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(Artigo) Eleição é farsa, movimentos sociais e organizações anarquistas também! Ou carta aberta de um anarquista cansado do falatório brasileiro

Poderia começar esse texto de inúmeras formas com base nas coisas que vivi antes, durante e após 2013. E faço questão de colocar 2013 como um marco, não pelo modismo da militância (a quem, carinhosamente, chamarei de “militôncia”) mas sim por reconhecer que aquele ano foi marcante do ponto de vista da mobilização nas ruas. Nasci, cresci e vivi boa parte da minha vida rodeada por tiroteios, pneus em chamas, assassinatos e pequenas manifestações por falta d’água. Sou negro, o bairro em que cresci foi conhecido por ser uma área “neutra”, divisa entre duas facções rivais. Até 2013, por N motivos que eu poderia aqui colocar, eu realmente acreditava que a população ao meu redor estava anestesiada demais, demais mesmo, para mobilizar-se e fazer algo que valesse a pena. E olha que motivações da área em que nasci não faltaram, mas eu sei que chega uma hora que é preciso escolher entre se arriscar para mudar o sistema ou entregar-se a um individualismo vazio e inerte. E veja bem, faço questão de escrever “a um”, pois acredito sim que existem inúmeros individualistas muito mais dispostos e interessados em mudar o cenário caótico que a humanidade como um todo que já convivi do que meia dúzia de gato pingado fechado num clubinho organizativo. Mas, voltando ao assunto…

Sim, 2013 aconteceu, foi intenso e passou. Dele, ficou inúmeras provas de que é possível fazer algo real e concreto a partir da mobilização de pessoas interessadas em mudar a realidade em que vive. Porém, para a minha infelicidade, e acredito para infelicidade de muitos, apesar dessas provas e de tantas chances que temos tido para simplesmente SENTAR e CONVERSAR sobre o mundo que nos cerca, sem abrir mão das individualidades e optando pela difusão de um pensamento realmente LIBERTÁRIO, o que mais tenho visto são disputas acirradas, dentro e fora de coletivos, por poder. E é exatamente sobre esse poder, que julgo ser inexistente, e o que tem sido feito para alcançá-lo, que gostaria de passar o que venho sentindo através desse texto.

Em primeiro lugar, já passou da hora de alguns brasileiros acordarem para o fato de que O SÉCULO XIX/XX ACABOU! CHEGA! Sabe aquele livrinho lindo e adorável que você guarda na sua cabeceira revolucionária dessa sua casa de dois quartos e carro na garagem? Pois é, o meu “foda-se” pra ele, para seu autor/autora e para seus lindos e cegos militontos doutrinadores. Acordem, não estamos na revolução russa, não estamos na revolução espanhola, não estamos na Grécia, não estamos na Alemanha, essa porra não é a Islândia, essa porra é Brasil! Qual a dificuldade de colocar na cabecinha de vocês que somos um país historicamente COLONIZADO? Que aqui viviam povos cuja cultura simplesmente foi DESTRUÍDA, e que em nenhum momento os povos que aqui viviam (e os poucos que ainda vivem) pediram para teorias eurocêntricas do século passado se tornarem a salvadora de suas vidas? Qual a impossibilidade de compreender que para esse mesmo país, nós, negros e negras, que também tiveram suas culturas e sistemas políticos destruídos por impérios, fomos trazidos para cá e forçados a viver desprovidos de suas práticas culturais, políticas e sociais? E se nem os povos originários ou o povo negro estiverem mais a fim de brincar com a doce revolução que vocês tanto superestimam?

“Ahhhhh, quanto sectarismo nesse seu discurso!” Se fazer com que vocês entendam que muitos de nós não precisam de salvadores europeus é sectarismo, então está certo, está na hora de ser sectário! Porque quando a democracia representativa decide revelar sua verdadeira face e entrega na mão de empresários a pauta da demarcação de terras indígenas e a tal da inexistente reforma agrária, além de ainda autorizar o genocídio institucional da população negra e moradora da favela, o que, na prática, é a criminalização da pobreza, a Igreja Revolucionária do Último Dia e sua militôncia rapidamente aparece e diz que o caminho da salvação é esse ou aquele burguês barbudo com nome impronunciável para a maioria de nós! E o pior: se as reais vítimas desse sistema podre que só representa os interesses de quem pode pagar mais simplesmente decidem ignorar profecias marxistas ou bakuninistas… O tal revolucionário salvador das crianças simplesmente deixa cair sua máscara e se torna mais um tirano com sede de poder.

Outro ponto que não posso deixar passar batido: ANARQUISMO NÃO É SINÔNIMO DE PERFEIÇÃO ÉTICA E MORAL! Parem de achar que os anarquistas são seres incorruptíveis e que toda palavra que começa com o radical “anarco” é algo incrível e absoluto em si mesmo! O curioso é que seus principais idealizadores enquanto um sistema de ideias e práticas políticas e sociais ficariam espantados como os anarquistas brasileiros conseguem ser mais fascistas e estúpidos que muitos seguidores de Mussolini, Franco e diria até mesmo Hitler. Uma das coisas mais imbecis e idiotas que venho vendo desde 2013 está, curiosamente, no tal “movimento” anarquista brasileiro: a disputa pelo poder do discurso. Sim,  pessoas queridas, os anarquistas brasileiros optaram por gastar uma boa dose de tempo numa batalha verborrágica e entediante onde o tabuleiro é, nada mais nada menos que o Brasil e suas possibilidades diante do mundo, as peças são os seres sem luz anarquista (99% do país) e os jogadores somos nós, humanos dotados de uma magnífica capacidade de articular palavras e orações com tanta perfeição que até o Aurélio deve ter sido anarquista! Se bobear, Pasquale idem.

