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(FRANÇA) Comunicado do grupo Regard Noir (Paris) da Federação Anarquista francesa, sobre ataques do dia 13 de Novembro de 2015 na região parisiense.

Passados o choque e o susto, é difícil achar as palavras que não parecerão vazias de sentido depois dessa noite de 13 de novembro. Ainda que saibamos que outros massacres acontecem frequentemente no mundo, ainda que sejamos internacionalistas e logo solidários às vitimas de ataques em Ancara, Nairobi, Suruç, Beirute, Tunis e em outros lugares, não podemos fingir que esses ataques não nos afetaram de forma especial. Enquanto militantes na região de Paris, esses ataques atingiram locais que frequentamos, ruas nas quais caminhamos, afetaram pessoas que conhecemos, camaradas e amigxs. Diremos, portanto, as coisas como as sentimos e pensamos.

Garantimos às famílias e parentes das vítimas nossa compaixão. Temos consciência que isso não mudará grande coisa para elas e eles, mas isso nos permitirá talvez de achar um sentido em tudo isso.

Manter a cabeça fria não é fácil sob a avalanche de discursos midiáticos e políticos que, sob o pretexto da solidariedade, tentam instrumentalizar nossa comoção. O que esses discursos pretendem ocultar é que esses atentados são fruto de uma situação política, econômica e social: esses atos homicidas têm raízes na guerra, na miséria, na estigmatização e na exclusão, dentro da França ou nos países onde esta faz intervenções militares. Os ideólogos que se servem da religião para canalizar os rancores gerados por esses atos em prol de seus interesses políticos, econômicos e militares prosperam nessa base. Prevenir de forma real esses ataques significa, sobretudo, lutar contras as condições que os tornaram possíveis. A França já há tempos está em guerra no Mali, na África Central, na Síria, principalmente. As medidas e os discursos reacionários na França, desde muitos anos, reforçam a estigmatização e a exclusão de muçulmanxs e assimiladxs. As políticas antissociais conduzidas governo após governo, a guerra contra os pobres e os trabalhadores conduzida pela burguesia compõem a receita desse coquetel explosivo do qual nossos dirigentes, de todos os partidos, são responsáveis.

Não devemos ceder à lógica da guerra civil. Assim como os atentados de janeiro (NT: ataques contra a sede da revista Charlie Hebdo), o principal objetivo dos mandantes desses atentados é reforçar a estigmatização dos muçulmanxs esperando nos fazer entrar numa lógica de guerra de civilizações e consolidar sua própria influência sobre essas populações marginalizadas. Não é relativizar os fatos notar que a maioria das vitimas de atentados são muçulmanxs, em países de maioria muçulmana. Os discursos sobre o fechamento de mesquitas ditas fundamentalistas ou radicais constroem um paralelo imediato entre “fundamentalista” e “terrorista”, a passagem de uma coisa a outra sendo apresentada como uma simples variação, ignorando que o recurso à violência armada tem sua origem numa lógica diferente. No âmbito desse tipo de discurso, observações sobre a “recusa de amálgama” (NT: amálgama entre a religião muçulmana e o terrorismo) são pura hipocrisia.

Não nos deixemos enganar pela campanha política em favor da união nacional. Os corresponsáveis desses atentados estão hoje no poder, nas mídias e em todos os partidos políticos: do Front de Gauche (NT: Frente de Esquerda, aliança de esquerda radical análoga ao PSOL no Brasil) que apoiou as intervenções militares, ao Front National (NT: Frente Nacional, partido de extrema direita – teve 18% de votos nas últimas eleições presidenciais na França) que todos conhecem os posicionamentos. Ao favorecer a estigmatização desses que consideramos como “estrangeiros”, atacando populações de outros países, e de maneira geral contribuindo às desigualdades sociais, a classe dirigente carrega uma grande parcela de responsabilidade. A união nacional deles proíbe nossas manifestações e estigmatiza os imigrantes. Os sindicatos retiram seus chamados à greve e as ameaças contra os movimentos sociais se fazem mais presentes. A união nacional deles é um artifício de comunicação para nos fazer aceitar o estado de sítio.

