrer uma mudança significativa na década de 1960 com os movimentos de contra-cultura, a agitação dos estudantes e trabalhadores franceses, a resistência a guerra do Vietnã, o movimento hippie. Com isso inauguram uma nova e forte onda de resistência a ordem estabelecida, no bojo dessa situação ocorrem outras mudanças tambem de contestação à forma de organização familiar, aos papeis pré-estabelecidos entre homens e mulheres, à educação reprodutora do status quo, a forma de produção em massa e a destruição do meio ambiente, as inúmeras ditaduras na America Latina, Central, etc.

Entre outras coisas os movimentos de contra-cultura trazem a experiementação de várias substâncias como forma de contestaçã da ordem. Como exemplo podemos citar os integrantes da banda The Doors, principalmente seu vocalista – Jim Morrisson, que usavam essas substancias para “abrir as portas da percepção”. Muitas foram as figuras de grande expressão na musica, literatura, cinema etc que morream de overdose “meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder” Cazuza.

Uma das frases e palavras de ordem mais emblemáticas do periodo foi “É PROIBIDO PROIBIR”, para muitos tinha relação com a censura que era intensa, hábitos e costumes arcaicos e ultrapassados que tudo proibia. Para outros com a crença de que nada podia ser proibido, e consequentemente tudo devia ser liberado, até aí tudo bem, cértissimo, nada deveria ser pura e simplesmente proibido. Nesse momento, para muitos, teve inicio o uso de várias substâncias químicas para experimentação que a muitos levará à doença, loucura ou morte, ouso dizer que a proporção dos que se recuperam, ou conseguem ter uma vida saudável após esse período é menor daqueles que continuam sofrendo. Entre muitos dos legados recebidos tão positivos, esse é um dos negativos.

4.2.Década de 1980 e o ressurgir do anarquismo

Existe uma literatura e historiografia comprometida com seus interesses de classe social ou politica, entre outros, os marxistas que tentaram fazer crer, que o anarquismo desapareceu. Contudo, pela convivencia com os militantes mais velhos, e inúmeras pesquisas sabemos que isso é uma mentira. Evidente que o anarquismo perdeu parte da força que tinha no passado, mas sempre se manteve vigilante, firme e forte nas brechas dessa sociedade.

Ressurge de forma pública na década de 80 com os companheiros do Centro de Documentação e Pesquisa Anarquista, e o jornal Inimigos do Rei na Bahia, do Grupo Anarquista Jóse Oiticica no RJ, em SP com o Centro de Cultura Social, reaberto no Brás em 1985, assim como outros em muitos lugares.

No CCS estavam nossos companheiros mais experientes, a geração que sobreviveu às ditaduras, hoje muitos falecidos, entre eles muitos espanhois que lutaram na guerra civil e portugueses que resitiram a ditadura salazarista, a esses se somaram trabalhadores e estudantes e professores universitários.

Mas, uma característica marcante desse momento é um enorme hiato geracional, uma diferença de idade que em muitos casos ultrapassava 30 anos. Quando cheguei ao CCS ainda participava do movimento punk, era estudante secundarista e metalúrgico tinha 20 anos e era um dos mais jovens, o que vinha logo após, tinha 20 anos a mais e os demais mais de 30.

Nós da década de 1980 começamos (ou demos continuidade) a um ciclo em que os jovens se iniciam cada vez mais cedo no mundo das experimentações das diferentes substâncias quimícas, geralmente primeiro em nossas casas nas festas familiares, ou com nossos pais. Quem não se recorda da cena? A “criança olhando para o copo de cerveja, vinho ou até caipirinha de alguém, e o outro diz, molha a chupeta no copo para ela não ficar com vontade; ela pode ficar doente, ter lombriga”. Era comum, habitual o uso doméstico de bebidas alcoólicas entre outras substâncias, e que depois se estendia para o uso com os colegas de escola ou de outros espaços, nos movimentos culturais juvenis com quem convivemos e onde os nossos modelos de pessoas eram outros igualmente doentes, muitos desses tambem ja falecidos de overdose.

Ainda que estudasse muito, diversos aspectos da vida como um todo e do anarquismo de forma geral, mantinha uma relação duvidosa e desafiadora em relação à sabedoria desses companheiros, no que diz respeito, a varios aspectos e tambem ao consumo das diferentes substâncias, das quais fazia uso, e negava os efeitos prejuciais. A NEGAÇÃO é a mais forte característica do dependente quimico, e, não por acaso, os grupos de autoajuda mais antigos e com melhores resultados Alcóolicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, propõem no seu programa de recuperação, que o primeiro passo do doente “é admitir que perdeu o controle sobre sua vida”.