Nesse “War: Anarquismo”, verdadeiros guias espirituais jogam dados e posicionam seus pupilos anarcotontos em nome de bandeiras especifistas, sintetistas, plataformistas e toda sorte de –ismos e –istas que você puder contar. O objetivo final é conquistar regiões, formar federações e preparar-se para o inverno que está por vir. O único problema é que no final do jogo o vencedor descobre que as armas utilizadas não passam de interjeições e verbetes que até funcionaram em países europeus, mas que para cá os mesmos só conseguirão mobilizar pseudohackers, pós-graduandos anarcoturistas e uma meia dúzia de fodidos (que funcionam como ótimos idiotas úteis caso se incluam na categoria “negros, índios, e/ou quilombolas”). E qual seria esse discurso tão poderoso quanto a palavra execrável das Crônicas de Nárnia? Matou a charada se você pensou em Bakunin e sua turma.

Mas ora essa, não foi o próprio Bakunin que combateu esse personalismo bobo e burrocêntrico que esses anarcomimizentos brasileiros tanto parecem adorar e gozar quando destilam altas doses de teorias e mais teorias após uma boa madrugada regada de cerveja com milho transgênico produzida e fornecida pela AMBEV? Pois é… Ou tem algo de muito errado nessa tal de anarquia ou simplesmente não existem anarquistas no Brasil. Eu prefiro acreditar que não existe movimento anarquista brasileiro, e que boa parte dos que assumem para si a face de “anarquista” não passam de humanos putos com a vida (e com bons motivos) incapazes de desconstruir a si mesmos e que, na verdade, apenas reproduzem discursos de/e por poder. Libertários? Não… Isso é piada dentro do pretenso anarquismo verde, amarelo e preto. Os poucos e insignificantes libertários que existem pelas bandas de cá ou optaram por aquele individualismo que defendi no início ou simplesmente decidiram se isolar. Enquanto isso, o que resta são falsos anarquistas fechados em seus clubes de bolinhas, luluzinhas e azeitonas tramando o momento em que soltarão uma gargalhada do mal e dirão “hasta la vista, baby!” para todo esse sistema capitalista malvado e cruel que nos cerca e nos explora e blablabla…

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“O anarquismo está morto”

É preciso ter CORAGEM para admitir que estamos na contra-mão de tudo e de todos/todas e que ERRAMOS e continuamos ERRANDO. Escrevendo como anarquista que tento ser, não acredito mais em revoluções fantásticas, juntar força no submundo da clandestinidade e aguardar o sinal da esperada transformação social. O Estado não é mais o grande vilão da história humana (se é que, penso eu, um dia foi, de fato). Numa realidade capitalista como a nossa, o Estado é o disfarce perfeito, é o colete a prova de balas que protege e blinda os verdadeiros inimigos da liberdade. E nessa NOSSA realidade, que os mais velhos PRECISAM entender se quiserem continuar falando numa linguagem comum, a tecnologia tornou-se o calcanhar de Aquiles para todos e todas, tanto para quem controla quanto para quem é controlado.

Porém, quem controla um território, em qualquer parte do mundo de hoje, de forma lícita ou ilícita, sabe que precisa ter um exército a sua disposição. O controle só é possível porque há uma ordem imposta através da força. E não importa o que nós façamos, enquanto todo o aparato produtor estiver à disposição dos controladores da humanidade, sempre haverá uma força maior preparada para impedir a tal “revolução”. Sério mesmo que vamos brincar de atirar com fuzis de madeira produzidos na clandestinidade contra armamentos pesados e pessoal bem treinado? É ainda mais sério que tem pessoas cegas de ambição sonhando em treinar grupos de elite para usar força contra força? Idiotices a parte, acredito que NADA irá mudar enquanto não travarmos e vencermos uma guerra muito mais urgente e que não demanda armas ou exércitos e que, por sua vez, pode subverter a ordem: a luta pela consciência e individualidade de cada humano que ainda consegue sentir-se humano neste mundo.

Estado e capitalismo só se tornaram possíveis porque seus idealizadores foram fortes pensadores do materialismo, cuja mesma filosofia influenciou práticas que até hoje atacam e destroem culturas milenares e libertárias. E essas culturas ainda sobrevivem em todo o planeta, numa clara resistência ao modelo de humanidade que está perversamente sendo construído há anos e que às vezes penso que nem os iluminados doutores da anarquia conseguem perceber. Não haverá humanidade se mantivermos a exploração do homem pelo homem, e essa exploração só se torna possível a partir de práticas que cada vez mais reduzem a possibilidade de diversificar o pensamento. É essa a realidade que a maioria de nós vive nesse mundo. É para ela que os que desejam sinceramente mudá-la devem se atentar para subverter. E isso tudo não deve ser, acredito eu, encarado como mais um discurso que apela para o surgimento de salvadores. Pelo contrário, pode e deve ser debatido, questionado, discordado, acrescentado, etc. Porém, antes de mais nada, é preciso que as pessoas entendam de uma vez por todas que nenhuma transformação social, e é nesse ponto que queria chegar, será possível se não houver reais transformações individuais. Um indivíduo que apenas repete discursos sem colocá-los em prática não passa de uma máquina a serviço de um projeto por poder.

O pior de tudo é que enquanto houver brigas verborrágicas e perda de tempo pela escolha daquele que será o melhor discurso a ser dito, haverá uma parcela cada vez maior de culturas destruídas, humanos maquinizados e aniquilação do pensamento. Por isso mesmo digo e repito: paremos de brigar por poder. Poder popular, poder para o povo, poder por poder, tudo não passa de verbos e slogans, mantras de posturas cada vez menos libertárias e mais libertícidas. Ou os indivíduos admitem que seus universos pessoais precisam ser, primeiramente, libertados para então estimular-se o pensamento libertário entre todos e todas, ou em breve seremos apenas um borrão na história daqueles que se colocarão como vencedores nessa disputa tola por poder e levarão o que sobrar da humanidade para o limbo do esquecimento (ou vocês realmente acham que nós, seres irrelevantes e estúpidos, vamos colonizar essa planetinha azul para sempre?).

