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(Artigo) O que Temer?

8EF3.tmpSegundo a historiografia oficial e oficiosa, grosso modo, as forças políticas brasileiras – e latino-americanas, em geral – dividir-se-iam, de bom grado, em dois grandes blocos: liberais doutrinários vs. autoritários instrumentais; luzias vs. saquarema; conservadores entreguistas vs. nacionais desenvolvimentistas; coxinhas e petralhas. Nada novo sob o sol. Contudo, a dicotomia não resiste à prova. Não apenas no sentido de que outras forças diabolizam essa simbologia bipartidária, borrando o espectro, mas também pelo fato de que, como alertava Gabriel Garcia Marquez, “nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder”. Não afirmamos a identidade entre Michel Temer e Dilma Rousseff, diga-se de uma vez. Apenas pontuamos a necessidade de saber de quais diferenças se tratam. Afinal de contas, o que temer?

A máquina capitalista funciona como axiomatização dos fluxos, através de todos os meios necessários. Ousado, descolado e performático, esse enunciado, que tão bem poderia ilustrar a camiseta dalgum barbudinho da Praça São Salvador, descreve com precisão cínica o processo que pauta as idas e vindas dessa instância misteriosa chamada de “avanço democrático”.

O que é uma axiomática? Um sistema axiomático é uma espécie de sistema dedutivo que parte de condições mínimas não-questionadas ou tidas como evidentes – os axiomas – para chegar-se às conclusões permitidas pelo sistema através de regras de definição. Isso significa – bem entendido, aplicada à discussão que pretendemos levar adiante aqui – que no capitalismo a produção de tudo que existe é submetida a um conjunto de axiomas que fazem com que os fluxos de trabalho e o os fluxos de capital sejam conjugados e encaminhados, para alegria de poucos e miséria de muitos, para o mercado mundial. No capitalismo, a produção de tudo que existe, inclusive a produção da própria existência, acaba sendo capturada para os fins do mercado. Produz-se para o mercado e nos termos do mercado.

Nesse movimento de organizar toda a atividade humana e canalizá-la para o mercado, isto é, organizar a produção num “modo”, transformá-la em trabalho – e, mais, em trabalho assalariado do qual se extrai a mais-valia – o Estado joga um papel decisivo. É ele que transforma cada um de nós em sujeito de direitos. Isto é, em pessoa privada, despida de toda e qualquer singularidade e que, para se ver restituída de tudo aquilo que lhe foi espoliado nesse processo, adquire benefícios e pagamentos, seja a título de direitos sociais ou massa salarial. Como essa restituição nunca é possível – como atesta a história da colonização – a máquina capitalista sempre se vê diante da tarefa de acrescentar novos e novos axiomas na sua já velha axiomática. Infelizmente, essa é toda a história dos sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores. Enganchar pequenos axiomas na velha axiomática do capital. Axiomas para a classe trabalhadora através de programas como o bolsa família, somado a um aumento real na massa salarial, e um aumento virtual do poder de compra ocasionado por endividamento – numa espécie de keynesianismo privado – gerado através de um sistema de crédito articulado nas malhas do capital financeiro mundial (ou, nas palavras do próprio Lula na Lapa, ou seria Lula Lélé: jamais os banqueiros lucraram tanto!); axiomas para os negros e jovens pobres através da implantação de um sistema de cotas aliados a programas como o Prouni e Pronatec; promessa de axiomas para as mulheres através da criação de um ministério voltado a problemáticas vinculadas às disparidades de gênero e toda sorte de opressões a isso vinculadas. Entre promessas e concretizações, o Partido dos Trabalhadores liberava todo o seu volume nas ondas do capital.

Não sejamos hipócritas. Não façamos eco aos enunciados mais reacionários da política brasileira. Mas não sejamos também os governistas de última hora. Os anarquistas arrependidos. Aqueles que aderem ao barco do governo que naufraga simplesmente por perceber que os fascistas sitiaram a praia. Existem, evidentemente, diferenças entre um governo que cria ou pretende criar axiomas sensíveis aos devires minoritários e aqueles que submetem as secretarias de Mulheres, Direitos Humanos, Juventude e Igualdade Racial ao crivo do – historicamente falocêntrico e hegemonicamente ocupado por homens brancos – Ministério da Justiça. Longe de pautar a justiça nos termos da igualdade racial, essa manobra tem por finalidade transformar os problemas sociais em questões policiais.