Por outro lado, consideramos que os ataques de 13 de novembro tenham talvez tido como alvo “a França”, mas é o proletariado que foi principalmente atingido em seus lugares de vida e lazer. Não foi o Senado nem o Fouquet (NT: restaurante frequentado pela alta burguesia parisiense) que foram atacados. São os nossos, em sua diversidade, que foram as vitimas desses ataques. O Estado francês não virou de uma hora pra outra nosso aliado. Lembremo-nos que as medidas de repressão tomadas depois dos ataques de janeiro. O Estado que se apresenta como nosso defensor não nos protege como ele alega, visto que sua própria existência e suas ações são as bases das desigualdades e da injustiça, condições prévias de massacres desse tipo.

E agora, como agir? Como não ceder às sirenes midiáticas e políticas? Como lutar para que tais acontecimentos não sejam mais possíveis? Como resistir à ofensiva xenófoba que não tardará a chegar? É preciso que fujamos da lógica do “choque de civilizações” promovida, que eles a admitam ou não, pelas classes dirigentes francesas, e recuperada pelo Estado Islâmico. Nosso lado não mudou, nossos aliados não estão e jamais estarão no poder. Nas lutas que se anunciam, nosso lugar está decididamente do lado dos sindicalistas reprimidos, dos coletivos de resistência à guerra contra os pobres, dxs migrantes, dxs muçulmanxs e assimiladxs que lutam contra a estigmatização e de todas as pessoas que sofrem ataques em função de suas crenças ou origens. Esse campo social é o da solidariedade entre nós outros de baixo que não podemos viver que de recursos modestos e que sofremos todos os dias as injustiças dos de cima. Hoje como ontem e ainda amanhã, é preciso que nos reunamos, nos associemos e nos organizemos para combater os males que afligem essa sociedade, impulsionando ou aderindo a associações de solidariedade, redes locais de ajuda mútua e de acompanhamento dos mais oprimidos. Se engajar, militar, fazer da liberdade e da igualdade valores concretos nas ações cotidianas.

Não devemos aceitar as determinações para ficarmos em nossas casas, à não mais agir, à “deixar a polícia fazer seu trabalho”. Devemos ao contrário nos reunir para mostrar que as tentativas de divisão de nossa classe não funcionam, que elas venham de assassinos no poder ou de assassinos ilegais. O bombardeamento de represália contra o Estado Islâmico mostra bem que nossos governantes não pretendem mudar sua maneira de agir. A linha de frente deles não é a nossa. Se existir uma linha de frente, ela deve ser contra o Estado, seja ele islâmico ou não. A guerra civil não acontecerá.

É preciso ter esperança. As expressões de solidariedade espontâneas, as doações de sangue, as “portas abertas”, os apelos à paz, as multidões reunidas em homenagem às vitimas expulsando os fascistas em Metz ou em Lille são todas demonstrações positivas. Cultivemos esses clarões de solidariedade contra o medo e a ordem securitária defendida por nossos inimigos. Os anarquistas devem se levantar contra as injustiças onde quer que elas apareçam, de onde quer que elas venham. Se a situação política toma o caminho de ataques, vindos do Estado ou não, contra imigrantes, fiéis de uma religião ou militantes progressistas, nossos inimigos vão nos encontrar em seu caminho.

Coragem, os dias ruins se acabarão.

12265595_900956699980802_5500422101567759694_o-752x440NT: Nota da Tradutora

O grupo Regard Noir (Paris) da Federação Anarquista francesa trata-se de um grupo de orientação anarco-comunista e sintetista focado em ações de rua e lutas sociais, considerando a implantação local e social como única garantia da propagação de ideias anarquistas no seio do proletariado.

