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(Texto) O Grito de Socorro da Mulher Favelada

Ser mulher favelada

Aproveito esse espaço para falar da mulher favelada, desta que serve e faz a cidade funcionar todos os dias. É esta mulher favelada que muitas das vezes não tem nome, nem sobrenome e não mora em lugar nenhum. Hoje, ela está aqui exigindo o seu direito de ser mulher, de que alguém ouça o seu grito de socorro!

Tal mulher é, em sua maioria, nordestina, negra, indígena, é parte deste povo que está morrendo dia a dia. Digo, dia a dia, porque é sua casa que há mais de cem anos é removida nesta cidade maravilhosa, é o seu filho que há um século está sendo assassinado por causa da criminalização da pobreza. É ela, os seus filhos e seus familiares que não têm e nunca tiveram o direito de estudar, de ter o direito à saúde, ao trabalho digno e até o direito de circular a cidade, a não ser que seja para trabalhar.

Pelo motivo desta mulher morar na favela, ela nem é vista como mulher, como cidadã, ela é apenas “fábrica de produzir marginal”, como disse o ex-governador Sergio Cabral em uma entrevista. A cultura desta mulher, a identidade, a forma dela falar e até as suas roupas são consideradas feias, erradas, são desvalorizadas por toda a sociedade.

Imaginem o que é não ser considerada parte desta cidade apenas por morar na favela? Ter que se defender todos os dias quando você atravessa os muros visíveis e invisíveis da favela? Ter que dizer que você tem cultura sim, que você é parte da cidade e não margem, que você e toda a sua ‘comunidade’ não é criminosa e sim criminalizada, que você e todos os que fazem parte desta tão grande família favelada não é violenta e sim violentada há mais de cem anos.

Lembrando que esta mulher existe! No entanto, ela deve ser ouvida, não mais lavar sangue de seus filhos, não mais chorar e se preocupar com seus filhos a cada vez que a sua favela é invadida por caveirões. Ela merece que o seu filho tenha uma educação de qualidade, ela deve ter um atendimento digno em um hospital público, ela deve ser respeitada na rua, no trabalho, no ônibus, no metrô, em qualquer espaço.

É 2015 e ainda lutamos por direitos básicas porque muitas de nós estão morrendo, sendo violentadas, espancadas, assassinadas apenas pelo fato de sermos mulheres. O Machismo mata, ele sempre matou. É, por isso, que nós mulheres temos que exigir o nosso espaço em qualquer parte da cidade. Tirar o lugar do homem que sempre nos calou, que sempre matou suas companheiras, que não respeita quando a mulher anda na rua, que não ouve quando ela quer gritar e exigir o que é seu!

Esta mulher favelada e todas as outras mulheres vão seguir falando, escrevendo, gritando e exigindo cada dia o seu direito de existir, de andar, de circular a cidade, de viver!

Nós somos parte da cidade, nós existimos!

Por Gizele Martins, jornalista, moradora e comunicadora do Conjunto de Favelas da Maré.

Originalmente publicado aqui.

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(Reflexão) Sobre práticas acusatórias ao Movimento Anarquista brasileiro

Em outros momentos, a Rede de Informações Anarquistas publicou duas reflexões, a saber, Eleição é farsa, movimentos sociais e organizações anarquistas também!Porque eu não sou anarquista, dos autores R29 e J., respectivamente. Ambas as reflexões promovem importantes críticas ao estágio atual do movimento anarquista no Brasil, perpetuado de individualismos egocêntricos, jogos por poder e autoritarismos disfarçados de princípios programáticos que contradizem os próprios princípios libertários e libertadores que deveriam guiar o anarquismo em qualquer canto do mundo.

Contudo, de modo a criar um espaço de debate, afirmarei aqui que ambos os textos reproduzem alguns equívocos que também devem ser problematizados para que o movimento anarquista brasileiro possa vislumbrar melhores horizontes futuros. Argumento, acima de tudo, que não só o conteúdo de uma crítica importa, como também a forma através da qual ela é feita, algo aparentemente desconsiderado por ambos os autores ao não se preocuparem em desenvolver, em conjunto ao movimento anarquista, uma capacidade de autocrítica que possa ser construída de uma forma leve e saudável. Nesse sentido, apresento a seguir quatro elementos os quais julguei problemáticos nas duas reflexões:

A destruição pela destruição.