Enfim, éramos nós, a caminho da adicção, assumindo a militância ao lado daqueles que no passado faziam as tais campanhas preventivas em relação às várias substâncias quimícas que podem trazer prejuizo a vida pessoal, familiar, politica e social do indivíduo. Esse hiato nunca foi uma disputa geracional explícita, mas com certeza havia muita desconfiança em relação a nossa geração. Valorizávamos a nossa própria experiência e negávamos a experiência dos outros, que estavam marcadas pela história de vida desses militantes além dos registros da historiografia e literatura.

Durante meus anos de CCS, convivendo com homens sábios e gentis, uma única vez, ouvi o Jaime Cubero, secretario do Centro de Cultura Social fazer um comentário pouco elogioso ao uso de substâncias químicas; certa feita bebendo cerveja em um grupo junto com o Chico Cubero, percebendo a velocidade com que eu sorvia a cerveja, ele me disse: “voce não acha que bebe demais?”

Certa vez, encontrei o professor Mauricio Tragtenberg perto da PUC onde lecionava, próximo de onde morava, e, conversando sobre a maconha, me disse: “não vejo graça, fumar e depois ficar de boca aberta ‘moscando’”. Se eles insistissem – Jaime e Chico Cubero e Maurício Tragtenberg –, só nos afastariamos, pois éramos – eu em particular – a própria negação em pessoa. Hoje, muitos de nós mais maduros, estamos dispostos a abordar e conversar sobre esse tema com um companheiro, um colega ou um familiar? Estamos preparados?

5. ANARQUISMO: a mais alta expressão da ordem!

Elisée Reclus afirma que o anarquismo é a mais alta expressão da ordem, pois, é a ordem livremente construída de baixo para cima e aceita por todos os envolvidos, mas, para o adícto esse tema, essa ordem existe na teoria, no campo do conhecimento e não na prática.

Jaime Cubero definiu como ideias força o queoutros definem como princípios anarquistas: liberdade/autonomia, organização do simples para o composto / federalismo (rede), auto­gestão, apoio mútuo e solidariedade; ideias-força que deveriam orientar as ações dos anarquistas em toda sua vida.

Para Daniel Guérin “não me torno livre se­não pela liberdade dos outros… A pessoa só realiza a liberdade individual desde que se complete com todos os indivíduos que o envolvem e somente graças ao trabalho e ao poder coletivo da sociedade”. Tal liberdade traz em si outro componente igualmente valioso que é a responsabilidade pelos seus atos, afinal como pessoa livre devo antes de qualquer coisa responder primeiro a minha propria consciência e depois a sociedade libertaria. Nessa direção Maurice Joyeux afirma que essa liberdade “(…) é o princípio que consubstância um dos ma­is altos valores humanos é inconcebível sem a igualdade econômica”.

O adicto por sua obssessão e compulsão reconhece a liberdade, mas não a vivência de forma responsável, senão o que dizer das suas falhas de carater, quando não é responsavel pelo seu dinheiro, pela sua vida? Como justificar isso aos seus companheiros de grupo, a sua familia, esposa, filhos e amigos, quando não age de forma coerente com o que defende.

O federalismo (REDE) deve ser visto como uma estrutura que cresce de baixo para cima, partindo do simples para o composto, da associação dos trabalhadores de uma empresa ou moradores, de uma região para outra e depois para a cidade, etc. A uma organização fundada na violência e no princípio da autoridade instituída: o ESTADO. Frente a essa instituição devemos opor associações fundadas na auto-organização das pessoas e dos grupos sociais, em âmbito do bairro, cidade, estado, nacão, etc. É o indivíduo livre que se associa com outros igualmente livres para gerir todos os assuntos que lhes dizem respeito.

O adícto estará mais (associado) federado, com seus companheiros de consumo, aqueles com quem convive com mais frequência para fazer o seu uso frequente. Como uma verdadeira federação, ele se encontrará com outros depedentes quimicos em qualquer lugar por onde andar, também nesse caso, os grupos de autoajuda sugerem como um dos seus passos “evitar os velhos caminhos e as velhas companhias”.

Para Joyeux autogestão não é uma estrutura no seio da qual se elabora uma experiência socialista, ela é o fruto de uma experiência socialista que resulta da ruptura revolucionária. É quando se produz essa ruptura que in­tervém a autogestão, simultaneamente como autogestão das lutas e da economia (ou o que restar dela).

Como um adícto pode autogerir sua vida sendo dependente de substâncias quimicas, de pessoas como o traficante ou de lugares onde geralmente consuma ou de objetos que fazem parte de seus rituais de uso?

