(Rio de Janeiro) Programação do I Fórum Geral Anarquista no Brasil

Local do evento: Sindicato dos Petroleiros (SINDIPETRO) | Endereço: Avenida Passos, 34, Centro, Rio de Janeiro

| QUINTA-FEIRA | 4 de junho | Primeiro dia |

(A partir das 9 horas) Chegada e alojamento

(18:30h) Conferência de Abertura: Federalismo Anarquista

| SEXTA-FEIRA | 5 de junho | Segundo dia |

(09:00 a 12:30h) Roda de Conversa I: Conjuntura nacional e internacional

(12:30 a 13:00h) Intervalo para Almoço

(13:00 a 18:30h) Grupos de Discussão: Pedagogia Libertária | Privacidade Web/celular | Assembleias Populares Horizontais no Rio de Janeiro | Comunicação comunitária/Resistência Favelada

(18:30 a 19:00h) Intervalo para Descanso

(19:00 a 21:30h) Roda de Conversa II: Gêneros, sexualidades e Anarquismo

| SÁBADO | 6 de junho | Terceiro dia |

(09:00 a 12:30h) Roda de Conversa III: Anarquismo nas regiões brasileiras e na América

(12:30 a 13:00h) Intervalo para Almoço

(12:40 a 13:30h) Lançamento do Livro Anarquismo é Movimento – Anarquismo, Neoanarquismo e pós-anarquismo de Tomás Ibáñez e bate-papo com Sérgio Nobre, tradutor do mesmo

(13:30 a 19:00h) Fórum Geral: Cartas e relatorias

(19:00 a 21:30) Feira da Autogestão, com participação de diversos indivíduos, coletivos e organizações de todo Brasil e de outros países

| DOMINGO | 7 de junho | Quarto dia |

Dia livre para trocas e conversas

Partida dos indivíduos e coletivos participantes do Fórum

(12:30 a 13:00h) Almoço

forum
Cronograma do I Fórum Geral Anarquista

Apresentação

O I Fórum Geral Anarquista é aqui considerado como espaço de encontro, conversas, análises, discussões, registros, trocas, sugestões, celebrações. Notadamente, este fórum que realizaremos no Rio de Janeiro terá uma estrutura vertical e uma horizontal. Na forma vertical, uma pauta pré-definida, de convergência e atenção comuns, será pensada e debatida por todos numa Conferência de Abertura, cuja apresentação se dará por meio de mesa com conferencistas exibindo seus estudos-experiências e o público, logo em seguida, realizando considerações ou questões. Em formato misto, as Rodas de Conversas serão constituídas de duas pessoas responsáveis pela relatoria e equilíbrio entre tempo-audição enquanto todos os integrantes de cada Roda abordam temas macro (também pré-definidos) de forma horizontal. A estrutura horizontal contará com os Grupos de Discussão que poderão ser propostos pelos indivíduos e coletivos que participarão do fórum. Em cada Grupo, um de seus proponentes fará relato do que for discutido, para que no último dia de debates possamos realizar o Fórum propriamente dito, onde, com apoio e assistência de coletivos realizadores do evento, serão apresentadas as relatorias das rodas de conversa e dos grupos de discussão. Será um momento importante para propostas dos participantes e mesmo a elaboração de uma ou várias cartas sugeridas.

Ao término do evento, realizaremos a Feira da Autogestão, espaço que se destinará à apresentação de iniciativas autogestionárias e a troca de experiências entre seus idealizadores. Sendo assim, todo e qualquer indivíduo/coletivo que produz material (alimentos e bebidas, conteúdo gráfico, editoras, bazares, feiras agrícolas/orgânicas, etc) ou que incentiva/defende/pensa a autogestão pelo viés libertário terá neste espaço a oportunidade de apresentar seus trabalhos.