A destruição, ao contrário do que pensam muitos, carrega sim consigo uma capacidade inovadora e renovadora capaz de resolver problemas e modificar realidades. Afinal, das cinzas do velho mundo nasce o novo. Contudo, quando a destruição deixa de ser um meio e se transforma no próprio fim da ação, ela deixa de ser propositiva e vira apenas uma negação niilista que em nada agrega.

Ao ler ambos os textos, por mais que eles possuam críticas que eu não só compactuo, como acredito serem problemas centrais do movimento anarquista atual, acredito que os autores ao reproduzirem uma ênfase exacerbada nesse movimento destruidor e negacionista acabam por passar uma impressão que a destruição, que chamarei aqui carinhosamente de esculacho, é a única intenção de ambos.

Explico. Chego a essa interpretação devido aos seguintes fatores: além de ambos serem poucos propositivos (o que, em si, não necessariamente é um problema, pois, como dito, é preciso primeiro criticar para depois ser propositivo), tanto R29 quanto J. parecem estar fazendo a crítica de um lugar de fala fora do próprio objeto o qual eles estão criticando, a saber, o movimento anarquista brasileiro. R29 o faz isso ao rejeitar a própria existência do movimento anarquista no Brasil, enquanto J. nega a si próprio o rótulo de “anarquista”.

Ao fazerem isso, e falarem de certa forma de um “anarquismo que existe por aí”, parece que eles se colocam como imunes à própria crítica uma vez que a construção lógica presente nos textos estabelece uma relação separada entre sujeito crítico e objeto criticado como se essas fossem duas coisas completamente distintas. Se estão do lado de fora desse movimento, se chegam até mesmo a negar o próprio movimento, qual seria então os objetivos da crítica além de esculachar e desmoralizar tal movimento?

Oras, se ambos não fizeram parte e, de alguma forma, ainda fazem sim parte do movimento anarquista (ao se proporem criticá-lo), não são eles tão responsáveis pelos nossos erros como qualquer outro militante? Seja pela omissão, pelo silêncio momentâneo, pelo estabelecimento de prioridades pessoais ou pela seletividade de nossas práticas, seja o que for, quando criticamos uma coletividade, temos que ter ciência de que fazemos parte dessa coletividade, ou seja, que somos objetos de nossas próprias críticas – algo que ambos parecem não só fugir, como também negar ao apelarem até mesmo a uma linguagem debochada (“militontos”, “iluminados”, entre outros termos), em especial o primeiro texto, na construção de sua lógica argumentativa.

Afinal, se o deboche é utilizado como forma de realizar a crítica, quem iria debochar de si próprio? Torna-se evidente assim que o criticado é o “outro”, e não o “nós”. O que nos fazer entrar no segundo elemento que pretendo problematizar, logo abaixo.

A armadilha do anarcômetro. 

Ambos os textos criticam, com razão, a existência de um anarcômetro dentro do movimento, ou seja, uma conduta deplorável de alguns militantes de quererem determinar quem é ou não anarquista, ou quem é a organização ou indivíduo mais revolucionário dentro do movimento, algo que medem a partir de um limitado punhado de princípios e práticas que eles consideram como constituintes do “verdadeiro anarquismo”. Aqueles que não seguem esses princípios e práticas não seriam tidos, assim, como “anarquistas”.

Pois bem, por mais que eu concorde com essa crítica, tanto R29 quanto J. caem na armadilha de reproduzirem eles próprios o que estão criticando. Ao apelarem não só para o deboche, mas também para uma posição privilegiado onde eles se colocam “fora” do movimento anarquista e desenvolvem uma crítica do “outro”, de quem ainda acredita, ingenuamente, que está “dentro” desse movimento, torna-se perfeitamente plausível afirmar que o que os dois autores estão querendo dizer é que o movimento anarquista brasileiro como um todo está caminhando por estradas equivocadas e eles, os iluminados, foram os únicos a perceber isso.