Nós não somos idiotas, existem diferenças! Todavia, acreditamos que essa diferença seja tão grande quanto aquela que separa Blairo Maggi e Kátia Abreu, atual ministro e ex-ministra da agricultura respectivamente.

Nesse sentido, o que temos que temer é exatamente aquilo que já vínhamos temendo nos últimos anos dos governos do PT. A saber, a retirada desses pequenos axiomas que foram enganchados lentamente no corpo do capital (os programas sociais, os avanços mínimos na massa salarial, os tímidos avanços na promoção da igualdade racial e de gênero através dos programas de cotas) articuladas em meio ao extermínio de negros e indígenas. Contudo, sabendo dos riscos e evitando a posição apocalíptica, acreditamos que as anarquistas possuem aqui um ponto vital. A derrocada do projeto axiomático do PT tem por consequência elevar a militância combativa para um outro patamar. Trata-se, em suma, de reconhecer de uma vez por todas que a máquina capitalista funciona aumentando e retirando axiomas conforme a conjuntura e que instaurar uma insurgência efetivamente anticíclica consiste em implodir a máquina e todos os seus axiomas. Longe de afirmar que quanto pior melhor, nós anarquistas temos a ocasião para reconhecer que diante da retirada desses axiomas não há motivos para retroceder e embarcar no governismo, nem muito menos temer o devir sombrio desse novo governo fascistóide.

Se não temos o que temer, resta saber o que fazer quando os repertórios tradicionais de ação são capturados pela direita. Nas manifestações de 2013, vimos emergir um grande campo de combate que se espalhava entre as ruas das cidades e as redes do ciberespaço. As grandes massas constituíam espaços heterogêneos que enunciavam muitas coisas. De lá para cá, num claro movimento de captura articulado em camisas da CBF, matracas verde-amarelas, danças coreografadas e patos da FIESP, o ato de se manifestar foi transformado num espetáculo, incentivado pela Globo e outras mídias hegemônicas.

A publicização, em meios de onde se escorre veneno por entre linhas e pautas, dos atos corruptos do governo, centralizou no PT e na figura da presidente as milhares de críticas sistêmicas dos manifestantes. O investimento reacionário na constituição de um nós combativo – que atua contra a corrupção e os problemas do mundo – suplantou com cinismo a velha questão de quem seria de fato o sujeito revolucionário. Olavo de Carvalho destronou Marx e os novos revoltados estão online. No reino da ficção fascistóide – onde reina um universo comunista e anti-homofobia regido pelo foro de São Paulo – combativo é ser reacionário. O pior é que os jovens e cabeludos estão caindo nessa ladainha. Lembrança do velho postulado: todo fascismo é uma revolução fracassada.

O movimento cíclico e veloz do capitalismo se atualiza em acontecimentos desastrosos. Ao contrário de um navio sem direção, a máquina capitalista se territorializa entre mobilidade e controle, dispositivos materializados nas políticas de urbanismo. As cidades se desenvolvem através de tecnologias repressivas e estéticas higienistas. Por que pensarmos então uma polaridade entre os governos de direita e de “esquerda”, ao invés de assumirmos que não há conjugação possível entre esquerda e governo?

A favor de uma análise mais materialista da conjuntura política atual e menos ligada a reproduções da política representativa, ou do Estado enquanto órgão máximo de poder, desejamos desenvolver uma reflexão que, partindo dos dispositivos de controle, seja capaz de sugerir o deslocamento dos centros de gravidade da política para instaurar espaços e práticas de resistência e insurgência. Trata-se, em suma, de criticar todas as posturas que investem na disputa da institucionalidade burguesa considerando que se trata de um movimento de alargamento dos parâmetros de interiorização. Ou seja, entender que no melhor dos mundos possíveis da institucionalidade o máximo que se consegue é incluir o maior número de pessoas na dinâmica do mercado capitalista globalizado. Quando o que devemos, na verdade, é criar zonas de exterioridade – temporárias ou não.