É importante ressaltar que os libertários reconhecem a necessidade da adoção de regras em toda a sociedade; não pode existir autogestão sem regras. A consideração importante não é tanto se devem existir regras, e sim, sobretudo, o modo como as regras serão criadas, os processos determinarão sua extensão.

Ainda que o adicto possa durante boa parte de sua vida ser um ser social produtivo e atuante nessa sociedade idealizada, quanto tempo levará para que ele se torne, pela sua condição de doente, um peso no futuro? È justo e aceitavel que a sua liberdade vivenciada de forma tão irresponsável o torne um fardo para os demais?

De acordo com Errico Malatesta, essa forma de organização da sociedade pretendida pelos anarquistas “(…) outra coisa não é senão a prática da cooperação e da solidariedade, condição natural, necessária, da vida social, fato inelutá­vel que se impõe a todos tanto na sociedade humana quanto em todo grupo de pessoas que tenham um objetivo comum a alcançar”.

Com sua forma específica de organização e a aplicação desses princípios, os anarquistas desejam abolir de forma radical a dominação e a exploração do homem pelo homem. Querem os homens, unidos fraternalmente por uma solidariedade consciente, que cooperem de modo voluntário com o bem estar de todos, que essa sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem estar possível, o maior desenvolvimento possível moral e material.

O adicto é solidário e cooperativo até o momento que isso não dificulte seu desejo de consumir, não atrapalhe seus momentos e rituais de consumo. Quando isso acontecer ele se verá em uma situação que tanto poderá optar por continuar se enganando nessa zona de conforto quanto confrontando seu problema, buscando ajuda e descobrindo sua doença, incurável, mas tratável.

Os anaquistas estimam ser necessário que os meios de produção estejam à disposição de todos e que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas, possa obrigar outros a obedecerem a sua vontade, nem exercer sua influência de outra forma senão pela ar­gumentação e pelo exemplo. Que exemplo damos quando não temos o controle sobre nossas próprias vidas? Quando muitas vezes nos engamos dizendo “eu uso, mas paro quando quiser, tenho controle sobre minha vida, não sou viciado?”, mas, na prática ja não vivo sem usar.

Como o adícto pode estar pronto para a ação direta – que é democrática, pois cria espaços públicos em que cada um é um e você não delega a ninguém, por isso os anarquistas são contra o voto obrigatorio nas eleições, defendem a auto-representação, cada cidadão é cidadão de si mesmo – se muitas vezes ele esta presente com a mente ausente, na pratica delegando a outros lutarem por ele?

Para os anarquistas é necessário proceder imediatamente e como se puder à expropriação dos capitalistas; ocupa­ção das fábricas, das terras, dos bancos, meios de transporte pelos trabalhadores. Inventário de todos os bens de consumo disponíveis e organização da produção e da distribuição através dos sindicatos, das cooperativas, das câmaras de trabalho, dos grupos de voluntários e de todos os tipos de associações existentes ou que se constituirão para responder as ne­cessidades imediatas. A autogestão.

É uma necessidade imediata lutar para poder consumir? Consumir algo sem o que vivemos bem? Quando em particular entramos nessa ciranda de consumo nos diferenciamos dos playboys,que criticamos por irem ao shopping gastar com roupas e calçados caros? Como dizemos, roupas de grife famosas? Quando comprometidos com um grupo de militantes, colegas de um time de futebol ou uma familias e escondemos parte ou a totalidade do dinheiro que recebemos pelo nosso trabalho para nosso consumo dessas substâncias quimícas estamos de fato sendo éticos?

Em uma sociedasde libertária o uso, seja lá do que for, deverá ser livre, mas, será igualmente estimulado por todo tipo de propaganda? Não nos dedicaremos a estudar esse e outros aspectos de nossas vidas, para nos orientar e divulgar o resultado de nossas pesquisas, alertando para os malefícios que substâncias, alimentos, prática de vida, etc, que podertão causar danos em nossa vida em sociedade?

Enfim, com as tecnologias disponíveis seria possível realizar assembléias, mesmo que por respresentação, onde todos poderiam acompanhar os debates, e até intervir nas votações através das redes de computadores hoje disponiveis. Fazer reuniões e assembléias de bairro, cidades, intercidades, por regiões, naciona­is, internacionais que tomariam as iniciativas necessárias, em concordância com as dos outros, e que as realizariam sem pretender fazer a lei para todos, nem as impor pela força aos reticentes.

6.Prazer e doença.