Temos que nos conscientizar de que quando nos propomos a realizar uma crítica estamos sempre emitindo juízos de valores sobre o que achamos certo ou errado, quer a gente queira ou não. Reconhecer isso é o primeiro passo para conseguirmos construir uma crítica amiga e construtiva ao invés de um esculacho onde se estabelece uma relação do “iluminado” perante o “ingênuo”. O tom enfático, negacionista e de deboche presente nas duas reflexões de nada ajuda a construir essa crítica mais fraterna. Dessa forma, ambos os textos tratam-se, também, mesmo que de uma forma diferenciada, de “anarcômetros”.

A localização espacial da crítica. 

Quando alguém realiza uma crítica, é importante definir precisamente o que está sendo criticando para não cair no perigo de generalizar a reflexão a dimensões e espaços da realidade social os quais devemos humildemente reconhecer desconhecimento. Tanto o primeiro texto quanto o segundo caem nesse erro ao não localizarem espacialmente a sua crítica, onde enquanto o primeiro fala do “movimento anarquista brasileiro”, o segundo nem mesmo se dá o trabalho de definir qualquer localização geográfica.

Pois bem, conhecendo os autores de ambos os textos, sei que os dois tiveram uma experiência dentro do movimento anarquista diversificada, mas ainda assim um tanto limitada, assim como eu, assim como qualquer pessoa, não importa o quão experiente seja, pois, afinal, somos todos apenas meros seres humanos.

Os coletivos que fizemos parte, os espaços que estivemos presentes e as pessoas anarquistas que tivemos a chance de conhecer são ínfimos perto da gama de possibilidades existentes dentro do movimento anarquista brasileiro, mesmo que esse não se encontre em sua melhor fase.

Então, oras, como que é possível a partir dessa limitada experiência acreditar que é legítimo falar do movimento anarquista como um todo, sendo que este que está presente de norte a sul, sendo que há relatos de sua existência, organizada ou não, em todas as regiões brasileiras, e mesmo aqui na cidade onde moramos, temos total ciência da existência de espaços e grupos os quais pouco conhecemos?

Qual a necessidade de generalizar a crítica e partir para uma arrogante presunção de que o “anarquismo brasileiro é uma farsa” se não conhecemos o movimento anarquista brasileiro em sua plenitude? Qual a dificuldade de reconhecer a nossa limitação de atuação e localizar espacial e temporalmente a nossa crítica, dado que só podemos problematizar o que conhecemos?

Ambos os textos caem no equívoco de acreditar que a experiência limitada dos autores resume toda a dimensão de possibilidades e alternativas vigentes dentro do diversificado campo que chamamos de “movimento anarquista”. Errado. O movimento anarquista sempre foi, e sempre será, muito maior do que nossas individualidades. Ainda bem.

O anarquismo pós-colonial. 

Tanto o texto de R29 quanto a reflexão de J. contém uma crítica correta em relação ao eurocentrismo não só contido em muitos dos discursos e práticas de militantes e organizações anarquistas brasileiras, como em outras esferas de produção de conhecimento dada a relação geopolítica desigual entre centro periferia que o Brasil possui com os países do norte.

Contudo, antes de prosseguirmos, vale destacar que, embora eu compactue com a constatação colocada por ambos os autores de que o anarquismo precisa se renovar, ou seja, que precisamos problematizar o colonialismo existente no fato de que o pensamento anarquismo europeu do século 19 continua guiando as nossas práticas atuais em um Brasil do século 21, a questão não é, e nem pode ser, um total abandono de tudo que foi construído e dito até o presente momento.

Pois a história do movimento anarquista é, em alguma medida, a história do operariado, das pessoas oprimidas, dos de baixos, europeus ou não, e, se afirmamos que fazemos parte desses grupos ou que ao menos somos aliados a estes, temos o dever de resgatar e resguardar tal história que é incessantemente rejeitada e negada pela historiografia oficial imposta pelo Estado e suas instituições elitistas. Além disso, tal acúmulo histórico pode conter sim respostas a problemas que hoje nos perturbam em nossas militâncias cotidianas. O problema, portanto, não é descartar o que foi produzido pela sua limitação regional e temporal, mas a transposição mecânica e acrítica que alguns militantes brasileiros fazem dos conceitos e teorias concebidas em realidades distintas do contexto social singular do Brasil atual.