Objetivos do Fórum

Promover o encontro de anarquistas no Brasil que possuem inclinação federalista; trocar experiências e conhecer estudos realizados por companheiros e companheiras país adentro; equalizar entendimentos; acordar e realizar ações pontuais locais e/ou gerais; pautar as questões de gênero e sexualidade no campo anarquista; analisar e discutir a conjuntura social, econômica e política brasileira e mundial (crise econômica, terrorismo de estado, perseguição política, arrocho dos trabalhadores, criminalização política e jurídica da pobreza, crise da água, segurança/auto sustentabilidade alimentar e energética, especulação imobiliária, manutenção dos latifúndios rurais, autogestão e descentralização das mídias, movimentos sociais, movimentos populares, sindicalismo, centros de cultura social); conhecer e conversar sobre o federalismo anarquista e elaborar passos efetivos para criação de uma federação ou federações regionais anarquistas.

art_chamada3_forum_liga

O I Fórum Geral Anarquista é realizado pela Liga Anarquista no Rio de Janeiro

Apoio do Núcleo Pró-Federação Libertária de Educação (EL) e Instituto de Estudos Libertários (IEL) 

Divulgado pela Internacional de Federações Anarquistas (IFA) e pelas federações que a compõem

Cobertura da Rede de Informações Anarquistas | De baixo para cima, ria você também!

(Conto) Crônicas de bolso em bytes: desmistificar

morro-daprovidencia
Morro da Providência, Centro do Rio de Janeiro

Por Vinicius Soh

Nos dois primeiros anos, só repetiu o caminho de casa pro trabalho, faculdade. Mesmas ruas, seguia reto da Presidente vargas, virava depois de certa altura duas vezes pra esquerda. Terceiro ano, uma enchente alastra a cidade. Se obriga a subir por duas ruas acima porque seu caminho de sempre se tornou uma reprise da Lagoa azul. No ano seguinte, primeiro assalto na passagem de conforto, nada era tão seguro assim. Começou a mudar um pouco a rota. A rua Uruguaiana desse lado de cá não era tão obscura assim, tinha até policiamento de vez quando. Não que a polícia fosse garantia de nada, já sabia. Começou a ver com certo conforto e graça a presença dos fieis evangélicos que saiam das igrejas e suas vigílias enquanto voltava no meio da madrugada de uma noitada ou boteco. Visitou, meses depois, pela primeira vez, uma roda de samba há duas quadras de casa, na Pedra do Sal.

Quando completava cinco anos de moradia, embriagado, pegou pela primeira vez um ônibus errado. Desceu atrás da Central, subiu a Senador Pompeu a pé pela primeira vez na vida, antes só de táxi. Descobriu alguns comércios abertos, gente na porta do lar aliviando o calor, outros chegaram a lhe pedir um cigarro, mas findo o maço, além de ser três da manhã, negou e seguiu. Subiu o Morro da Conceição verdadeiramente pela primeira vez. Descobriu uma Santa Teresa encolhida, mais humilde e gostou. Tantos motoristas já se negaram deixá-lo na porta por conta destes detalhes de geografia apenas ensinados na escola da vida. Subiu a escadaria e conheceu a Casa Amarela do Morro da Providência. Brincou com as crianças, foi apresentado pessoalmente à marca da SMH da prefeitura do Rio nos lares dos moradores planejadamente a serem removidos um dia em detrimento de um empreendimento turístico. Resistiam. No ano seguinte conheceu o bloco de Carnaval local, Prata Preta, que guiou a ele e outros foliões por vielas, que exceto por seus moradores e micro-comerciantes locais, raramente eram desbravadas na Zona Portuária. Se perdeu atrás da cidade do samba, tirou foto com integrantes da bateria da Portela que aproveitavam a energia do bloco para comemorar o seu quinto lugar no Grupo Especial. Aos gritos de “É campeã”.

Fez amizades com uns colombianos e peruanos que moravam em um dos antigos cortiços localizados por sua área. Tocaram uma viola, trocaram uns acordes, negou educadamente o trago de maconha. Agora já era quase íntimo do moço que vende cachorro quente na esquina de sua residência para os mesmos fieis que vinham da baixada ou zona norte especificamente para aquela congregação. Descobriu que ele, na verdade, reside no Engenho Novo. Admira a disposição de ambos. Ainda não sabe como lidar com moradores de rua, embora fique mais com angústia por eles do que deles. Como da vez que um, já senhor de idade, trilhava seu rumo pela Sacadura Cabral com pedaços de espuma de um travesseiro que, supôs, não ia precisar mais. Um João e Maria sem Maria se trilhando pelas vias da Gamboa. Certamente nunca esqueceu o caminho de volta. Desde a primeira semana que se mudou, pelo menos 2 vezes por semana, cruza também por uma senhora que lhe aplaude quando passa, quase na esquina da Marechal Floriano, ao lado da quadra do colégio Pedro II. Posteriormente descobriu que aplaudia todos com fins de chamar atenção e pedir trocados. Nunca lhe guardou rancor por isso e ainda aceita, humildemente, os aplausos que nunca mereceu.

