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(Machismo) Sobre a carta pública contra agressões machistas em organizações especifistas da Coordenação Anarquista Brasileira

Minhas ressalvas: a carta em si já é uma excelente iniciativa, já que muito raramente organizações anarquistas reconhecem publicamente atos de machismo.

Porém o que incomoda bastante é a sensação de que a carta foi lançada somente para colocar panos quentes.

O texto fala de “casos” de agressões machistas mas não especifica em nenhum momento o que motivou a escrita do mesmo. Tampouco expõe os agressores machistas, deixando-nos a duvidar do tipo de tratamento que foi dado a essas agressões (não se fala de método prático algum para lidar com essas denúncias).

Outra questão, talvez a mais pertinente é: quem escreveu essa carta? Foi um coletivo de mulheres formado por membrxs de organizações integrantes da CAB? Uma comissão formada para isso? Isso não está nada claro.

Tendo em vista o peso do lugar de fala, como mulher anarcafeminista, considero de extrema importância que esta carta fosse escrita por quem de fato viveu essas agressões para esperar o mínimo de contundência no tratamento dessas denúncias e uma real desconstrução de atitudes machistas no seio da CAB.

Por D.


Segue abaixo a carta na íntegra (original aqui):

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(Reflexão) Para nós, homens: o debate feminista no ENEM e a nossa obrigação enquanto machistas

Para nós, homens.

11249094_10153261009871973_86279490837545895_nDe nada adianta compartilhar o meme da Simone de Beauvoir ou comemorar o tema da redação no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a saber, a persistência da violência contra a mulher no Brasil, se não estamos engajados em um processo contínuo de autocrítica e vigilância sobre nossas micro-práticas que violentam, seja fisicamente, seja simbolicamente, as mulheres ou outro grupo oprimido.

Celebrar o alheio e se juntar ao coro é fácil. Agora, refletir sobre a nossa própria posição social enquanto machistas e indivíduos privilegiados, o que por conta própria já é uma violência em si, aí trata-se de um caminho que quase ninguém quer trilhar.

Mesmo os poucos que trilham esse caminho, boa parte o faz com muita dificuldade. Alguns são seletivos em sua autocrítica, se recusam a ouvir certas sugestões e críticas de nossas companheiras e amigas feministas sobre nossa conduta e/ou deixam de chamar a atenção de nossos amigos homens quando eles reproduzem algum tipo de postura machista na nossa frente (e aqui eu me incluo como alvo dessa crítica, pois nenhum de nós, homens, está imune de tal processo reflexivo).

Para ser um homem empenhado em desconstruir o patriarcado, o machismo e o sexismo não basta afirmar perante ao mundo “eu não sou machista”. Nem mesmo a mera autoafirmação como anarquista ou libertário é suficiente para atingir essa desconstrução, uma vez que de nada serve a retórica descolada da prática, um problema que faz com que o movimento anarquista seja, infelizmente, repleto dos ditos “anarcomachos” – os supostos anarquistas que não problematizam o machismo inerente em suas condutas e em suas organizações.

Para sermos esse homem comprometido com a construção de relações sociais livres de opressões, o primeiro passo é justamente nos reconhecer como machistas, é dizer para o mundo e para si mesmo, “eu sou machista”. Enquanto as estruturas de poder de nossa sociedade continuarem a reproduzir práticas e discursos que oprimem mulheres, enquanto o patriarcado persistir em ser a ideologia hegemônica, nós seremos machistas, não importa o quão avançado estamos em nossos processos de desconstrução e autocrítica. Pois não há uma solução individual para um problema que é coletivo.

Não basta desconstruir, é preciso destruir esse patriarcado, e essa destruição há de ser coletiva. Ou todos nós deixamos de reproduzir posturas e valores machistas, ou continuaremos todos a oprimirem mulheres, seja de forma estrutural e involuntária ou consciente e deliberada – não existe exceções.

Não tornemos, portanto, vazia toda a justa celebração que ocorreu em torno da presença das tão importantes pautas feministas na prova do ENEM. Por mais que nós, enquanto anarquistas, recusemos tal prova por ela se tratar de uma ferramenta elitista e mercadológica que reproduz desigualdades e opressões capitalistas, reconhecemos o valor de ter esse debate antiopressão inscrito em seu conteúdo no sentido de disseminar essas ideias e fazer frente a discursos conservadores e protofascistas.