Por R29 | Colaborador da Rede de Informações Anarquistas

“De baixo para cima, RIA você também!”

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(Artigo) Anarquismo Negro, por Ashanti Alston

Dando continuidade a série de reflexões sobre Anarquismo Negro, compilação organizada pela Rede de Informações Anarquistas atendendo a necessidade de seguir descolonizando o anarquismo, reproduzimos aqui a tradução de um texto escrito por Ashanti Alston, ex-Panteras Negras. Agradecemos a Mariana Santos, do Coletivo Das Lutas, pela tradução, que contou com apoio de Caralâmpio Trillas. O texto a seguir foi originalmente publicado no site do Das Lutas. Os outros dois textos da série podem ser encontrados aqui (relato da greve na UFRJ sob a perspectiva de um coletivo negro) e aqui (tradução de um texto de outro ex-Panteras Negras, Lorenzo Kom’boa Ervin).


ashantiMuitos anarquistas clássicos consideravam o anarquismo como um corpo de verdades elementares que apenas precisavam ser reveladas ao mundo e acreditavam que as pessoas se tornariam anarquistas uma vez expostas à lógica irresistível da ideia. Esta é uma das razões pelas quais eles tendiam a ser tão didáticos.

Felizmente a prática vivida do movimento anarquista é muito mais rica do que isso. Poucos “convertem-se” de tal forma: é muito mais comum que as pessoas abracem o anarquismo lentamente, à medida que descobrem que é relevante para a sua experiência de vida e permeável a suas próprias percepções e preocupações.

A riqueza da tradição anarquista está justamente na longa história de encontros entre dissidentes não-anarquistas e o quadro anarquista que herdamos do final do Século XIX e início do Século XX. O anarquismo tem crescido através de tais encontros e agora enfrenta contradições sociais que antes eram marginais ao movimento. Por exemplo, há um século atrás, a luta contra o patriarcado era uma preocupação relativamente menor para a maioria dos anarquistas, mas hoje é amplamente aceita como uma parte integrante da nossa luta contra a dominação.

Foi somente nos últimos 10 ou 15 anos que os anarquistas na América do Norte começaram a explorar à sério o que significa desenvolver um anarquismo que tanto pode combater a supremacia branca como articular uma visão positiva da diversidade cultural e de intercâmbio cultural. Camaradas estão trabalhando duro para identificar os referenciais históricos de tal tarefa, como o nosso movimento deve mudar para abraçá-lo, e como um anarquismo verdadeiramente antirracista pode parecer.

O seguinte material, de Ashanti Alston, membro do conselho do IAS, explora algumas destas questões. Alston, que era membro do Partido dos Panteras Negras e do Exército Negro de Libertação, descreve o(s) seu(s) encontro(s) com o anarquismo (que começou quando ele foi preso por atividades relacionadas com o Exército Negro de Libertação). Ele toca em algumas das limitações das visões mais antigas do anarquismo, a relevância contemporânea do anarquismo para os negros, e alguns dos princípios necessários para construir um novo movimento revolucionário.

Esta é uma transcrição editada de uma palestra dada por Alston em 24 de outubro de 2003 no Hunter College, em Nova York. O evento foi organizado pelo Instituto de Estudos Anarquistas e co-patrocinado pelo Movimento Estudantil de Ação Libertadora, da Universidade de Cidade de Nova York ~ Chuck Morse


Embora o Partido dos Panteras Negras fosse muito hierárquico, eu aprendi muito com a minha experiência na organização. Acima de tudo, nos Panteras me marcou a necessidade de aprender com as lutas de outros povos. Eu acho que tenho feito isso e essa é uma das razões pelas quais sou um anarquista hoje. Afinal, quando velhas estratégias não funcionam, precisamos olhar para outras formas de fazer as coisas, para ver se podemos nos descolar e avançar novamente. Nos Panteras, absorvemos muita coisa de nacionalistas, marxistas-leninistas, e de outros como eles, mas suas abordagens para a mudança social tinham problemas significativos e me aprofundei no anarquismo para ver se haviam outras maneiras de pensar sobre como fazer uma revolução.

Eu aprendi sobre anarquismo através de cartas e de literatura enviadas para mim, enquanto estava em várias prisões por todo o país. No começo eu não queria ler qualquer material que recebi – parecia que o anarquismo era apenas sobre o caos e todo mundo fazendo suas próprias coisas – e por muito tempo eu o ignorei. Mas houve momentos – quando eu estava na solitária – que não tinha mais nada para ler e, para fugir do tédio, finalmente comecei a meter a mão no tema (apesar de tudo o que eu tinha ouvido falar sobre o anarquismo até o momento). Fiquei realmente muito surpreso ao encontrar análises de lutas populares, culturas populares e formas de organizações populares – aquilo fez muito sentido para mim.

Estas análises me ajudaram a ver coisas importantes sobre a minha experiência nos Panteras que não estavam claras para mim antes. Por exemplo, eu pensei que havia um problema com a minha admiração por pessoas como Huey P. Newton, Bobby Seal, e Eldridge Cleaver e com o fato de que eu os tinha colocado em um pedestal. Afinal de contas, o que isso diz sobre você, se você permitir que alguém se estabeleça como seu líder e tome todas as suas decisões por você? O anarquismo me ajudou a ver que você, como um indivíduo, deve ser respeitado e que ninguém é suficientemente importante para pensar por você. Mesmo que nós achemos que Huey P. Newton ou Eldridge Cleaver são os piores revolucionários do mundo, eu deveria me ver como o pior revolucionário, exatamente como eles. Mesmo que eu fosse jovem, tenho um cérebro. Eu posso pensar. Eu posso tomar decisões.

