(Reflexão) As antinomias e os Grupos de Afinidade

gama

Por GAMA – Grupo de Afinidades e Movimentação Anarquista

Postado originalmente no Das Lutas

A liberdade do outro estende a minha ao infinito.

Mikhail A. Bakunin        

Para Proudhon, a dialética é a demonstração do real. O processo dialético é menos o movimento, em si, que a constatação da sua existência. É, por assim dizer, um fato,  na sua mais elaborada evidência, seu demonstrativo, uma vez que, para o próprio fato, contribuíram ainda um sem número de ações e iniciativas.  Assim: “A síntese não destrói realmente, mas formalmente, a tese e a antítese.” (A Criação da Ordem na Humanidade). Como evidência do perpétuo movimento, não a sua razão, ou motor, a dialética serial esforça-se mais por credenciar-se como sintoma que como causa dos processos em curso. Para Proudhon: “A teoria serial não é um método de descoberta… a teoria serial é… essencialmente demonstrativa…” (A Criação da Ordem na Humanidade).

Na condição e simultaneamente no aspecto de uma dualidade, cada antinomia é, em si, elemento potencializador da sua oposição. Provoca a reação da outra, revela a estrutura e denuncia sua natureza e propósitos constitutivos: “A antinomia é a concepção de uma lei de face dupla, uma positiva, a outra negativa… A antinomia não faz mais do que exprimir um fato, e impõe-se imperiosamente ao espírito: a contradição propriamente dita é uma absurdo.” (Sistema das Contradições Econômicas). Com lógica própria, ditado pelo ineditismo das ações humanas, bem como pelas inúmeras outras variáveis, o processo tem autonomia sobre a teoria. Tal autonomia, sempre atravessada pela multiplicidade de atores e atos, assenta-se sempre e invariavelmente sobre uma estabilidade precária: “Se se destrói o equilíbrio, o movimento não se paralisa, mas antes se desenvolve de uma maneira subversiva: a oposição dos elementos se converte em antagonismo; a sociedade passa ao estado revolucionário.” (Contradições Políticas).

Uma vez que os membros de um grupo de afinidade anarquista, ainda que identificados com a mesma premissa política, são, ainda assim, o resultado de múltiplas experiências e vivências, cabe aqui demonstrar, na mesma medida, as peculiaridades através da dialética serial.

Os militantes de um GA de intenção revolucionária, no geral, são egressos de outros grupos ou organizações com objetivos táticos e estratégicos mais amplos e gerais que aqueles observados em GA de caráter político, ou seja, específicos. Normalmente, a afinidade política se encontra no campo da concepção teórica e de um lastro histórico, simbólico e imagético, de longa duração da própria ideia política sustentada pelo GA.

No caso de cada militante, supondo-se que cada um esteja localizado em outra atividade complementar e social, torna-se fundamental entender que os espaços de inserção devem ter preservadas, no interior do GA, as suas autonomias. Uma lógica que estimula a autodeterminação de cada um, em relação ao seu trabalho, e garante as peculiaridades de cada tarefa social assumida voluntariamente, quer por inclinação pessoal, quer por autoatribuição ou ainda pelas necessidades do GA.

Nesse sentido, é primordial que cada experiência no âmbito social (de gênero, transgênero, educacional, classista, racial, territorial etc.) seja reconhecida pelo GA sem qualquer hierarquia, tanto nos propósitos, quanto na relevância, para a elaboração, por exemplo, de um plano geral estratégico, ou mesmo para o estabelecimento de regras internas de gestão do GA. A isonomia das tarefas e o reconhecimento tácito dessa equidistância são imprescindíveis para o desenvolvimento e a aplicação das linhas gerais que, dentro da mesma lógica, só podem ser estabelecidas, sem os habituais “silenciamentos”, após a assimilação, por todxs, das premissas enunciadas anteriormente.

Dessa forma, é preciso, dentro do GA, federalizar radicalmente as sensibilidades sociais de cada militância, respeitando e entendendo a ênfase de cada uma delas, bem como a relevância para a luta de cada ator coletivo e individual específico e de cada esfera de atuação. É fundamental que seja do entendimento dos membros do GA que a experiência de qualquer militante em uma esfera de atuação, por mais dilatada que seja, não valida sua opinião, no sentido mais absoluto, sobre a atuação dos outros militantes, igualmente localizados em outras esferas de atuação. Na mesma medida, cabe a cada militante entender os seus próprios limites ao contribuir com o plano estratégico geral do GA, exatamente por força da sua limitada concepção sobre espaços com os quais tem relações superficiais e periféricas.