É evidente que alguns consumirão seus baseados ou suas cervejas, vinhos e outras bebidas, seus “remédios” sem prescrição médica, etc, durante toda a vida e não terão problemas, serão pais e mães responsáveis, militantes comprometidos, mas, podem garantir que se tiverem problemas conseguirão superar a negação? Procurarão ajuda? Sabem onde procurar?

Não posso negar o “prazer” que desfrutei durante certo tempo de minha experiência, contudo, com o consumo cada vez mais compulsivo e obssessivo fui perdendo o controle e comprometendo, a minha qualidade de vida, bem como daqueles que mais amo.

As drogas proporcionam prazer? Sem sombra de duvidas! Afinal temos uma dor de dente e tomamos uma droga para aliviá-la. Era prazeroso beber uma cerveja, mas o que dizer de uma dezena ou mais? Desde a adolescência tenho insônia e nada mais prazeroso que fumar um baseado para dormir bem, mas e quando não o temos, não teremos insônia do mesmo jeito? E quando, além da hora de dormir, fumamos durante todos os momentos do dia? E quando nosso último pensamento antes de dormir é “fumar um”, e ao acordar é fumar outro? Isso para ficar nas drogas, cuja dependência se estabelece mais lentamente, existem outras cuja dependencia é mais rapida e intensa, nos torna doentes mais rapidamente, com um comprometimento pessoal quase que total. Existe sim o prazer, mas nesse caso, o preço pago por ele é alto demais e imediatista.

Ação preventiva

Estarão os companheiros atuais e futuros, usuários das mais diferentes substâncias químicas, em condições de reconhecer sua lenta e paulatina perda de controle? Do desenvolvimento dessa doença chamada alcoolismo e adicção? Aqueles que hoje dizem não ter esses tipos de problemas podem afirmar, sem nenhuma sombra de dúvidas, que não os terão?

Os que são usuários, e acreditam ter esse controle, conseguem reconhecer que isso pode, ou está, acontecendo em qualquer lugar, inclusive, na sua casa, no seu local de estudo, trabalho, cultura e lazer?

Estamos prontos a exercer de forma responsavel e solidária nossa liberdade, no sentido de conversar com esses companheiros, amigos e familiares, convidando-os a perceber o quanto que comprometem suas vidas? O quanto eles e nós perdemos em nossas vidas com suas escolhas? O quanto isso é um projeto de MORTE e o ANARQUISMO propõe um projeto de VIDA?

Somos cooperativos o suficiente em apoiá-los para que sintam a confiança necessária, e novamente assumirem o controle de suas vidas? Para autogerirem suas vidas de forma autonôma, responsável, solidária, cooperativa na obra comum que nos propomos realizar?

Que se libere o consumo de todo tipo de substancias quimicas. Muitos argumentam que morrerão muitas pessoas! Não morrem hoje? A proibição é um fenomeno politico e cultural. Em outras epoca e contextos o que hoje esta proibido ja foi liberdado, vemos pelo mundo experiencias de discriminalização, liberação e ate de legalidade. Mas sempre tenhamos a coragem de assumir uma posição de questionamento em relação a tudo, inclusive ao nosso exercicio da liberdade.

Continuo tendo amigos e colegas que são usuários contumazes e muito os respeito, mas, “quem quiser julgar que julgue, quem quiser criticar que critique”, (qualquer semelhança com Zeca Pagodinho não é mera coincidencia), posso falar por experiência que, no meu caso não deu certo. Convivi, e convivo, na condição de educador, ser politico e social, morador da periferia com essa experiencia que para muitos continua não dando certo.

Às vezes, acho que hoje ser careta é ser revolucionário, pois são muitas as desculpas e estímulos que nos levam a experimentação e ao uso abusivo e indevido dos mais diferentes tipos e substâncias químicas.

Antono Carlos de Oliveira (Professor Coordenador Pedagogico da EE prof Isaac Shraiber – Março de 2014)

[1] No processo de construção desse texto dois companheiros e amigos foram imprescindíveis, Jose Damiro Moraes Professor Doutor em Educação e Edvaldo Vieira da Silva Doutor em Ciências Sociais, ainda assim todas as ideias aqui apresentadas são de minha única e exclusiva responsabilidade.

[2] Agradeço imensamente aos companheiros do NELCA por abrirem o espaço para essa discussão, não é um ponto de vista muito comum e ainda que seja de minha responsabilidade tudo que exponha eles são os responsáveis pelo espaço e sua programação.

[3] Adicto é a forma como é tratado o usuário de vários tipos de substancias químicas diferentes, uso por ser o mais comum, mas é tema controverso, afinal o alcoólatra que é tabagista não faz uso de duas substancias químicas diferentes? Muitos alcóolatras em recuperação não aceitam tal definição.