Eu pensei em tudo isso enquanto estava na prisão e me vi dizendo: “Cara, nós realmente nos colocamos de uma forma que éramos obrigados a criar problemas e produzir cismas. Fomos obrigados a seguir programas sem pensar”. A história do Partido dos Panteras Negras, tão incrível como é, tem esses esqueletos. A menor pessoa no totem deveria ser um trabalhador e o que estava na parte superior era quem tinha o cérebro. Mas na prisão eu aprendi que eu poderia ter tomado algumas dessas decisões sozinho e que as pessoas ao meu redor poderiam ter tomado essas mesmas decisões. Embora eu tenha apreço por tudo o que os líderes do Partido dos Panteras Negras fizeram, eu comecei a ver que podemos fazer as coisas de forma diferente e, assim, extrair mais plenamente nossas próprias potencialidades e nos encaminharmos ainda mais para uma autodeterminação real. Embora não tenha sido fácil no início, insisti com o material anarquista e descobri que eu não poderia colocá-lo de lado, uma vez que começou a me dar vislumbres. Eu escrevi para pessoas em Detroit e no Canadá, que tinham me enviado a literatura, e pedi para que me enviassem mais.

No entanto, nada do que eu recebi tratava de pessoas negras ou latinas. Talvez houvesse discussões ocasionais sobre a Revolução Mexicana, mas nada falava de nós, aqui, nos Estados Unidos. Houve uma ênfase esmagadora sobre aqueles que se tornaram os anarquistas fundadores – Bakunin, Kropotkin, e alguns outros – mas estes valores europeus, que abordavam as lutas europeias, realmente não dialogavam comigo.

Eu tentei descobrir como isso se aplicava a mim. Comecei a olhar para a História Negra de novo, para a História Africana, e as histórias e lutas das outras pessoas de cor. Eu encontrei muitos exemplos de práticas anarquistas nas sociedades não europeias, desde os tempos mais antigos até o presente. Isso foi muito importante para mim: eu precisava saber que não eram apenas os europeus que poderiam funcionar de uma forma antiautoritária, mas que todos nós podemos.

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“Pantera: poder para o povo… antes e agora.”

Fui encorajado por coisas que eu encontrei na África – não tanto pelas antigas formas que chamamos de tribos – mas por lutas modernas que ocorreram no Zimbabwe, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ainda que fossem liderados por organizações vanguardistas, eu vi que as pessoas estavam construindo comunidades democráticas radicais na base. Pela primeira vez, nesses contextos coloniais, os povos africanos estavam criando o que era chamado pelos angolanos de “poder popular”. Este poder popular tomou uma forma muito antiautoritária: as pessoas não estavam só conduzindo suas vidas, mas também as transformando enquanto lutavam contra qualquer poder estrangeiro que os oprimia. No entanto, em cada uma dessas lutas de libertação, novas estruturas repressivas foram impostas logo que as pessoas chegavam próximo à libertação: a liderança estava obcecada com idéias de governança, em estabelecer um exército permanente, em controlar as pessoas depois que os opressores forem expulsos. Uma vez que a tão apregoada vitória foi conseguida, o povo – que havia lutado durante anos contra os seus opressores  – foi desarmado e, em vez de existir um poder popular real, um novo partido foi instalado no comando do Estado. Assim, não houve reais revoluções ou a verdadeira libertação em Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Zimbabwe, porque eles simplesmente substituíram um opressor estrangeiro por um opressor nativo.

Então, aqui estou eu, nos Estados Unidos, lutando pela libertação negra e me perguntando: como é que podemos evitar situações como essa? O anarquismo me deu uma maneira de responder a esta questão, insistindo que nós ponhamos no lugar, como fazemos em nossa luta agora, as estruturas de tomada de decisões e de fazer coisas que continuamente tragam mais pessoas para o processo, e não apenas deixar a maioria das pessoas “iluminadas” tomarem decisões por todos os outros. O próprio povo tem que criar estruturas em que articulem sua própria voz e em que tomem suas próprias decisões. Eu não recebi isso de outras ideologias: eu recebi isso do anarquismo.

Também comecei a ver, na prática, que as estruturas anarquistas de tomada de decisão são possíveis. Por exemplo, nos protestos contra a Convenção Nacional Republicana, em agosto de 2000, eu vi os grupos normalmente excluídos – pessoas de cor, mulheres e gays – participarem ativamente de todos os aspectos da mobilização. Nós não permitimos que pequenos grupos tomassem decisões por outros e, apesar de as pessoas terem diferenças, elas eram vistas como boas e benéficas. Era novo para mim, depois da minha experiência nos Panteras, estar em uma situação onde as pessoas não estão tentando disputar o mesmo lugar e realmente abraçam a tentativa de resolver nossos interesses por vezes contraditórios. Isso me deu algumas idéias sobre como o anarquismo pode ser aplicado.

Também me fez pensar: se pode ser aplicado para os diversos grupos no protesto contra a Convenção, poderia eu, como um ativista negro, aplicar essas coisas na comunidade negra?

Algumas de nossas idéias sobre quem somos como povo bloqueiam nossas lutas. Por exemplo, a comunidade negra é muitas vezes considerada um grupo monolítico, mas na verdade é uma comunidade de comunidades com muitos interesses diferentes. Penso em ser negro não tanto como uma categoria étnica, mas como uma força de oposição ou como pedra de toque para ver as coisas de forma diferente. A cultura negra sempre foi opositora e tudo isso é a busca de caminhos para criativamente resistir à opressão aqui, no país mais racista do mundo. Então, quando eu falo de um Anarquismo Negro, não está tão ligado à cor da minha pele, mas quem eu sou como pessoa, como alguém que pode resistir, quem pode enxergar de uma forma diferente quando eu estou bloqueado e, assim, viver de forma diferente.