Bom momento para as anarquiadas. Lutas menos interessadas em aparelhamentos midiáticos ou estatais, refratárias a todas as nuances da captura. A situação atual exige exteriorização ao capital, no sentido territorial e organizativo, na construção de autonomia, autogestão e autodefesa. O momento é oportuno, afinal com a redução, ou mesmo com a retirada desses axiomas – que funcionavam como colchão de amortecimento para as derivas da máquina capitalista – ocasionados pela transição para o novo governo, algumas lutas, antes aparelhadas pelo Estado, encontrar-se-ão doravante desaxiomatizadas, destuteladas, desprotegidas de uma proteção que só lhes vedava autonomia. Em poucas palavras, desgovernadas – reconduzidas à selvageria de um devir revolucionário.

Essa conjuntura marca a urgência de outras estratégias de insurgência, que não se detenham ao espaço “legitimado” da manifestação e dos atos de rua, mas que apostem em táticas menos chamativas ou espetacularizadas. Criar zonas autônomas, ocupar e fortalecer a ocupação das escolas, das fábricas, dos espaços de moradia, dos bairros, das cidades e dos mundos (im)possíveis. Diante desse cenário de consagração de um governo que nasce morto – daí a necessidade de se botar um vampiro na presidência – nunca antes na história desse país foi tão desejável afirmar o lema anarquista para dizer: não nos submetamos a nenhum governo, todo governo é um golpe, cuidemos nós mesmos das nossas vidas.

Por Nômades Urbanos Anárquicos

(Brasil) Abaixo a lei antiterrorismo, o povo quer liberdade e direitos sociais!

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ABAIXO A LEI ANTITERRORISMO | O povo quer liberdade e direitos sociais!

O Congresso Nacional, instância maior do Estado dos ricos e inimigos do povo, aprovou ontem (24/03) a famigerada Lei Antiterrorismo, que agora segue para sanção da presidente Dilma (PT-PMDB). Essa Lei antipovo estava em discussão no ano de 2014 e agora, vésperas de Olimpíadas, é aprovada em regime de urgência. Vale ressaltar que foi aprovada anteriormente pela Câmara dos Deputados por 50 deputados do PT (dos 54), em conluio com a oposição burguesa (PSDB, DEM, etc.).

A lei tem claro intuito de enquadrar as lutas populares como ações terroristas e aumentar a repressão aos movimentos autônoma da classe trabalhadora, ou seja, tornar lei o que já ocorria de fato. A lei não faz qualquer distinção sobre as motivações que levaram a ações violentas por parte do povo. O objetivo do Estado é criminalizar e punir, e em meio ao ajuste fiscal impedir que o povo possa exercer pressão real sobre as classes dominantes.

A aprovação da lei antiterrorismo em meio ao oportunismo eleitoreiro da disputa “Fora Dilma X Fica Dilma”, deixa claro que são dois lados da mesma moeda. Os governistas criam uma ilusão de democracia na qual só se beneficiam suas burocracias sindicais e partidárias, pois aceitaram ajoelhar-se frente aos empresários, latifundiários e torturadores de ontem e de hoje. Eis a “democracia” que os oportunistas nos chamam a defender! O que estamos vivendo é o avanço do Estado militarismo, é a política da contra-revolução aplicada pelo governo do PT-PMDB-PCdoB. Nós, trabalhadores e revolucionários, dizemos: Organizemos a resistência contra a repressão, criminalização e contra a retirada de direitos do povo trabalhador!

Nenhuma lei poderá deter a revolta popular!

O povo sabe que o único terrorista existente no Brasil é o Estado brasileiro!

Por UNIPA – União Popular Anarquista

(Poesia) Estado Vigilância

Estado vigilância que não te deixa ir dormir
Estado vigilância que não te deixa ir e vir
Estado vigilância aqui ou ali
Estado vigilância ele quer nos ferir!

Estado vigilância sabe sempre aonde ir
Estado vigilância não há liberdade de sentir
Estado vigilância das antenas de TV
Estado vigilância ele quer controlar você!

Estado vigilância nas favelas, nas esquinas
Estado vigilância que comanda as chacinas
Estado vigilância da medida do país
Estado vigilância ele quer te reprimir.

Estado vigilância nas carteiras das escolas
Estado vigilância a qualquer dia, a qualquer hora
Estado vigilância da censura programada
Estado vigilância dos bandidos que usam farda

Estado vigilância do corpo da mulher
Estado vigilância da maneira que ele quer
Estado vigilância da rotina de trabalho
Estado vigilância ele te quer silenciado!

Estado vigilância legitima o patriarcado
Estado vigilância bate em preto, pobre e favelado
Estado vigilância da senzala ao capitão do mato
Estado vigilância dos fascistas engravatados!