Dito isso, devemos permitir que todo o debate incitado por esse momento histórico passe de fato a influenciar nossa conduta cotidiana para combatermos toda violência machista e sexista inserida em nossas práticas tanto em um nível macro (no caso, na disputa pelos discursos) quanto em um nível micro (no nosso dia-a-dia).

Homens, não passaremos!

Por Gustavo Fernandes

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(Rio de Janeiro) Denúncia de agressão à mulher no bar Os Ximenes, Lapa

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“Anarcofeminismo vê o patriarcado como uma hierarquia involuntária e que a luta contra ele é parte essencial da luta de classes e da luta contra o Estado. O movimento vê o anarquismo como parte da luta feminista e vice-versa. Em outras palavras, se o anarquismo se opõe a todas as relações de poder então ele é inerentemente feminista.”

Era entre 7h e 8h da manhã de Domingo, dia 28 de Junho de 2015. Eu passei a noite trabalhando e depois fui beber com amigas pela Lapa. Decidi usar algum banheiro antes de ir embora, e como já havia consumido no bar “Os Ximenes” mais cedo, decidi utilizar o banheiro de lá. Quando me aproximei do estabelecimento, percebi que apesar do salão vazio e a ausência de funcionários, o balcão ao lado estava atendendo. Como não vi ninguém no salão e estava muito apertada fui direto pro banheiro. 

Assim que sai do banheiro dei de cara com um homem de cerca de 1,70m, com traços nordestinos e forte. Ele usava calça jeans, camisa branca com uma estampa e um boné pra frente. Obviamente esse homem era um funcionário do bar. Imediatamente ele me abordou me xingando. Me chamando de puta, perguntou se eu não tinha visto que o banheiro estava fechado e era cobrado. Automaticamente respondi xingando de volta. O homem então agarrou um dos meus braços e continuou a agressão verbal. A essa altura ele já estava me machucando e eis a informação que não pretendo sonegar: eu reagi. Reagi como mulher cansada dos estupros, dos assédios e das agressões que já sofreu. Reagi por saber que a polícia é um braço armado do patriarcado e jamais me protegeria. Reagi porque o feminicídio praticado diariamente destruiu minha psique. Reagi pelas irmãs negras e periféricas que não tem pra onde fugir. Reagi por não suportar mais ser silenciada, ameaçada e ridicularizada. Reagi por ser sempre culpabilizada pela violência que sofro. Reagi porque nada deve parecer natural.

Então o homem me socou o rosto. Por sorte e pela minha resistência física não cai. Nesse momento, após ter bebido e sido agredida, fiquei completamente desorientada. Comecei a gritar desesperadamente. Dois outros funcionários do bar se aproximaram e me imobilizaram para que o espancamento continuasse. E continuou. Consegui me soltar e a única coisa que consegui pensar foi em quebrar coisas para chamar a atenção de quem passava pela rua. Lembro que nesse momento não havia ninguém dentro do bar e eu só pensava que eles provavelmente me estuprariam e/ou me matariam ali dentro. Enquanto quebrava alguns vidros os funcionários continuavam a me bater.

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A atenção que consegui chamar foi da polícia, logo apareceram Guardas Municipais. Os funcionários gritavam que eu era maluca e tinha entrado ali quebrando todo o bar. E os guardas, obviamente, acreditaram na versão dos homens e me imobilizaram, me dando voz de prisão logo em seguida. Numa brecha consegui sair de dentro do bar, sendo novamente alcançada e sendo agredida dessa vez pelos guardas. Sabendo que meus amigos estavam na próxima esquina lutei com pelo menos 6 GMs e 3 funcionários do bar até chegar lá. Quando finalmente cheguei a esquina, fui jogada na parede e levei um “mata leão” de um dos funcionários. Os guardas pareciam estar se divertindo com a cena. Juntei minhas forças e gritei pelos meus amigos. Cerca de 10 pessoas vieram até o local e se manifestaram a meu favor. No meio da confusão fui puxada por um amiga e consegui escapar. Nossa reação foi correr desesperadamente pra longe dali, eu precisava de atendimento médico e sabia o que eles eram capazes de fazer comigo enquanto supostamente me conduziriam pra delegacia.