O que é importante para mim sobre o anarquismo é a sua insistência de que você nunca deve ficar preso em velhas e obsoletas abordagens e sempre deve tentar encontrar novas maneiras de ver as coisas, de sentir e de se organizar. No meu caso, eu apliquei pela primeira vez o anarquismo no início de 1990 em um coletivo que criamos para rodar o jornal dos Panteras Negras novamente. Eu ainda era um anarquista “no armário” neste momento. Eu ainda não estava pronto para sair e me declarar um anarquista, porque eu já sabia o que as pessoas iriam dizer e como eles iriam olhar para mim. Quem eles veriam quando digo “anarquista”? Eles veriam os anarquistas brancos, com todos aqueles cabelos engraçados, etc. e dizer “como diabos é que você vai se envolver com isso?”

Houve uma divisão neste coletivo: de um lado havia companheiros mais velhos que estavam tentando reinventar a roda e, por outro, eu e alguns outros que diziam: “Vamos ver o que podemos aprender com a experiência vinda dos Panteras e construir em cima dela e melhorá-la. Nós não podemos fazer as coisas da mesma maneira”. Enfatizamos a importância de uma perspectiva antissexista – uma velha questão dentro dos Panteras – mas do outro lado estava algo do tipo “eu não quero ouvir todas essas coisas feministas”. E nós dissemos: “Tudo bem se você não quer ouvir isso, mas queremos que as pessoas jovens ouçam, para que eles saibam sobre algumas das coisas que não funcionaram nos Panteras, para que eles saibam que nós tivemos algumas contradições internas que não poderíamos superar”. Nós tentamos forçar a questão, mas se tornou uma batalha e as discussões tornaram-se tão difíceis que uma separação ocorreu. Neste ponto, deixei o coletivo e comecei a trabalhar com grupos anarquistas e antiautoritários, que foram realmente os únicos a tentarem lidar de forma consistente com essas dinâmicas até o momento.

Uma das lições mais importantes que eu também aprendi com o anarquismo é que você precisa olhar para as coisas radicais que já fazemos e tentar incentivá-las. É por isso que eu acho que há muito potencial para o anarquismo na comunidade negra: muito do que já fazemos é anarquista e não envolve o Estado, a polícia ou os políticos. Nós tomamos conta um do outro, nós nos importamos com os filhos uns dos outros, nós vamos para o mercado uns para os outros, encontramos maneiras de proteger nossas comunidades. Até mesmo igrejas ainda fazem as coisas de uma forma muito comunal, até certo ponto. Eu aprendi que existem maneiras de ser radical sem ficar distribuindo literatura e dizendo às pessoas: “Aqui está o retrato da situação, se você enxergar isso, vai seguir automaticamente a nossa organização e se juntará à revolução”. Por exemplo, a participação é um tema muito importante para o anarquismo e também é muito importante na comunidade negra. Considere o jazz: é um dos melhores exemplos de uma prática radical existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de um ambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. Nossas comunidades podem ser da mesma forma. Podemos reunir todos os tipos de perspectivas de fazer música, de fazer revolução.

Como podemos nutrir cada ato de liberdade? Seja com as pessoas no trabalho ou as pessoas que passam o tempo na esquina, como podemos planejar e trabalhar juntos? Precisamos aprender com as diferentes lutas ao redor do mundo que não são baseadas em vanguardas. Há exemplos na Bolívia. Há os zapatistas. Há grupos no Senegal construindo centros sociais. Você realmente tem que olhar para as pessoas que estão tentando viver e não necessariamente tentando chegar com as idéias mais avançadas. Precisamos tirar a ênfase do abstrato e focar no que está acontecendo na base.

Como podemos construir com todas estas diferentes vertentes? Como podemos construir com os Rastas? Como podemos construir com as pessoas da Costa Oeste que ainda estão lutando contra o governo, por conta da mineração em terras indígenas? Como podemos construir com todos esses povos para começar a criar uma visão da América que seja para todos nós?

Pensamento de oposição e os riscos de ser oposição são necessários. Eu acho isso é muito importante neste momento e uma das razões pelas quais eu acho que o anarquismo tem muito potencial para nos ajudar a seguir em frente. E isso não é um pedido para aderirmos dogmaticamente aos fundadores da tradição, mas para estarmos abertos a tudo o que aumenta a nossa participação democrática, a nossa criatividade e nossa felicidade.

Acabamos de ter uma Conferência Anarquista de Pessoas de Cor em Detroit, de 03 a 05 de outubro. Cento e trinta pessoas vieram de todo o país. Foi ótimo para vermos nós mesmos e bem como o interesse das pessoas de cor de todo o Estados Unidos em busca de formas marginais de se pensar. Vimos que poderíamos nos tornar aquela voz em nossas comunidades, que diz: “Espere, talvez nós não precisemos nos organizar assim. Espere, a maneira que você está tratando as pessoas dentro da organização é opressiva. Espere, qual é a sua visão? Gostaria de ouvir a minha?”. Há uma necessidade para esses tipos de vozes dentro de nossas diversas comunidades. Não apenas as nossas comunidades de cor, mas em toda comunidade há uma necessidade de parar o avanço dos planos pré-fabricados e confiar que as pessoas podem descobrir coletivamente o que fazer com este mundo. Eu acho que nós temos a oportunidade de deixar de lado o que nós pensamos que seria a resposta e lutarmos juntos para explorar diferentes visões do futuro. Podemos trabalhar nisso. E não há uma resposta: temos de trabalhar com isso à medida que avançamos.

Embora queiramos lutar, vai ser muito difícil por causa dos problemas que herdamos deste império. Por exemplo, eu vi algumas lutas muito duras, emocionadas, em protestos contra a Convenção Nacional Republicana. Mas as pessoas se mantiveram bloqueadas, mesmo quem começou a chorar no processo. Não vamos superar algumas das nossas dinâmicas internas que nos mantiveram divididos, a menos que estejamos dispostos a passar por algumas lutas realmente difíceis. Esta é uma das outras razões pelas quais eu digo que não há uma resposta: só temos que passar por isso.