Estado vigilância do discurso sectário
Estado vigilância do latifúndio e morte dos povos originários
Estado vigilância do sangue negro de Zumbi
De Dandara à Espertirina
E tem como Tiradentes o seu grande mártir.

D.

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D.

(Artigo) Estado ou Revolução? – Parte I

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Por Paulo Henrique Cople

Questões, encruzilhadas. Se nos colocamos do ponto de vista do movimento revolucionário, i.e. de um movimento social que sabe e sente que a única solução para os impasses que o atual estado de coisas produziu é sua supressão radical e a criação de um novo modo de existência social, elas não podem deixar de se multiplicar imensamente. As mortes a que o modo de produção e circulação infernal da vida que é o capitalismo nos obrigou são muitas (ou uma mesma) e todas conhecidas: a iminência de uma catástrofe material concebida sob o índice da crise ecológica, a destruição da vida de todos os que são obrigados a viver na forma do trabalho assalariado, a miséria estendida a todos os cantos da subjetividade e o controle das formas de vida, o empauperamento massivo… Se reconhecemos os problemas, não podemos evitar que esses problemas assumam a forma de uma questão clássica, já envelhecida, mas que não pode deixar de nos assombrar: o que fazer? Em um primeiro momento e em nível mais abstrato, a resposta é mais ou menos óbvia (ao menos nos desejos revolucionários): a ruptura só pode ser o efeito de uma ação política, da irrupção de uma nova organização das formas de sociabilidade e dos modos de produção e circulação materiais correlatos. Mas o impasse seguinte a que chegamos, o impasse que sempre nos leva a voar em círculos é: qual é a forma que a ação política a produzir a ruptura deveria tomar? E, então, repetimos como gagos: o que fazer? Não é, certamente, o caso de inventar de antemão, como uma ideia cerebral já pronta nos nervos de um messias a ser descoberto, as figuras que o processo necessariamente caótico e explosivo da transformação social pode tomar. O caminho que tentamos é mais rigoroso em certo sentido, mais sóbrio: indicar os impasses a que as formas já colocadas nos levaram, as razões pelas quais os céus fugiram ao assalto das multidões e apenas sugerir algumas rotas de fuga do impasse. E é em um ponto preciso que gostaríamos de tentar colocar a questão da forma da ação anti-sistêmica: a eterna questão do Estado.

A questão de sua natureza precede: o que é o Estado? E é preciso lhe dar contornos precisos, sob o risco de fazer com que todo o problema seja passe pelo terceiro excluído e acabemos em uma dialética estéril, a uma disputa de fraseologias. Quando definimos o Estado como toda e qualquer forma de poder político soberano, ou como uma comunidade vivendo sob um mesmo governo, acreditamos dar uma resposta suficientemente abrangente e adequada. Mas não é bem esse o caso: a afirmação é tão vaga que deixa escapar o que é o fator de produção de um Estado, sua própria forma política.  Com efeito, a tarefa teórica da gênese do Estado já foi operada, nos parece, de maneira completamente satisfatória por Clastres[1], Deleuze e Guattari[2]. E ainda que Clastres possa usar em determinados textos um vocabulário inadequado referindo-se ao Estado como “poder político”, isso afeta em muito pouco a estrutura de sua teoria do Estado. Mais do que uma expressão genérica prestes a se confundir com o poder político, o Estado se efetua como uma formação sócio-histórica específica, um determinado arranjo do campo social passível de uma determinação precisa, portanto. Ele se define, sobretudo, como unidade transcendente e normativa do campo social, ou, se se preferir, como um elemento do campo social que se eleva (ou crê se elevar) acima do campo social e passa a atuar sobre toda a extensão do último com força de lei. Deste ponto de vista, é preciso repeti-lo, todo Estado é despótico, “sempre houve apenas um só Estado”[3], ainda que do ponto de vista de seu processo empírico ele possa variar imensamente.