Sete anos de capital carioca e tem se acostumado a subir agora pela viela paralela à sua habitual, a dos Andradas, lado oposto ao Largo de São Francisco. Ali tem dois bares que varam a madrugada com movimento, alguns camelôs, cachorros, gatos, e crianças brincando. Descobriu até uma roda de choro em um dos bares, na esquina da Conceição, que acontece de vez em quando. Sete anos depois. Quem sabe tenham que passar só mais meia dúzia para perder o medo de vez do bairro onde reside. O medo da cidade deverá durar mais uns séculos. Ou, quem sabe, acabará na análise.

(Artigo) Estado ou Revolução? – Parte I

pariscomuna

Por Paulo Henrique Cople

Questões, encruzilhadas. Se nos colocamos do ponto de vista do movimento revolucionário, i.e. de um movimento social que sabe e sente que a única solução para os impasses que o atual estado de coisas produziu é sua supressão radical e a criação de um novo modo de existência social, elas não podem deixar de se multiplicar imensamente. As mortes a que o modo de produção e circulação infernal da vida que é o capitalismo nos obrigou são muitas (ou uma mesma) e todas conhecidas: a iminência de uma catástrofe material concebida sob o índice da crise ecológica, a destruição da vida de todos os que são obrigados a viver na forma do trabalho assalariado, a miséria estendida a todos os cantos da subjetividade e o controle das formas de vida, o empauperamento massivo… Se reconhecemos os problemas, não podemos evitar que esses problemas assumam a forma de uma questão clássica, já envelhecida, mas que não pode deixar de nos assombrar: o que fazer? Em um primeiro momento e em nível mais abstrato, a resposta é mais ou menos óbvia (ao menos nos desejos revolucionários): a ruptura só pode ser o efeito de uma ação política, da irrupção de uma nova organização das formas de sociabilidade e dos modos de produção e circulação materiais correlatos. Mas o impasse seguinte a que chegamos, o impasse que sempre nos leva a voar em círculos é: qual é a forma que a ação política a produzir a ruptura deveria tomar? E, então, repetimos como gagos: o que fazer? Não é, certamente, o caso de inventar de antemão, como uma ideia cerebral já pronta nos nervos de um messias a ser descoberto, as figuras que o processo necessariamente caótico e explosivo da transformação social pode tomar. O caminho que tentamos é mais rigoroso em certo sentido, mais sóbrio: indicar os impasses a que as formas já colocadas nos levaram, as razões pelas quais os céus fugiram ao assalto das multidões e apenas sugerir algumas rotas de fuga do impasse. E é em um ponto preciso que gostaríamos de tentar colocar a questão da forma da ação anti-sistêmica: a eterna questão do Estado.

A questão de sua natureza precede: o que é o Estado? E é preciso lhe dar contornos precisos, sob o risco de fazer com que todo o problema seja passe pelo terceiro excluído e acabemos em uma dialética estéril, a uma disputa de fraseologias. Quando definimos o Estado como toda e qualquer forma de poder político soberano, ou como uma comunidade vivendo sob um mesmo governo, acreditamos dar uma resposta suficientemente abrangente e adequada. Mas não é bem esse o caso: a afirmação é tão vaga que deixa escapar o que é o fator de produção de um Estado, sua própria forma política.  Com efeito, a tarefa teórica da gênese do Estado já foi operada, nos parece, de maneira completamente satisfatória por Clastres[1], Deleuze e Guattari[2]. E ainda que Clastres possa usar em determinados textos um vocabulário inadequado referindo-se ao Estado como “poder político”, isso afeta em muito pouco a estrutura de sua teoria do Estado. Mais do que uma expressão genérica prestes a se confundir com o poder político, o Estado se efetua como uma formação sócio-histórica específica, um determinado arranjo do campo social passível de uma determinação precisa, portanto. Ele se define, sobretudo, como unidade transcendente e normativa do campo social, ou, se se preferir, como um elemento do campo social que se eleva (ou crê se elevar) acima do campo social e passa a atuar sobre toda a extensão do último com força de lei. Deste ponto de vista, é preciso repeti-lo, todo Estado é despótico, “sempre houve apenas um só Estado”[3], ainda que do ponto de vista de seu processo empírico ele possa variar imensamente.