Link em francês: http://www.regardnoir.org/passes-le-choc-et-la-frayeur/

Regard Noir no facebook: https://www.facebook.com/RegardNoirFA

Traduzido pela Rede de Informações Anarquistas

(Polônia) Entrevista com um ativista do Jardim Ocupado ROD, em Varsóvia, Polônia

Continuamos nossa parceria com a Rádio Anarquista de Berlim a qual está nos rendendo uma série de traduções das entrevistas que a rádio realiza pela Europa e, ocasionalmente, em outros continentes sobre diversas temáticas relacionadas ao movimento libertário mundial. A próxima publicação será sobre a Ocupação Rozbrat, organizada pelo movimento anarquista da cidade polonesa de Posnânia. Agradecemos a oportunidade e seguimos na disseminação dos ideais e informações anarquistas.


 

CarrotA Rádio Anarquista de Berlim teve a oportunidade de falar com um ativista que faz parte de um grupo de pessoas ocupando uma horta urbana em Varsóvia, Polônia. Nesta entrevista, pudemos conhecer um pouco das origens deste projeto que começou na primavera deste ano. A ocupação em si é baseada na iniciativa Reclaim the Fields* na Polônia e que organizou recentemente algumas ações interessantes.

A-Radio Berlin:

Olá, Angel. Estamos sentados aqui em um jardim ocupado em Varsóvia chamado ROD. Obrigado por se mostrar disponível para ser entrevistado pela A-Radio Berlim. Você poderia primeiro falar um pouco sobre as origens do projeto?

Angel:

Sim, claro. Nós nos conhecemos em março deste ano (2015), pela primeira vez, no contexto de uma reunião do Reclaim the Fields aqui em Varsóvia. O plano era ver se havia a possibilidade de ocupar alguma coisa para iniciar um projeto. Então partimos e verificamos alguns locais selecionados, e acabamos terminando aqui, nesse jardim. É uma horta urbana abandonada ou, na verdade, uma parte de um relativamente grande jardim cujos espaços eram alugados para pessoas. Relativamente central, são quinze minutos de bicicleta, e isso é ótimo. Foi assim que tudo começou. Decidimos começar aqui. Em abril as primeiras pessoas se mudaram para cá. Em maio nós nos tornamos cinco. Está crescendo continuamente.

Como você descreveria as trajetórias das pessoas que fundaram o projeto?

Os que realmente começaram o projeto foram Oslar e Baschar, ambos viviam em Syrena na época. Syrena é uma casa ocupada no centro da cidade. Eles iniciaram a coisa toda. Lukasz também se envolveu desde o início. Vieram da cena anarquista de Varsóvia.

Você pode mencionar algumas etapas do projeto, que lhe permitiu tornar-se o que é hoje?

No início tudo parecia muito precário. É importante mencionar que esta parte do jardim foi adquirido por um investidor. Ou seja, ele tinha sido comprado da prefeitura. As pessoas que tinham hortas aqui tinham contratos de locação. Acordos relativamente longos, alguns até mesmo vitalícios. Eles foram basicamente terminados, e seus jardins apropriados. Eles foram expulsos, mais ou menos diretamente. Os mais resistentes deles, que foram os que lutaram por mais tempo contra a saída, suas casas foram parcialmente incendiadas. Essa foi uma imagem bastante extrema, ver um brinquedo queimado em uma casa parcialmente incendiada e assim por diante. E assim a primeira coisa que tínhamos que fazer era simplesmente realizar um mutirão de limpeza para que pudéssemos sequer começar algo. Quase todas as casas dificilmente tinham sido usadas pelos proprietários atuais nos últimos sete anos. Elas foram negligenciadas, algumas pessoas passaram o inverno lá em uma base temporária, e tinha havido uma série de arrombamentos, roubos, depredações. Essa foi a primeira coisa que tivemos de fazer, limpar tudo aquilo de novo.