Nossas lutas aqui nos Estados Unidos afetam todos no mundo. As pessoas nas classes subalternas vão desempenhar um papel fundamental e a maneira como nos relacionamos com elas vai ser muito importante. Muitos de nós somos privilegiados o suficiente para ser capaz de evitar alguns dos desafios mais difíceis e vamos ter de abrir mão de parte desse privilégio, a fim de construir um novo movimento. O potencial está lá. Nós ainda podemos ganhar – e redefinir o que significa vencer – mas temos a oportunidade de promover uma visão mais rica da liberdade do que já tinha antes. Temos que estar dispostos a tentar.

Como um Pantera, e como alguém que passou à clandestinidade enquanto guerrilha urbana, pus a minha vida no limite. Eu assisti meus companheiros morrerem e passei a maior parte da minha vida adulta na prisão. Mas eu ainda acredito que podemos vencer. A luta é muito difícil e quando você cruza esse limite, você corre o risco de ir para a cadeia, ficar gravemente ferido, morto, e assistir seus companheiros ficando gravemente feridos e mortos. Isso não é uma imagem bonita, mas isso é o que acontece quando você luta contra um opressor enraizado. Estamos lutando e isso vai tornar tudo mais difícil para eles, mas a luta também vai ser difícil para nós.

É por isso que temos de encontrar maneiras de amar e apoiar uns aos outros através de tempos difíceis. É mais do que apenas acreditar que podemos vencer: precisamos ter estruturas consolidadas que possam nos ajudar a caminhar, quando sentirmos que não podemos dar mais nenhum passo. Acho que podemos mudar novamente se pudermos descobrir algumas dessas coisas. Este sistema tem que cair. Isso nos fere a cada dia e não podemos desistir. Temos que chegar lá. Temos que encontrar novas maneiras.

O anarquismo, se significa alguma coisa, significa estar aberto para o que quer que for preciso em nosso pensamento, em nossa vivência e nas nossas relações –  para vivermos plenamente e vencermos. De certa forma, eu acho que são a mesma coisa: viver a vida ao máximo é ganhar. É claro que vamos e devemos entrar em conflito com os nossos opressores e precisamos encontrar boas maneiras de fazê-lo. Lembre-se daqueles das classes subalternas, que são os mais afetados por isso. Eles podem ter diferentes perspectivas sobre como essa luta deve ser feita. Se nós não podemos encontrar caminhos para nos encontrarmos cara-a-cara afim de resolvermos essa situação, velhos fantasmas reaparecerão e nós voltaremos à mesma velha situação em que estivemos antes.

Vocês todos podem fazer isso. Você tem a visão. Você tem a criatividade. Não permitam que ninguém bloqueie isso.


De Perspectivas sobre a teoria anarquista, Primavera 2004 – Volume 8, número 1, do Instituto de Estudos Anarquistas

(Artigo) Antropologia Anarquista: poder e hierarquia

O texto a seguir é uma tradução colaborativa da Rede de Informações Anarquistas de um artigo sobre Antropologia Anarquista escrito por Sarah Lester e publicado originalmente no The Journal of Wild Culture. A versão em inglês pode ser encontrada aqui.


Kotsuis and Hohhuq - NakoaktokA antropologia é conhecida – mais notoriamente – como uma disciplina ainda abraçada com os grilhões de seu passado colonial. É talvez um pouco menos conhecida por sua afinidade com a anarquia. Mas se tomarmos o anarquismo como a crença em uma democracia livre do aparato estatal, então não é de surpreender que exista uma ressonância natural entre ambos. Uma certa propensão a analisar sociedades sem estruturas de poder assimétricas pode explicar a escolha de tantos antropólogos e antropólogas de prefixarem os seus cargos com a palavra “anarquista”. Essas pessoas possuem evidências empíricas que sociedades sem estado são possíveis. Como David Graeber – um antropólogo acadêmico recentemente aclamado como o anti-líder do Movimento Occupy – insiste, qualquer crença em um sistema anárquico tem que decorrer da suposição otimista que um outro mundo é possível.

Mesmo apesar de seus paradoxos e tendências em exoticizar seus objetos de estudo, a antropologia é provavelmente a única disciplina que tenta considerar toda a gama de estruturas societárias e políticas em termos igualitários. Ela buscou melhor compreender sociedades que operam sem uma lei ou estado formal, mesmo – ou especialmente – os casos em que essas sociedades foram consideradas como irrelevantes. A fixação da modernidade com o progresso deu origem a uma visão de sociedades sem estado como estáticas e embrionárias, como se existissem fora da história. Sem a força propulsora da dialética, as ditas “sociedades primitivas” se encontrariam estagnadas na pré-história. Essas sociedades são vistas, portanto, como “totalmente foras do interesse da filosofia da história” – nas palavras de Hegel, fustigadas ao longo de seu compromisso com a teologia.

MAUSS POSTULOU QUE AS ECONOMIAS DE DÁDIVA ERAM BASEADAS EM UMA RECUSA PELO CÁLCULO

A visão de Hegel da história enfatiza a importância da razão, da racionalidade e do progresso. Acima de tudo, a filosofia de Hegel foca no Estado, o qual ele vê como um princípio universal com o qual os desejos subjetivos dos cidadãos e cidadãs devem coincidir para atingir algum tipo de perfeição. Enquanto os exames minuciosos de antropólogos e antropólogas de sociedades sem estado sempre arriscaram incorrer em acusações fáceis de primitivismo, em um nível mais básico, a experiência diária do trabalho de campo entre os – ouso eu dizer – primitivos tem destacado o fato de que alternativas viáveis ao modelo estatal existem de fato. Essas pessoas descobriram que sociedades podem operar com sucesso sem alguma regulação constante de uma coerção estrutural sistemática. E, ao contrário do que dizem crenças dominantes, tais sociedades não terminam com todo mundo se matando. Independentemente do quão prático a sua implementação pode ser, análises do poder não-hierárquico e da liderança não-autoritária podem desafiar as noções básicas sobre as quais a nossa concepção de civilização está baseada.