É verdade que a teoria “marxista” – que, neste ponto, encontra, é verdade, suas raízes teóricas em Marx, mas apenas para transformá-lo na caricatura de um pai fundador doutrinal – nunca fez do Estado o ponto de partida da cisão do campo social em classes antagônicas e o relegou a um papel secundário. Já em A Ideologia Alemã Marx encontrava na divisão do trabalho, como razão real das sociedades de classes, não mais do que o efeito do aumento da produtividade, da produção de novas necessidades no trabalho e do aumento populacional como base dos dois primeiros. E ainda que sua realização propriamente dita só se dê com a divisão entre trabalho material e trabalho espiritual, ou entre produtor e consumidor, a causa específica desta última divisão permanece obscura, e tudo se passa como se ela fosse uma decorrência espontânea de um desenvolvimento econômico igualmente espontâneo, como se ela fosse um acontecimento “natural”. O próprio Estado aparece como decorrência ilusória do processo de divisão do trabalho[4], ou, veremos, apenas como o instrumento secundário de que uma classe se serve para consolidar sua dominação sobre a outra, como a máquina de transformação de seu poder de classe em força de lei. Como dirá Clastres, no entanto

 “O Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é necessário pois, que exista antes a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por uma relação de exploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade – a divisão em classes – deveria preceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem a fragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se a sociedade é organizada por opressores capazes de explorar os oprimidos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre o uso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Estado ‘monopólio da violência física legítima’. A que necessidade responderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua essência – a violência [ou, digamos, o poder como força de coerção transcendente] – é imanente à divisão da sociedade, já que é, nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por um grupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão de uma função preenchida antes e alhures.”[5]

Em todo caso, o Estado em sua forma inicial (e única, já que como veremos, sua mutação moderna muda sua natureza sem transformá-la) como unidade despótica transcendente não pôde deixar de se insinuar como fator causal da divisão do trabalho, como sua razão real. Mais: ainda que o Estado se defina por sua unidade transcendente ao campo social, sua efetuação concreta imediata gera as próprias condições pelas quais, através de um longo processo, as sociedades de classes poderão produzir sua figura mais recente e mais destrutiva no capitalismo. Como razão real da divisão do trabalho, o Estado é indissociável de seus efeitos imediatos como propriedade, dinheiro e força militar unificada (monopólio da violência).  A terra, não mais distribuída em uma série de unidades produtivas autônomas como no universo primitivo, torna-se propriedade do Estado, “ou dos seus mais ricos servidores e funcionários (e deste ponto de vista não há grande mudança quando é o Estado que simplesmente garante a propriedade privada de uma classe dominante que dele se dinstingue)”[6]. O dinheiro, por sua vez, não encontra sua gênese no comércio, com o qual não tem nenhuma ligação necessária, mas no imposto e na unidade monetária imposta pelo Estado a seus súditos. Quanto ao monopólio da violência, o mesmo que poderá servir como dispositivo da acumulação primitiva no início da era moderna, sua relação com o Estado é demasiado óbvia. E se é verdade que o capitalismo nasce com a conjugação de fatores sociais “autonomizados” na forma da propriedade privada (os meios de produção, de um lado, e o trabalho, de outro), e não como efeito da ação direta do Estado despótico, não é menos verdade que as condições para seu nascimento só puderam surgir com o nascimento do Estado despótico.