É verdade que a teoria “marxista” – que, neste ponto, encontra, é verdade, suas raízes teóricas em Marx, mas apenas para transformá-lo na caricatura de um pai fundador doutrinal – nunca fez do Estado o ponto de partida da cisão do campo social em classes antagônicas e o relegou a um papel secundário. Já em A Ideologia Alemã Marx encontrava na divisão do trabalho, como razão real das sociedades de classes, não mais do que o efeito do aumento da produtividade, da produção de novas necessidades no trabalho e do aumento populacional como base dos dois primeiros. E ainda que sua realização propriamente dita só se dê com a divisão entre trabalho material e trabalho espiritual, ou entre produtor e consumidor, a causa específica desta última divisão permanece obscura, e tudo se passa como se ela fosse uma decorrência espontânea de um desenvolvimento econômico igualmente espontâneo, como se ela fosse um acontecimento “natural”. O próprio Estado aparece como decorrência ilusória do processo de divisão do trabalho[4], ou, veremos, apenas como o instrumento secundário de que uma classe se serve para consolidar sua dominação sobre a outra, como a máquina de transformação de seu poder de classe em força de lei. Como dirá Clastres, no entanto

 “O Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes dominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é necessário pois, que exista antes a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por uma relação de exploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade – a divisão em classes – deveria preceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem a fragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se a sociedade é organizada por opressores capazes de explorar os oprimidos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre o uso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Estado ‘monopólio da violência física legítima’. A que necessidade responderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua essência – a violência [ou, digamos, o poder como força de coerção transcendente] – é imanente à divisão da sociedade, já que é, nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por um grupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão de uma função preenchida antes e alhures.”[5]

Em todo caso, o Estado em sua forma inicial (e única, já que como veremos, sua mutação moderna muda sua natureza sem transformá-la) como unidade despótica transcendente não pôde deixar de se insinuar como fator causal da divisão do trabalho, como sua razão real. Mais: ainda que o Estado se defina por sua unidade transcendente ao campo social, sua efetuação concreta imediata gera as próprias condições pelas quais, através de um longo processo, as sociedades de classes poderão produzir sua figura mais recente e mais destrutiva no capitalismo. Como razão real da divisão do trabalho, o Estado é indissociável de seus efeitos imediatos como propriedade, dinheiro e força militar unificada (monopólio da violência).  A terra, não mais distribuída em uma série de unidades produtivas autônomas como no universo primitivo, torna-se propriedade do Estado, “ou dos seus mais ricos servidores e funcionários (e deste ponto de vista não há grande mudança quando é o Estado que simplesmente garante a propriedade privada de uma classe dominante que dele se dinstingue)”[6]. O dinheiro, por sua vez, não encontra sua gênese no comércio, com o qual não tem nenhuma ligação necessária, mas no imposto e na unidade monetária imposta pelo Estado a seus súditos. Quanto ao monopólio da violência, o mesmo que poderá servir como dispositivo da acumulação primitiva no início da era moderna, sua relação com o Estado é demasiado óbvia. E se é verdade que o capitalismo nasce com a conjugação de fatores sociais “autonomizados” na forma da propriedade privada (os meios de produção, de um lado, e o trabalho, de outro), e não como efeito da ação direta do Estado despótico, não é menos verdade que as condições para seu nascimento só puderam surgir com o nascimento do Estado despótico.

Por outro lado, a instauração do capitalismo muda profundamente o sentido das operações do Estado. De unidade legisladora transcendente, o Estado, a partir do momento em que passa a ser agente subordinado da maquinaria capitalista, devém lei imanente. Devém: isso não quer dizer, de modo algum, que o Estado deixe de ser transcendente, que se confunda com a imanência do campo social. Tender à concretude, devir imanente quer dizer, para o Estado, exprimir relações de dominação social que lhe são, geneticamente, exteriores, quer dizer que de instituição celeste e unificada, o Estado se desdobra em um sem número de instituições destinadas a regular e controlar o campo social, já que é em aderência ao campo que os movimentos de realização do valor são efetuados. Ele não designa mais uma classe dominante. É, pelo contrário, instituído pela classe dominante “e que o incumbem da prestação de serviços à potência delas e às suas contradições, às suas lutas e aos seus compromissos com as classes dominadas”[7]. Se o capitalismo é formado pela abstração (descodificação) de fluxos materiais em uma atividade produtiva tomada como um fim em si mesmo, essa atividade só é possível porque de outro lado o capitalismo invoca uma potência de regulação e controle dos fluxos materiais nunca antes vista, uma tirania inaudita. Como dirá Marx

“A sociedade burguesa, com suas relações de produção e troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçaram casa vez mais a existência da sociedade burguesa.”[8]

A força de regulação e controle das forças produtivas, o único elemento capaz de assegurar a reprodução do modo de produção capitalista é o Estado. É o Estado quem assume, no capitalismo, a tarefa de um arquifeiticeiro capaz de controlar os poderes infernais que a burguesia invocou no regime de auto-valorização do valor, e seu poder é tão maior quanto maiores são as forças produtivas que deve controlar. Se o Estado despótico, em um passado distante, assegurou as condições de possibilidade para o surgimento da burguesia, e esta, por sua vez, funcionou como agente de instauração do regime capitalista, é o Estado capitalista que assegura a regulação, a reprodução, a organização e a direção do modo de produção capitalista.