Ambos os autores concordariam comigo, acredito. R29 atenta para a condição colonizada do nosso país, decreta também que os séculos 19 e 20 já acabaram além de atestar que as armas utilizadas pelo movimento anarquista de cá tratam-se de interjeições e verbetes importados dos países europeus. Já J. diz que “se ser anarquista é vomitar pensadores de outros séculos e fechar os olhos para o quanto o mundo mudou desde então, eu não sou anarquista“. Pois bem, a crítica está correta. O equívoco está em achar que tal crítica é inédita.

A questão é que essa reflexão crítica tão necessária para a renovação do movimento anarquista já se encontrando em curso há um bom tempo. O bolo já foi fatiado e distribuído, a cereja já foi digerida. Não só isso, enquanto R29 e J. ainda se limitam a simples crítica, o anarquismo do século 21 já superou esse momento ao estar vivenciando processos propositivos onde novos caminhos possíveis estão sendo colocados no horizonte de possibilidades, mesmo que muitos ainda se encontrem em uma fase embrionária.

Exemplos não faltam. O diálogo entre povos não-ocidentais com a teoria libertária presente na antropologia anarquista, o movimento pós-anarquista influenciado pelo pós-estruturalismo francês, o anarquismo negro de diversos militantes ex-Panteras Negras que incessantemente ganha forma nos Estados Unidos, o resgate da história do movimento anarquista em países da África, o confederalismo democrático curdo, os diálogos globais entre os novos movimentos sociais (feministas, queer, trans, LGBT, movimentos negros, etc.) com o anarquismo e, para darmos um exemplo local, as recentes conexões que estão sendo feitas entre os movimentos quilombolas e anarquistas no nordeste brasileiro e o movimento anarcopunk paulista que continuamente coloca em intersecção o anarquismo com as pautas raciais ilustram a capacidade de reinvenção do anarquismo mundial que tanto R29 e J. clamam e parecem negar.

Então, se considerarmos que o movimento anarquista brasileiro ainda está longe do ideal tanto em termos quantitativos quanto em formas qualitativas, qual a necessidade desse jogo identitário de ficar se afirmando frente a meia dúzia de militantes que continuam a insistir no passado? Por que não apostar nessas outras proposições que já se encontram sendo desenvolvidas cotidianamente por pessoas que necessitam mais do que eu, indivíduo privilegiado, por essa renovação? Por que toda essa ênfase na negação, na crítica ao outro, na retórica discursiva, se a melhor maneira de criticar alguém é com base no fazer diferente? Ou seja, ao invés da negação, ação. Ou melhor, negar o autoritarismo e o jogo por poder existente dentro do movimento anarquista brasileiro, algo que não ouso negar, com base em uma ação cotidiana, diária e contínua.

Debochar do outro, se colocar como fora de um movimento o qual você também fez parte e é igualmente responsável por, criticar esse movimento a partir desse lugar de fala diferenciado e privilegiado o colocando como o “outro ingênuo” enquanto você, o “iluminado”, foi um dos poucos que percebeu o quão errados estamos, tudo isso o movimento anarquista já está cheio. O que precisamos agora é desenvolver um ambiente inclusivo, livre de autoritarismos e opressões, no qual a crítica pode não só ser construída de forma leve e cuidadosa, como também traduzida em ações propositivas – e isso, como vimos nos exemplos citados, não falta. Então, antes de negar o anarquismo, conheça o anarquismo. Pois ele se encontra muito além de nossas limitadas e egóicas individualidades. As potencialidades estão aí, basta explorarmos elas.

Por G.

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(Reflexão) Para nós, homens: o debate feminista no ENEM e a nossa obrigação enquanto machistas

Para nós, homens.