Por outro lado, a instauração do capitalismo muda profundamente o sentido das operações do Estado. De unidade legisladora transcendente, o Estado, a partir do momento em que passa a ser agente subordinado da maquinaria capitalista, devém lei imanente. Devém: isso não quer dizer, de modo algum, que o Estado deixe de ser transcendente, que se confunda com a imanência do campo social. Tender à concretude, devir imanente quer dizer, para o Estado, exprimir relações de dominação social que lhe são, geneticamente, exteriores, quer dizer que de instituição celeste e unificada, o Estado se desdobra em um sem número de instituições destinadas a regular e controlar o campo social, já que é em aderência ao campo que os movimentos de realização do valor são efetuados. Ele não designa mais uma classe dominante. É, pelo contrário, instituído pela classe dominante “e que o incumbem da prestação de serviços à potência delas e às suas contradições, às suas lutas e aos seus compromissos com as classes dominadas”[7]. Se o capitalismo é formado pela abstração (descodificação) de fluxos materiais em uma atividade produtiva tomada como um fim em si mesmo, essa atividade só é possível porque de outro lado o capitalismo invoca uma potência de regulação e controle dos fluxos materiais nunca antes vista, uma tirania inaudita. Como dirá Marx

“A sociedade burguesa, com suas relações de produção e troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçaram casa vez mais a existência da sociedade burguesa.”[8]

A força de regulação e controle das forças produtivas, o único elemento capaz de assegurar a reprodução do modo de produção capitalista é o Estado. É o Estado quem assume, no capitalismo, a tarefa de um arquifeiticeiro capaz de controlar os poderes infernais que a burguesia invocou no regime de auto-valorização do valor, e seu poder é tão maior quanto maiores são as forças produtivas que deve controlar. Se o Estado despótico, em um passado distante, assegurou as condições de possibilidade para o surgimento da burguesia, e esta, por sua vez, funcionou como agente de instauração do regime capitalista, é o Estado capitalista que assegura a regulação, a reprodução, a organização e a direção do modo de produção capitalista.

 “Nunca o Estado perdeu tanta potência para colocar-se com tanta força a serviço do signo da potência econômica. E, apesar do que se diz, o Estado capitalista desempenha este papel desde muito cedo, desde o início, desde sua gestação sob formas ainda meio feudais ou meio monárquicas: controle da mão de obra e dos salários, do ponto de vista do fluxo dos trabalhadores ‘livres’; outorga de monopólios, de condições favoráveis à acumulação, luta contra a superprodução, do ponto de vista do fluxo de produção industrial e mercantil. Nunca houve capitalismo liberal: a ação contra os monopólios remete, em primeiro lugar, a um momento em que o capital comercial e financeiro faz ainda aliança com o antigo sistema de produção, e em que o capitalismo nascente só pode assegurar-se da produção e do mercado obtendo a abolição desses privilégios. Que não há nisso luta alguma contra o princípio de um controle estatal, com a condição de que seja o Estado que lhe convém, é o que se vê claramente no mercantilismo, porque ele exprime as novas funções comerciais de um capital que passou a ter interesses diretos na produção.”[9]

Dizer que o Estado devém imanente ao campo social é dizer que o Estado capitalista, em sua concretização, tende a confundir-se com a série de instituições de regulação e controle dos fluxos materiais e econômicos, que ele torna-se tendencialmente distribuído pelo conjunto de instituições que garante a regulação e a reprodução das relações de produção globais. Em suma, ele tende a se confundir com o conjunto de relações sociais e de produção (o que é o mesmo) que mantém e reproduz o modo de produção capitalista. Ele constitui o elemento necessário sem o qual nenhuma descodificação, nenhuma desregulação ou liberação de fluxos materiais e econômicos sequer seria possível. Se o capitalismo descodifica e desterritorializa, é apenas na medida em que o Estado capitalista axiomatiza e reterritorializa artificialmente os fluxos materiais. Por outro lado, sua tendência ao concreto jamais pode se realizar integralmente, e é preciso manter um mínimo de transcendência, um mínimo de distinção entre o Estado e o campo social, mas um mínimo que é o suficiente para elevar o despotismo do Estado a seu máximo. E como seria possível, de outro modo, todo o aparato de burocratas, técnicos, especialistas, juízes, policiais, militares e parlamentares capazes de garantir os axiomas ou normas necessários para a reprodução do capitalismo? Como seria possível evitar que o poder político se tornasse imanente ao corpo social, e que este, por sua vez, fizesse explodir os axiomas e com eles o Capital? Mesmo através de sua concretização, da ponta mais intensa de sua atualização no regime capitalista, “sempre houve apenas um só Estado”.


Notas

[1] CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado, pp. 46-67 e 201-232.

[2] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, pp. 260-265 e 287-295.