Então montamos a cozinha como uma sala comum. Todo mundo se apropriou de uma casa, que ele ou ela haviam limpado por conta própria e arrumaram para que pudessem viver. Desde então, desde então nós continuamos a crescer. Quero dizer, algumas pessoas se juntaram a nós. Temos agora 2, 3, 4 pensões, onde os hóspedes podem ficar. Não importa quanto tempo. É muito aberto aqui quanto a esse respeito. Nós encontramos tempo para nos dedicar a coisas comuns. Nós construímos uma casa. Nós construímos uma tenda como um espaço comum e fizemos espaços sociais dessa forma.

Como você descreveu, há um grupo de pessoas que mantêm o projeto. Mas parece que também há pessoas que vêm e participam por um curto período de tempo em projetos menores e, em seguida, desaparecerem. Quantas pessoas estão no centro do projeto? O que você diria sobre isso?

Exatamente. Cinco de nós fundaram o projeto. Nesse meio tempo eu me tornei apenas uma presença temporária aqui. Três outras pessoas se juntaram, que realmente querem fazer parte disso no longo prazo. E então há uma outra pessoa que também é apenas temporária. No entanto, esta pessoa está há seis meses já. E vai ficar por mais alguns meses. Para além disso, há sempre pessoas dos círculos de Syrena ou Przychodnia, que querem sair por um dia ou uma semana ou algo assim. Elas vêm para aproveitar a natureza no meio da cidade, digamos assim.

Vocês estabeleceram os chamados “Dias de Ação” aqui, onde vocês convidam pessoas para vir e ajudarem a levar o projeto adiante. Vocês têm um objetivo específico para estes dias da ação? E por quanto tempo eles vão ocorrer?

 Eles estão quase acabando agora. Nós agora estamos tentando há duas semanas aumentar a aceitação do nosso projeto na área diretamente em torno de nós, neste bairro, através de uma limpeza que estamos fazendo de uma praça em frente aos jardins, o que também foi negligenciada e estava cheia de lixo. Nós cortamos a grama, montamos mesas, cadeiras, lugares para sentar, para criar um espaço de vivência social. Os moradores mais próximos nos disseram que eles tinham há algum tempo atrás perdidos o espaço que tinha em sua vizinhança. Ele foi simplesmente tirado sem compensação. Nós estamos tentando comunicar para as pessoas na área o que estamos planejando aqui. Ou seja, ser um espaço social para o bairro, onde todos podem participar e fazer parte livremente, isso é algo que queremos comunicar. Nós construímos uma pequena casinha com material do lixo que recolhemos aqui e a cobrimos com terra de uma forma bem bacana e também colocamos alguns azulejos que também estavam espalhados na floresta que existe bem em frente a nossa porta, que também é bastante cheia de lixo, algo que nem os moradores do bairro nem nós gostamos. Nós simplesmente tentamos mostrar que queremos fazer algo e somos contra permitir que o investidor, que quer fazer um parque de estacionamento, acabe com a horta.

Isso tem funcionado maravilhosamente, nós podemos ver. Vocês conseguiram fazer algo aqui. No final dos Dias da Ação os convidados, convidadas e pessoas que querem conhecer o projeto estão ansiosas para um concerto que ocorrerá amanhã. Esse é o primeiro concerto no lugar, certo?

Basicamente, sim. Esse será o primeiro concerto oficial nesse espaço. Cinco bandas punk estão chegando.

Esperamos que o lugar ainda esteja de pé depois. [risos]

Sim, o medo é que isso vai sair de controle então, sim. [risos]

Angel, obrigado pela entrevista. Existe alguma coisa que você gostaria de acrescentar?

Sim, claro. Nosso nome e como nos encontrar. É claro que estamos abertos para qualquer pessoa que queira passar por aqui, e elas podem, naturalmente, ficar por mais tempo. Somos chamados ROD, essa é a abreviatura anterior para jardim cívico da cidade. Significa algo como loteamento jardinário. Entretanto, nós não nos chamamos mais de jardim cívico da cidade, mas sim como jardim radical da cidade. Somos relativamente fáceis de encontrar quando você vem para Varsóvia. Nas casas ocupadas de Syrena ou de Przychodnia há uma descrição da rota de como chegar a nós. Ou on-line através da rede do “Reclaim the Fields” você pode encontrar os nossos contatos. Então – passem por aqui.