11249094_10153261009871973_86279490837545895_nDe nada adianta compartilhar o meme da Simone de Beauvoir ou comemorar o tema da redação no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a saber, a persistência da violência contra a mulher no Brasil, se não estamos engajados em um processo contínuo de autocrítica e vigilância sobre nossas micro-práticas que violentam, seja fisicamente, seja simbolicamente, as mulheres ou outro grupo oprimido.

Celebrar o alheio e se juntar ao coro é fácil. Agora, refletir sobre a nossa própria posição social enquanto machistas e indivíduos privilegiados, o que por conta própria já é uma violência em si, aí trata-se de um caminho que quase ninguém quer trilhar.

Mesmo os poucos que trilham esse caminho, boa parte o faz com muita dificuldade. Alguns são seletivos em sua autocrítica, se recusam a ouvir certas sugestões e críticas de nossas companheiras e amigas feministas sobre nossa conduta e/ou deixam de chamar a atenção de nossos amigos homens quando eles reproduzem algum tipo de postura machista na nossa frente (e aqui eu me incluo como alvo dessa crítica, pois nenhum de nós, homens, está imune de tal processo reflexivo).

Para ser um homem empenhado em desconstruir o patriarcado, o machismo e o sexismo não basta afirmar perante ao mundo “eu não sou machista”. Nem mesmo a mera autoafirmação como anarquista ou libertário é suficiente para atingir essa desconstrução, uma vez que de nada serve a retórica descolada da prática, um problema que faz com que o movimento anarquista seja, infelizmente, repleto dos ditos “anarcomachos” – os supostos anarquistas que não problematizam o machismo inerente em suas condutas e em suas organizações.

Para sermos esse homem comprometido com a construção de relações sociais livres de opressões, o primeiro passo é justamente nos reconhecer como machistas, é dizer para o mundo e para si mesmo, “eu sou machista”. Enquanto as estruturas de poder de nossa sociedade continuarem a reproduzir práticas e discursos que oprimem mulheres, enquanto o patriarcado persistir em ser a ideologia hegemônica, nós seremos machistas, não importa o quão avançado estamos em nossos processos de desconstrução e autocrítica. Pois não há uma solução individual para um problema que é coletivo.

Não basta desconstruir, é preciso destruir esse patriarcado, e essa destruição há de ser coletiva. Ou todos nós deixamos de reproduzir posturas e valores machistas, ou continuaremos todos a oprimirem mulheres, seja de forma estrutural e involuntária ou consciente e deliberada – não existe exceções.

Não tornemos, portanto, vazia toda a justa celebração que ocorreu em torno da presença das tão importantes pautas feministas na prova do ENEM. Por mais que nós, enquanto anarquistas, recusemos tal prova por ela se tratar de uma ferramenta elitista e mercadológica que reproduz desigualdades e opressões capitalistas, reconhecemos o valor de ter esse debate antiopressão inscrito em seu conteúdo no sentido de disseminar essas ideias e fazer frente a discursos conservadores e protofascistas.

Dito isso, devemos permitir que todo o debate incitado por esse momento histórico passe de fato a influenciar nossa conduta cotidiana para combatermos toda violência machista e sexista inserida em nossas práticas tanto em um nível macro (no caso, na disputa pelos discursos) quanto em um nível micro (no nosso dia-a-dia).

Homens, não passaremos!

Por Gustavo Fernandes

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(Reflexão) Porque eu não sou anarquista

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O rótulo de “anarquista” é algo controverso, contestado por muitos e discutido por outros tantos.

Dado que rotular-se significa limitar-se, muitas pessoas que tem em si, valores e estilos de pensamento anarquista, não se julgam anarquistas afim de não se limitar a algo que é pre-definido e posto por outros.

Desde criança sempre fui uma pessoa questionadora e libertária. Rompi com o ensino formal aos 15 anos de idade.

Nunca cursei uma universidade. Nunca tive preconceitos assumidos contra nenhum tipo de pessoa, classe, coisa ou ser vivo.

Claro que muitas vezes reproduzimos preconceitos que nos são impostos pela sociedade e pelo meio em que vivemos.

Longe de mim pensar que eu seria diferente.