[3] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 291.

[4] Sobre estes pontos, cf. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã, p. 35-37.

[5] CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado, p. 216. Notemos, no entanto, que o que permite a Clastres assumir essa posição é a constatação, entre os ameríndios das terras baixas, da inexistência de uma espontaneidade da divisão (no sentido próprio e forte) do trabalho, assim como da existência de dispositivos que impeçam a realização da tendência ao surgimento de uma unidade transcendente e normativa do corpo social, como o elemento capaz de produzir a divisão do trabalho. Cabe salientar também que Clastres aponta como um dos fatores tendenciais indiretos para o surgimento do Estado o aumento populacional, tal como Marx o aponta em relação à gênese da divisão real do trabalho. Cf. A Sociedade contra o Estado, p.97-117.

[6] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 261. Sobre o ponto seguinte, cf. a mesma passagem.

[7] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 293.

[8] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista, p. 45.

[9] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 335. O grifo é nosso.

(Rio de Janeiro) Chamada aberta para a roda de conversas “Gêneros, sexualidades e anarquismo”

O Fórum anarquista aproxima-se do seu início e entre as rodas de conversa teremos a temática “Gêneros, sexualidades”. Felizmente, parece que o tema receberá o devido destaque, porque os grupos feministas e LGBTs vêm apontando insistentemente para a falta de coerência entre a reivindicação teórica e prática da anarquia e a permanência de um profundo sexismo.

naked_art-402x251

O sexismo se mantém nos seus “pequenos” e “grandes” atos. As denúncias são recorrentes. Centenas de casos já podem ter acontecido no passado, outras centenas ainda poderão acontecer. Sabemos muito bem, pela experiência que temos em nos manifestar, qual o poder da denúncia. Elas precisam continuar, pois em todos os campos que tratam de comportamentos arraigados não há sobressalto e solução imediata. Elas precisam fazer ver, com insistência constante, como “pequenos” atos são dolorosos, embora costumem não ser entendidos como tal, e como os “grandes” atos são inaceitáveis, nem deveriam sequer existir.

Diante da inúmera quantidade de casos sexistas, nós da LIGA nos propusemos a iniciar uma reflexão séria e profunda, pois sabemos que outros casos acontecerão e sentimos que precisamos enfrentar coletivamente o problema. As denúncias isoladas são fundamentais, mas são insuficientes para instituir uma nova prática de relacionamentos e a internalização de condutas igualitárias entre os sexos. Somos anarquistas e precisamos buscar, inclusive, soluções para o sexismo a partir da prática em perspectiva anárquica.

Alguns princípios precisam ficar muito claros: nenhuma opressão de caráter sexual é admissível e ponto. Sem poréns. A prática anárquica coerente não admite nenhuma atitude sexista, como também não admite o racismo, como não pode aceitar discriminações físicas, humilhações ou qualquer tipo de opressão em relação ao corpo ou idade. Sem concessões. Qualquer anarquista que medite seriamente sobre os textos que lê, as palavras que profere, chegará a essa mesma conclusão. Não há espaço para chacota.

Entretanto, entre a teoria e a prática há uma larga distância. Felizmente até, porque não é da conduta anárquica seguir uma tábua de mandamentos. É absolutamente necessário pensar nos próprios atos, pois a equidade, a liberdade, não serão alcançadas por decreto, nem mesmo por revolução, já que as práticas milenares arraigadas perdurarão. A Espanha precisou de suas Mujeres libres em 1936…

Quando se considerava em bloco a “classe operária”, “os trabalhadores”, “o proletariado” não aparecia o problema do “outro”. Não havia mulheres, homossexuais, como não havia, brancos nem negros, nem colonizados. As demandas de caráter étnico, racial e de gênero evidenciaram esses limites e trouxeram um problema que precisa ser reexaminado com muito mais insistência: o problema do comportamento desviante. Se fôssemos legalistas, partidários, bastaria criminalizar as “más” condutas, excluir os transgressores, enviá-los à prisão (ou à Sibéria), porém não o somos e resta o problema de como agir. Seremos juízes? Aplicaremos penas? Em que medida o ostracismo é ou não aceitável? Não esqueçamos, nenhum ato de sexismo é admissível!