Já em 1925, o fundador da antropologia francesa, Marcel Mauss estava notoriamente advogando a moralidade alternativa de sociedades sem estado em seu “Ensaio sobre a Dádiva”. O seu estudo de trocas de produtos em sociedades de parentesco – como o Potlatch dos índios americanos do sudoeste do Pacífico e os elaborados anéis Kula dos trobriandeses – desafiou o pressuposto universal que economias sem mercado ou dinheiro devem operar por meios do escambo. Longe de procurarem se envolver em um comportamento mercantil, no qual cada lado se esforça para obter as melhores mercadorias ao menor custo possível para si próprio, Mauss postulou que as economias de dádiva não eram baseadas em cálculos, e sim em uma recusa de calcular. Não se trata de argumentar que eles falharam em desenvolver um sistema sofisticado o suficiente para render lucros de uma forma eficiente, mas sim de que esses sistemas de troca estavam enraizados em um sistema ético que rejeitava conscientemente as noções mais básicas sobre as quais nós geralmente acreditamos que a economia se baseia.

Wedding party - Qagyuhl

Mauss, um socialista revolucionário, alinhado pessoalmente com várias posições anarquistas clássicas, nunca chegou a se intitular como um anarquista. Significativamente, outro francês, Pierre Clastres – que, por sua vez, se proclamava como anarquista – ficou bastante conhecido por fazer um argumento similar a Mauss em um nível político. Enquanto Mauss usou a antropologia para iluminar caminhos possíveis para a construção de uma economia anticapitalista (em resposta à crise do socialismo de Lênin), Clastres usou a antropologia para demonstrar como era possível o poder operar de uma forma igualitária e não-coercitiva. Através da consideração das estruturas de poder de sociedades sem estado, em seus próprios termos Clastres encontrou um caminho para politizar sociedades primitivas. Ao fazer isso, ele desafiou radicalmente a noção, delineada mais proeminentemente por Thomas Hobbes, que o poder estatal é uma ilusão necessária.

Quando Hobbes escreveu o Leviatã, o seu tratado sobre o contrato social em resposta a sangrenta Guerra Civil inglesa, ele alegou que a submissão do indivíduo a um todo-poderoso estado não era apenas benéfica em prol de uma sociedade igualitária, mas de fato essencial para a sobrevivência de nossa espécia. Sociedades naturais inevitavelmente iriam ser jogadas em um estado de “guerra, onde todo homem é inimigo de todo homem”. Nas últimas três décadas, o argumento de Hobbes que a sociedade civilizada pode apenas existir através do poder coercitivo se transformou em um princípio central da atividade política hegemônica, tanto na direita quanto na esquerda. Uma vez que a ameaça da guerra é onipresente, nós entramos em um contrato social e ficamos sujeitos a um grande Leviatã, o Estado, porque sem ele existiria nada a não ser carnificina a nossa espera em cada esquina.

Clastres, perplexo com a ideia de servidão voluntária, colocou esse axioma em questionamento. Seu trabalho constantemente reitera a seguinte questão: por que nós abandonamos a autonomia e obedecemos a um governo? Se o estado se baseia na autoridade restrita de poucos contra muitos, então por que o estado trinfou? Ou, nas palavras de Etienne de la Boétié, “que desfortuna foi essa que pôde desnaturar tanto o homem”?

O uso da palavra “desnaturado” aqui é particularmente instrutivo, pois, sem dúvida, são as diferentes concepções de “natureza humana” que se encontram no centro desse debate. A orientação hobbesiana assume que a natureza humana é algo selvagem, guerreira e irracional, a ser domesticada pelas forças civilizatórias do controle estatal. Atualmente, a política ocidental mantém essa orientação. Mas ao examinar culturas com diferentes atitudes diante do poder o que a antropologia pode nos mostrar é que esse pressuposto é exatamente o que ele é: apenas um pressuposto.

VOCÊ VALE NÃO MAIS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA; VOCÊ VALE NÃO MENOS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA

Através de seu extensivo trabalho de campo dos índios Guayaki do Paraguai, Clastres demonstrou como o poder pode ser efetivamente organizado sem um aparato separado do corpo social. Sua análise sugere que é possível falar de poder localizado fora dos domínios das relações de comando-obediência. Tomemos, por exemplo, suas descrições da aparentemente paradoxal “liderença” da chefia indígena americana. Enquanto as sensibilidades ocidentais iriam automaticamente assumir que um chefe necessariamente possui algum meio de exercer poder sobre o resto do grupo, Clastres destaca que, em várias instâncias, a mais notável característica do chefe indígena é a sua completa falta de autoridade. Clastres insiste que o papel do chefe é essencialmente reconciliatório; ele não é um homem de poder mas um pacificador e árbitro. Um chefe é obrigado a possuir um talento retórico grandioso o qual, junto com o seu prestígio e generosidade, ele usa para tentar manter a ordem social. Mas, a qualquer momento, o chefe permanece sob o perigo de ser repudiado.

Qualquer um que associa poder político com a autoridade governante iria certamente achar que uma liderança nesse sentido não apenas não compensa, como também preocupa pela sua instabilidade. No entanto, Clastres insiste que a questão não é questionar a falta de autoridade do chefe em si, mas entender as relações de poder no contexto envolvido. Como alguém pode explicar a bizarra persistência de um poder que é praticamente impotente?