O bar “Os Ximenes” fica na Rua Joaquim Silva, 82 – Lapa. Aquele bar que fica bem em frente a escadaria Selarón.

Levei mais de uma semana pra conseguir fazer esse relato. Eu não tinha forças psicológicas para detalhar o que aconteceu, o fiz sem ainda ter. Além do rosto bastante ferido, fiquei com hematomas pelo corpo, um dedo torcido e parte da garganta machucada a ponto de ter quebrado um pedaço do meu dente.

Decidi denunciar publicamente o ocorrido principalmente como forma de alertar as mulheres que frequentam o local. Mais que isso, para também deixar um recado: nós mulheres precisamos nos organizar para combater o machismo. A reação e a autodefesa são e sempre serão legítimas. Mas o ódio e a depressão que nos tomam podem ser substituídos por acolhimento e luta. Nossa maior arma contra a violência é a nossa sobrevivência, nossas vidas, o nosso grito, a nossa união, nossos corpos livres.

Sociedade, por que nos culpam pela opressão que sofremos? Por que nos separam e diferenciam para que fiquemos umas contra as outras? Por que justificam absurdamente as brutalidades que praticam contra nós por fazer coisas “normais” que qualquer ser tem direito? Temos direito ao lazer. Temos direito ao sexo. Temos direito à liberdade de expressão. Temos direto à nossos corpos. Temos direito à vida.

É conclusivo que a principal ação para exterminar o peso esmagador do patriarcado é a prática da educação livre. Precisamos investir esforços na conscientização das crianças para impedir que esses meninos cresçam misóginos (ódio pelas mulheres). Precisamos esclarecer aos jovens que o assédio começa com as cantadas de rua, passa pela dominação psicológica, emocional e financeira com suas companheiras e culmina em estupros e assassinatos. Não há nada de carinhoso e amoroso no sofrimento de uma mulher. NÓS NÃO GOSTAMOS DE CAFAJESTES! E mais: nós nem sempre gostamos de nos envolver com homens. E deixo aqui um alerta ainda maior sobre o genocídio das mulheres bi/lesbo/transsexuais.

Não reprimam as meninas, ensinem os meninos a não estuprar.

Deixo por fim um gigantesco agradecimento a todas e todos que me apoiaram nesse momento difícil, inclusive ajudando com remédios.

Irmãs de todo o mundo: empoderem-se de sua identidade, não se depreciem! Lutem, resistam e não deixem de sorrir e dançar! “

“A ignorância é o elemento mais violento da sociedade.”

“Não passamos de átomos no incessante esforço humano em direção à luz que brilha na escuridão: o ideal de liberação econômica, política e espiritual da humanidade!” – E. G.

A. 09/07/15

(Rio de Janeiro) Chamada aberta para a roda de conversas “Gêneros, sexualidades e anarquismo”

O Fórum anarquista aproxima-se do seu início e entre as rodas de conversa teremos a temática “Gêneros, sexualidades”. Felizmente, parece que o tema receberá o devido destaque, porque os grupos feministas e LGBTs vêm apontando insistentemente para a falta de coerência entre a reivindicação teórica e prática da anarquia e a permanência de um profundo sexismo.

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O sexismo se mantém nos seus “pequenos” e “grandes” atos. As denúncias são recorrentes. Centenas de casos já podem ter acontecido no passado, outras centenas ainda poderão acontecer. Sabemos muito bem, pela experiência que temos em nos manifestar, qual o poder da denúncia. Elas precisam continuar, pois em todos os campos que tratam de comportamentos arraigados não há sobressalto e solução imediata. Elas precisam fazer ver, com insistência constante, como “pequenos” atos são dolorosos, embora costumem não ser entendidos como tal, e como os “grandes” atos são inaceitáveis, nem deveriam sequer existir.

Diante da inúmera quantidade de casos sexistas, nós da LIGA nos propusemos a iniciar uma reflexão séria e profunda, pois sabemos que outros casos acontecerão e sentimos que precisamos enfrentar coletivamente o problema. As denúncias isoladas são fundamentais, mas são insuficientes para instituir uma nova prática de relacionamentos e a internalização de condutas igualitárias entre os sexos. Somos anarquistas e precisamos buscar, inclusive, soluções para o sexismo a partir da prática em perspectiva anárquica.