Porem meu anti-academicismo e ao mesmo tempo a minha ânsia por um mundo melhor, me fizeram acreditar muito no anarquismo como solução e por mais distante que uma sociedade libertária esteja dos dias de hoje, acredito nela como um horizonte e como base moral para pensamentos e ações.

Militei ativamente em diversas frentes que considerei importantes. Me intitulei anarquista pois apesar de sempre ter sido contra rótulos, meu anarquismo foi algo orgânico. Numa certa época de minha vida, eu simplesmente descobri que sempre fui anarquista e não simplesmente decidi que, de um dia para outro, eu o seria.

Mas hoje vejo essa questão com outros olhos e entendo que o anarquismo está muito além de rotular-se ou intitular-se como um.

Conheci diversos anarquistas durante a vida, das mais diversas tendências e com pensamentos muitas vezes divergentes.

Talvez tenha sido justamente essa grande diversidade que pode ser encontrada no pensamento anarquista, que tenha feito com que eu chegasse a conclusão que pretendo passar com esse texto.

Se ser anarquista é vomitar pensadores de outros séculos e fechar os olhos para o quanto o mundo mudou desde então, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é passar por cima de todos os princípios libertários para organizar a militância da forma com que acho correto, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é petrificar idéias e tornar o pensamento imutável, para não contrariar algo que foi pensado por anarquistas em outros momentos, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é apontar dedos, criar brigas internas e ligar “anarcômetros”, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é se achar superior a outros indivíduos, por eles não serem anarquistas e considerar-se iluminado por sê-lo, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é fechar-se em clubinhos secretos, falar para si mesmos e devanear entre realidade e teorias de conspiração ridículas, eu não sou anarquista.

E se hoje não me considero anarquista, não é porque perdi ou desacreditei dos meus princípios de liberdade, anti-opressão, anti-coerção, anti-exploração e anti-hierarquia, entre outros, mas sim porque não enxergo esses mesmos princípios em uma grande maioria de anarquistas que conheci, seja no campo das idéias ou no campo das ações.

Não pretendo ser mais um trilhando um caminho hipócrita, onde as idéias não condizem com as práticas. Não quero ser o messias da salvação libertadora.

Não quero uma estátua minha em lugar nenhum e nem me tornar mártir ou herói da resistência.

Não tenho a menor pretensão de publicar textos acadêmicos ou de organizar coletivos para ação direta simplesmente para me sentir importante.

Não quero jamais ser famoso, mesmo que num submundo que não sai na TV ou jornais.

Não acredito em fórmulas mágicas pra mudar a sociedade.

Não acredito sequer que processos de mudança bruscos, com grandes rupturas sejam possíveis de ser alcançados de forma intencional. Esses processos para mim, são raríssimos e orgânicos, impossíveis de serem previstos ou provocados.

Acredito numa mudança constante, numa mudança que já estamos presenciando e que todos fazemos parte, anarquistas ou não.

Acredito em exemplos, não em gurus iluminados.

Quero andar sempre ao lado, nunca a frente ou atras.

Quero fazer mudança mas jamais SER a mudança.

Quero o confronto de idéias, não para convencer outras pessoas das minhas e sim para alimentar idéias com mais idéias.

Quero o contraditório, quero o diferente, quero o novo, o vivo, o sentido e as sensações.

Quero ser poeta, musico, escritor, medico e advogado.

Quero ser gay, puta, travesti, negro, índio e espirita e umbandista.

Quero ver o mundo, quero ouvir mais e falar menos.

Quero a minha liberdade potencializada pela do outro e não liberdades que cerceiam umas as outras.

Não quero caixinhas, clubinhos, dogmas ou sectarismo.

Disso o mundo de hoje já está cheio e não é o que colabora(pelo menos na minha opinião de merda) para essa constante mudança.

E disso o anarquismo de hoje também está cheio.

Por isso não sou anarquista.

Ou pelo menos não sou esse anarquista. Prefiro me identificar talvez como um ser anárquico, pois tenho pra mim que o anarquismo hoje precisa ser desconstruído e reconstruído, para acompanhar as mudanças do mundo e ser um horizonte menos distante.