Clastres descreve o ato ritualizado dos discursos do chefe, o qual acontece diariamente ao amanhecer e ao anoitecer. Um chefe não adquire o direito de falar simplesmente em razão de sua chefia – a sua chefia que o obriga a falar. A tribo demanda ouvi-lo: um chefe mudo não é mais um chefe, mas, em mais um ataque às nossas expectativas, Clastres continua a demonstrar que enquanto o chefe fala, ninguém presta qualquer atenção a ele. Independente da força de sua voz ou de suas habilidades oratórias, o resto do grupo parece seguir com as ruas rotinas como se nada estivesse acontecendo. O poder não se encontra no lado do chefe, o que faz com que as suas palavras não sejam autorizativas ou poderosas.

Clastres utiliza seus achados etnográficos para alegar que está na natureza das sociedades primitivas saber que a violência é a essência do poder, e que o discurso é o oposto de violência. Ao restringir o chefe para o domínio do discurso apenas, a tribo garante que nenhum deslocamento de forças perturbará a ordem social. O chefe não pode usar as palavras para seus ganhos pessoais ou por razões de conveniências políticas, porque o chefe que tenta apropriar poder desse jeito é logo abandonado. A sociedade primitiva é o lugar onde o poder separado é recusado, porque a sociedade em si, e não o chefe, é o lugar real do poder.

Dancing to Restore an Eclipsed Moon - Qagychl

O trabalho de Clastres se opõe a noção hegeliana que o estado é o destino final de todas as sociedades. Longe do estado ser o objeto preciso da história mundial, as sociedades sem estado, argumenta, possuem mecanismos preventivos para evitar a formação de um aparato estatal: a oratória impotente do chefe representaria um desses dispositivos. Da mesma forma, Clastres descreve o ato ritualístico de marcar os corpos como uma outra maneira de frustrar o desejo humano por poder. Ao contrário da lei escrita da sociedade hierárquica que é imposta por poucos sobre muitos, a lei das sociedades primitivas, a qual é escrita sobre todos os corpos, diz: “você não vale mais do que qualquer outra pessoa, você não vale menos do que qualquer outra pessoa”. A essas sociedades não falta um estado, simplesmente. Elas são, nas palavras de Clastres, sociedades contra o estado.

Assim como Mauss desafiou a lógica assumida da economia de mercado, Clastres questionou a noção de que o poder pode apenas ser identificado como uma autoridade coercitiva. Ambos os antropólogos desafiaram a lógica evolucionista que assume que o estado e o mercado são destinos inevitáveis de todas as sociedades. Entretanto, mais do que isso, ambos fizeram a sugestão radical de que – longe de serem incapazes de alcançar o estágio avançado da civilização ocidental – essas sociedades estão realizando um esforço conjunto para conter as capacidades humanas de ganância e sede de poder de um jeito que impede que estruturas sociais autoritárias se formem.

Em oposição a descrição de Hobbes da guerra primitiva como perpétua e caótica, Clastres identifica a guerra como um mecanismo preventivo último que possibilita essas sociedades de evitar a emergência do estado. Como os eventuais colaboradores de Clastres, Gilles Deleuze e Félix Guattari, sugeriram, assim como Hobbes percebia claramente que o estado está contra a guerra, Clastres defenda que, nas sociedades “primitivas”, a guerra está contra o estado.

A QUESTÃO NÃO É SE AS PESSOAS SÃO “BOAS O SUFICIENTE” PARA EXISTIREM EM UMA SOCIEDADE PARTICULAR OU NÃO…

Aqui podemos enxergar o valor da antropologia, não como uma disciplina que analisa culturas antigas chamadas de “primitivas” que ainda existem, mas como uma ferramenta que nos possibilita imaginar novas sociedades. A anarquia, atualmente, é comumente julgada como destrutiva, violenta e niilista; é utilizada como sinônimo de caos e desordem. No entanto, anarquia, como compreendida pela maior parte dos e das anarquistas, na verdade significa o oposto. Uma sociedade anárquica – como as igualitárias que Clastres estudou – é baseada na ordem, na autonomia dos indivíduos e na cooperação sem governantes. Enquanto a maioria dos e das anarquistas, seguindo o revolucionário russo Mikhail Bakunin, acredita que caos e desordem possuem potencialidades inerentes, e que a destruição pode ser um ato criativo, o seu objetivo último é de criar uma ordem social que elimina completamente a necessidade da violência legitimada. Esforçar-se para a abolição de instituições sociais que usam a força coercitiva para criar uma nova ordem está longe de desejar um estado de permanente desordem e violência. Na verdade, alguns dos pensadores anarquistas mais conhecidos, Henry David Thoreau, Tolstói e Gandhi, eram também pacifistas.

Outra crítica comum feita ao anarquismo é que ele é idealístico demais. As moralidades anarquistas alternativas e suas visões de um mundo mais livre, com – de todas as sugestões – menos horas de trabalho, foram eventualmente descartadas como utópicas; é o risco ocupacional de reimaginar as estruturas sociais existentes. Ainda assim, um olhar mais considerado no anarquismo relevaria que ele promove uma visão da humanidade que é resolutamente realístico. Humanos não são inerentemente belicosos ou naturalmente benignos; eles possuem a capacidade para o bem e para o mal. A questão, como o escritor e crítico social Paul Goodman colocou talvez da forma mais eloquente possível, não é se as pessoas são “boas o suficiente” para existir em uma sociedade particular ou não. Mas sim como as instituições sociais podem ser desenvolvidas de um jeito que se torne mais propício das pessoas expressarem suas capacidades para a inteligência, benevolência, sociabilidade e liberdade. Anarquistas podem estar precisando de esperanças e de imaginação para vislumbrar um mundo diferente; antropólogos e antropólogas, no meu ver, estão particularmente bem situados para os guiar nesses aspectos para fazer com que isso se transforme em realidade.