Ainda que embrionariamente pensamos em alguns procedimentos de reflexão e integração da perspectiva de gênero dentro das ações gerais dos coletivos:

  • Estudar e integrar reflexões sobre feminismo e gênero em grupos de estudo e de discussão, daí a proposta de dar destaque ao tema no Fórum.

  • Dissociar “gênero” de “mulher”: não há visões neutras e outras, suplementares, femininas; todas as posições, ações e demandas são atravessadas pelo gênero. O gênero não é uma pauta exclusivamente feminista.

  • Ter sensibilidade para identificar problemas que normalmente ficam calados na vida privada entre pessoas. Conhecer ou perceber um comportamento fragilizado, de dependência ou de submissão e omitir-se é ser tão conivente com o sexismo quanto identificar um comportamento sexista e violento e não fazer nada.

  • A palavra é o primeiro meio para lidar com os problemas. Os coletivos precisam ser também um espaço de pedido de ajuda pessoal, sem chacota nem intimidação interna.

  • Igualmente, nenhuma intimidação para com o reconhecimento da parte da pessoa de um comportamento sexista, se essa mostra-se disposta a enfrentar os seus próprios arraigamentos culturais, pessoais, seja quem for.

  • Apoio mútuo e solidariedade para as vítimas: de ordem médica, psicológica, financeira etc.

  • Responsabilização, não punição. A pena não é uma prática anárquica. Penalidades que não têm qualquer relação com o erro cometido excluem a pessoa de lidar com as consequências dos seus próprios atos, livram-no da sua própria vergonha e a longo prazo exigem punições cada vez mais extremas, já que não lida com as causas dos problemas.

Como dissemos, tratam-se apenas de curtas propostas e ainda embrionárias para serem discutidas durante o Fórum, mas desejamos vivamente que a Roda de Conversa sobre gêneros e sexualidades estimule a realização de um encontro futuro especificamente para tratar do problema do sexismo. Infelizmente, anarquistas acordaram tarde para enfrentá-lo, como se o fato de sermos anarquistas, por si, nos eximisse de sua ocorrência. Precisamos de coragem para enfrentá-lo da forma mais anárquica possível: dialogando, chamando para a responsabilidade, encontrando soluções não julgadoras nem punitivas.

Originalmente publicado no site da Liga Anarquista no Rio de Janeiro

(Campinas) Convite aberto para o XIV Expressões Anarquistas – Outubro de 2015

XIV Expressões Anarquistas em Campinas - Outubro de 2015
XIV Expressões Anarquistas em Campinas – Outubro de 2015

Saudações anárquicas,

A união anarquista Fenikso Nigra vem convidar as pessoas, grupos, coletivos, uniões e associações anarquistas que tenham alguma afinidade e interesse no evento XIV EXPRESSÕES ANARQUISTAS que realizaremos nos dias 10 e 11 outubro de 2015 em Campinas, interior de São Paulo.

De forma breve, a proposta do Expressões Anarquistas é motivar, promover e organizar práticas anarquistas no interior paulista onde a prática e organização anarquista estão em menor intensidade.

O evento contará com uma exposição de materiais anarquistas e está aberto a todas formas de expressão cultural que possam idealizar e apresentar.

Nesse sentido, solicitamos a comunicação prévia para divulgar na programação do evento.

Existe a possibilidade que conforme o interesse dos grupos e pessoas, de realizarmos conjuntamente uma Feira Anarquista, a qual seria a primeira realizada na cidade de Campinas. Mas para sua efetivação, repetimos, que tenha interesse de grupos, coletivos, associações que tenham essa vocação.

A programação proposta previamente é construir as conversas libertárias de forma modular em temas gerais, nos quais as pessoas, grupos, coletivos, associações possam contribuir com suas experiências e vivências de luta. Visamos, acima de tudo que se tenha uma interação entre as pessoas, não só como pessoas espectadoras passivas, mas que possam também contribuir ativamente na troca de informações que motivem a ações e organizações diretas, de base anarquista ou ao menos que sejam consideradas como referência prática de luta por emancipação das pessoas forma geral.

Antecipadamente agradecemos a atenção, contamos com a presença e teremos espaços para hospedagem das pessoas que precisarem.

Saúde e anarquia!

Originalmente publicado em anarkio.net