Alguns princípios precisam ficar muito claros: nenhuma opressão de caráter sexual é admissível e ponto. Sem poréns. A prática anárquica coerente não admite nenhuma atitude sexista, como também não admite o racismo, como não pode aceitar discriminações físicas, humilhações ou qualquer tipo de opressão em relação ao corpo ou idade. Sem concessões. Qualquer anarquista que medite seriamente sobre os textos que lê, as palavras que profere, chegará a essa mesma conclusão. Não há espaço para chacota.

Entretanto, entre a teoria e a prática há uma larga distância. Felizmente até, porque não é da conduta anárquica seguir uma tábua de mandamentos. É absolutamente necessário pensar nos próprios atos, pois a equidade, a liberdade, não serão alcançadas por decreto, nem mesmo por revolução, já que as práticas milenares arraigadas perdurarão. A Espanha precisou de suas Mujeres libres em 1936…

Quando se considerava em bloco a “classe operária”, “os trabalhadores”, “o proletariado” não aparecia o problema do “outro”. Não havia mulheres, homossexuais, como não havia, brancos nem negros, nem colonizados. As demandas de caráter étnico, racial e de gênero evidenciaram esses limites e trouxeram um problema que precisa ser reexaminado com muito mais insistência: o problema do comportamento desviante. Se fôssemos legalistas, partidários, bastaria criminalizar as “más” condutas, excluir os transgressores, enviá-los à prisão (ou à Sibéria), porém não o somos e resta o problema de como agir. Seremos juízes? Aplicaremos penas? Em que medida o ostracismo é ou não aceitável? Não esqueçamos, nenhum ato de sexismo é admissível!

Ainda que embrionariamente pensamos em alguns procedimentos de reflexão e integração da perspectiva de gênero dentro das ações gerais dos coletivos:

  • Estudar e integrar reflexões sobre feminismo e gênero em grupos de estudo e de discussão, daí a proposta de dar destaque ao tema no Fórum.

  • Dissociar “gênero” de “mulher”: não há visões neutras e outras, suplementares, femininas; todas as posições, ações e demandas são atravessadas pelo gênero. O gênero não é uma pauta exclusivamente feminista.

  • Ter sensibilidade para identificar problemas que normalmente ficam calados na vida privada entre pessoas. Conhecer ou perceber um comportamento fragilizado, de dependência ou de submissão e omitir-se é ser tão conivente com o sexismo quanto identificar um comportamento sexista e violento e não fazer nada.

  • A palavra é o primeiro meio para lidar com os problemas. Os coletivos precisam ser também um espaço de pedido de ajuda pessoal, sem chacota nem intimidação interna.

  • Igualmente, nenhuma intimidação para com o reconhecimento da parte da pessoa de um comportamento sexista, se essa mostra-se disposta a enfrentar os seus próprios arraigamentos culturais, pessoais, seja quem for.

  • Apoio mútuo e solidariedade para as vítimas: de ordem médica, psicológica, financeira etc.

  • Responsabilização, não punição. A pena não é uma prática anárquica. Penalidades que não têm qualquer relação com o erro cometido excluem a pessoa de lidar com as consequências dos seus próprios atos, livram-no da sua própria vergonha e a longo prazo exigem punições cada vez mais extremas, já que não lida com as causas dos problemas.

Como dissemos, tratam-se apenas de curtas propostas e ainda embrionárias para serem discutidas durante o Fórum, mas desejamos vivamente que a Roda de Conversa sobre gêneros e sexualidades estimule a realização de um encontro futuro especificamente para tratar do problema do sexismo. Infelizmente, anarquistas acordaram tarde para enfrentá-lo, como se o fato de sermos anarquistas, por si, nos eximisse de sua ocorrência. Precisamos de coragem para enfrentá-lo da forma mais anárquica possível: dialogando, chamando para a responsabilidade, encontrando soluções não julgadoras nem punitivas.

Originalmente publicado no site da Liga Anarquista no Rio de Janeiro