Acredito inclusive, que talvez Bakunin ou outros grandes pensadores do anarquismo, se estivessem vivos, fariam tambem algum tipo de desconstrução, de mudança de paradigmas.

Talvez Bakunin revisse seus círculos concêntricos, Proudhon dissertasse com outro olhar sobre a propriedade, Malatesta escrevesse algo sobre proto-fascismo ou Emma Goldman sobre as diversas frentes do feminismo e seus atravessamentos com a luta trans e a filosofia queer.

Ou talvez não. Talvez se mantivessem parados no tempo, como muitos dos militantes anarquistas mais velhos, e encastelados em suas torres de marfim acadêmico, continuassem com um discurso antigo e nem sempre atemporal.

Mas talvez um dia, se o anarquismo “moderno” voltar a não caber no mundo, aceitar melhor suas transformações e passar a ser algo mais líquido e com mais fluidez, numa eterna desconstrução e reconstrução, eu volte a ser um anarquista.

J.

(Texto) Pois as crianças são as verdadeiras anarquistas

Sempre que faço uma nova amizade com alguma criança lembrar da minha própria infância torna-se inevitável. Tais recordações trazem um amálgama de amor e dor. Amor pela felicidade latente manifesta nas memórias, seja do pensar, seja do álbum de fotos; dor por ter tido essa alegria usurpada de mim.

Explico. Para quem não me conhece, eu sou gago. Como já expliquei em outro texto, tal gagueira, quando criança, não me era impeditiva. A fala não era um problema, nem para mim, nem para meus e minhas colegas. A convivência era leve e doce, a cooperação e o coletivismo presente nos espaços que circulei foram cruciais para que eu pudesse me sentir parte integrante dos grupos, como qualquer outra criança, independente das heterogeneidades existentes.

Contudo, conforme as crianças cresceram, conforme elas foram sendo sociabilizadas nas escolas, nas famílias, nessa monstruosidade que chamamos de sociedade, a coletividade deu espaço para o conflito, para a competição, para uma busca implacável por status e poder onde os indivíduos que não se encaixavam nos padrões ideais vigentes, como eu, acabavam sendo marginalizados, sofrendo, assim, com a humilhação cotidiana.

Pois a gagueira (e as dificuldades comunicacionais), ao invés de uma patologia individual como a fonoaudiologia tenta nos convencer, é antes resultado de discriminação social, fruto do capacitismo (mais sobre gagueira e capacitismo, aqui).

Antes dos 12, não existia depressão, antidepressivos, deboches, terapias, vergonha, inferioridade e tantas outras coisas que me dói o corpo ao tentar lembrar. O choro, hoje convulsivo, era só de manha; a gagueira não me impedia de usufruir a plenitude do meu ser, do meu existir.

Claro que, tirando o capacitismo, eu gozava de diferentes privilégios que garantiram tal contexto. Sei muito bem que a minha boa sorte desfrutada é diariamente negada a crianças negras, pobres, deficientes, entre tantas outras. Mas ainda acredito, talvez ingenuamente, que é necessário olhar para as infâncias, hoje componentes de nosso passado, se queremos construir um futuro mais justo.

Sem querer cair em um determinismo teológico, como alguns teóricos anarquistas defendiam ao afirmar que o apoio mútuo (e a anarquia) é uma tendência natural dos seres vivos, creio sim que o humano possua um potencial para a cooperação não explorado com o qual podemos esperançar por mundos mais livres – e é por isso que luto.

Eu luto para que esse potencial não seja transformado em individualismos tão cruciais para a manutenção da dominação e do capitalismo, eu luto pela que a memória do passado não seja uma refugiada do presente, eu luto pelas crianças ainda vindouras. Pois nós, pessoas adultas, ao nos fazer enquanto crescidos, fomos domesticados e, consequentemente, já estamos há tempos perdidos. Mas as crianças, elas sim, contém uma semente de rebeldia que torna possível sonhar por um mundo onde caiba vários mundos.

Pois, como dito em muros alheios, as crianças são as verdadeiras anarquistas.

Feliz dia das crianças.

Por Gustavo Fernandes

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