 “Nunca o Estado perdeu tanta potência para colocar-se com tanta força a serviço do signo da potência econômica. E, apesar do que se diz, o Estado capitalista desempenha este papel desde muito cedo, desde o início, desde sua gestação sob formas ainda meio feudais ou meio monárquicas: controle da mão de obra e dos salários, do ponto de vista do fluxo dos trabalhadores ‘livres’; outorga de monopólios, de condições favoráveis à acumulação, luta contra a superprodução, do ponto de vista do fluxo de produção industrial e mercantil. Nunca houve capitalismo liberal: a ação contra os monopólios remete, em primeiro lugar, a um momento em que o capital comercial e financeiro faz ainda aliança com o antigo sistema de produção, e em que o capitalismo nascente só pode assegurar-se da produção e do mercado obtendo a abolição desses privilégios. Que não há nisso luta alguma contra o princípio de um controle estatal, com a condição de que seja o Estado que lhe convém, é o que se vê claramente no mercantilismo, porque ele exprime as novas funções comerciais de um capital que passou a ter interesses diretos na produção.”[9]

Dizer que o Estado devém imanente ao campo social é dizer que o Estado capitalista, em sua concretização, tende a confundir-se com a série de instituições de regulação e controle dos fluxos materiais e econômicos, que ele torna-se tendencialmente distribuído pelo conjunto de instituições que garante a regulação e a reprodução das relações de produção globais. Em suma, ele tende a se confundir com o conjunto de relações sociais e de produção (o que é o mesmo) que mantém e reproduz o modo de produção capitalista. Ele constitui o elemento necessário sem o qual nenhuma descodificação, nenhuma desregulação ou liberação de fluxos materiais e econômicos sequer seria possível. Se o capitalismo descodifica e desterritorializa, é apenas na medida em que o Estado capitalista axiomatiza e reterritorializa artificialmente os fluxos materiais. Por outro lado, sua tendência ao concreto jamais pode se realizar integralmente, e é preciso manter um mínimo de transcendência, um mínimo de distinção entre o Estado e o campo social, mas um mínimo que é o suficiente para elevar o despotismo do Estado a seu máximo. E como seria possível, de outro modo, todo o aparato de burocratas, técnicos, especialistas, juízes, policiais, militares e parlamentares capazes de garantir os axiomas ou normas necessários para a reprodução do capitalismo? Como seria possível evitar que o poder político se tornasse imanente ao corpo social, e que este, por sua vez, fizesse explodir os axiomas e com eles o Capital? Mesmo através de sua concretização, da ponta mais intensa de sua atualização no regime capitalista, “sempre houve apenas um só Estado”.


Notas

[1] CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado, pp. 46-67 e 201-232.

[2] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, pp. 260-265 e 287-295.

[3] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 291.

[4] Sobre estes pontos, cf. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã, p. 35-37.

[5] CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado, p. 216. Notemos, no entanto, que o que permite a Clastres assumir essa posição é a constatação, entre os ameríndios das terras baixas, da inexistência de uma espontaneidade da divisão (no sentido próprio e forte) do trabalho, assim como da existência de dispositivos que impeçam a realização da tendência ao surgimento de uma unidade transcendente e normativa do corpo social, como o elemento capaz de produzir a divisão do trabalho. Cabe salientar também que Clastres aponta como um dos fatores tendenciais indiretos para o surgimento do Estado o aumento populacional, tal como Marx o aponta em relação à gênese da divisão real do trabalho. Cf. A Sociedade contra o Estado, p.97-117.

[6] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 261. Sobre o ponto seguinte, cf. a mesma passagem.

[7] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 293.

[8] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista, p. 45.

[9] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 335. O grifo é nosso.