Assim pensando, podemos inferir de tal raciocínio que o primeiro esforço de um GA deve ser pela autoinstituição das experiências concretas de militância social em seu interior. Pela sua plena expressão, entendimento e circulação. Deve ficar claro para todos que cada experiência, pelos seus muitos significados subjetivos e práticos, é única e intransferível e que, se os militantes de uma determinada esfera não gozam de toda a autoridade dentro do GA, é exatamente pelo fato de terem experimentado, apenas, uma parte do todo que interessa ao GA.

As esferas de militância social são, portanto, agentes de identidade e de pluralidade internas do GA. São a sua estrutura e simultaneamente serão o aspecto mais visível do próprio grupo quando este, se assim desejar ou precisar, se anunciar publicamente. Seus documentos devem ser a expressão disso e a sua ação concreta, uma evidência, um reforço do que ele efetivamente é. Assim, o que o GA realizar será, sempre e invariavelmente, efeito de sua constituição, sem charlatanismos ou performances compensatórias.

Todavia, para que as esferas sociais autoinstituídas não redundem em uma insularização de cada trabalho, em um tipo de emulação de egos dentro do GA, é fundamental entender e estimular a dinâmica e a necessária dialogia entre as partes. Dizemos isso porque entendemos que o caminho da unidade não é o da uniformidade e que a integração plena das experiências sociais no interior de um GA encontra-se na relação entre elas.

Para nós, perceber cada experiência, como única, cada sensibilidade, como específica, implica necessariamente criar mecanismos relacionais. Implica entender que, se a importância da experiência de cada esfera social é um fato, não é menos importante pensar que, para que não haja uma sobreposição de relevâncias, é preciso deslocar o eixo de cada uma delas para, enfim, localizá-lo na relação entre todas. Ou seja, a centralidade da dinâmica orgânica do GA deve se encontrar na relação entre as experiências militantes nas esferas sociais. É na relação que está a possibilidade de articulação dos muitos trabalhos concretos, é nela que se realiza a unidade, sem uniformidade, e se efetiva o pacto federativo, sem a subordinação. É ainda na relação que vão aparecer, não necessariamente de forma explícita, as incongruências, as contradições e mesmo as inconsistências do militante frente às demais experiências e mesmo diante da sua própria.

Escapando à lógica dicotômica entre as esferas social e política, ousando dar passos além da concepção segundo a qual há uma simples complementariedade entre essas esferas, é possível, com ênfase na relação, criar consensos, estabelecer orientações gerais e assinar documentos com a genuinidade. Sem subordinação, menos ainda com qualquer tipo de constrangimento, a relação promove a parte, em proveito do todo, e possibilita a apresentação do todo, como expressão genuína das partes. As antinomias, como queria Proudhon, se potencializam; as contradições, por serem inevitáveis, tornam-se parte pedagógica do processo.

Diante do que foi aqui exposto, é possível entender como nosso grande desafio não apenas o da transformação, mas potencializar, na mesma medida, a relação. Relacionar-se é ampliar as possibilidades e não amesquinhar as pretensões. A relação dentro do GA é, por assim dizer, o campo simultâneo do encontro e do estranhamento, da disciplina e da indisciplina, das permanências e das rupturas. É preciso encarar o GA como aquele que, em promessa, encerra os valores da sociedade que se deseja construir. Na mesma medida em que entendemos que os fins já devem aparecer nos meios, é preciso que os nossos objetivos revolucionários se traduzam em relações revolucionárias. Não há revolução na subalternidade de qualquer demanda humana, assim como não é possível a transformação com a condescendência diante das injustiças sociais.

A consigna dxs trabalhadorxs da Internacional, “paz entre nós e guerra aos senhores”, não pode e nem deve encerrar-se no seu sentido tradicional, única e exclusivamente, classista. Sabe-se hoje que, por trás da luta pelas 8 horas de trabalho e reajuste salarial, existiam ainda muitas outras. E que se a pauta econômica unificava, nem por isso resolvia todos os problemas. Emma Goldman e Malatesta, ao defenderem que o sindicalismo “não era um fim em si mesmo”, já anunciavam que, na futura sociedade sem classes, seria ainda preciso avançar. E que se a estratégia geral econômica unificava, o entendimento desta como única podia enrijecer e limitar os caminhos da revolução. Mais que tudo, e os fatos dão hoje testemunho inquestionável, pensar o GA sem seus múltiplos trabalhos sociais é amputar o processo revolucionário das suas forças mais vibrantes.