Ótimo. Então, nós esperamos que o evento amanhã seja um sucesso e gostaríamos de nos despedir.

Obrigado. Se cuidem.


*Reclaim the Fields trata-se uma constelação de pessoas e projetos coletivos dispostos a voltar para a terra e reassumir o controle sobre a produção alimentícia.

O objetivo é criar alternativas para o capitalismo através de pequenas iniciativas cooperativas, coletivas e autônomas, orientadas para suprir demandas reais, colocando em prática a teoria e relacionando a ação prática local com as lutas políticas globais.

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(Artigo) O anarquismo pode nos ajudar a salvar o mundo

 é um historiador britânico que no último dia 3 de julho publicou um artigo no jornal The Guardian, tradicional periódico progressista na Grã-Bretanha, a exemplo do extinto Jornal do Brasil. O autor argumento que depois da falência do socialismo de estado e do neoliberalismo ocidental é preciso voltar aos ideais anarquistas e aos ensinamentos de alguns dos seus teóricos, nomeadamente Peter Kropotkin. Reproduzimos a seguir uma tradução do artigo, que é mais uma prova da atualidade renovada – e da atração que continua a suscitar – do pensamento libertário.


O socialismo de estado falhou, tal como o de mercado. É preciso redescobrirmos o pensador anarquista Peter Kropotkin.

Por David Priestland

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O comediante Russell Brand

A peregrinação de fim de tarde de Ed Miliban (1) até ao apartamento de Russell Brand (2), dias antes do último acto eleitoral, foi vista pelos seus partidários como um golpe inteligente para atrair o voto da juventude e pelos seus críticos como uma tentativa embaraçosa de aproveitar o carisma do messias de Shoreditch (3). No entanto, nenhum dos pontos de vista traduz o seu real significado que é um sinal da profunda fraqueza da corrente dominante da social-democracia e dos seus desesperados esforços para cooptar as energias do elemento mais dinâmico da esquerda de hoje: o anarquismo. Na sua ânsia de ridicularizar as “divagações” de Brand, os comentaristas têm ignorado a sua forte identificação com a tradição da esquerda anarquista. De fato, entre as obras que ele recomendou aos seus seguidores há uma coleção de textos duma outra figura carismática, que viveu em Londres durante alguns períodos, o pai do comunismo anarquista: o príncipe Peter Kropotkin.

A comparação entre Kropotkin e Brand pode parecer forçada. Os antecedentes de Kropotkin, que foi o herdeiro de uma das maiores e mais antigas famílias aristocratas russas, estão muito distantes das origens humildes de Brand. Kropotkin era um erudito altamente qualificado, enquanto Brand – embora inegavelmente inteligente – tem desempenhado o papel de artista popular e de orador inspirado.

No entanto, como Brand, o exilado Kropotkin tornou-se uma figura popular em Londres, elogiado pela vanguarda artística e intelectual do fim do período vitoriano – de William Morris a Ford Madox Ford. Numa estranha antecipação do namoro Miliband-Brand, ele próprio recebeu o primeiro líder do Partido Trabalhista Keir Hardie na sua casa de Bromley. E, tal como as comparações satíricas que são feitas entre Brand e o filho de Deus, também Oscar Wilde descreveu Kropotkin como um “belo Cristo branco”.

Não é nenhuma surpresa que os sábios e profetas anarquistas estavam tão na moda tanto naquela época como agora. Na Europa, antes da primeira guerra mundial, as variantes do socialismo que colocavam a sua fé nas reformas sociais lideradas pelo Estado – a social-democracia e o marxismo-leninismo – ainda não tinham começado a eclipsar o seu concorrente anarquista. E agora que o otimismo estatizante acabou, uma esquerda revigorada pela crise atual do capitalismo global está à procura de alternativas mais adequadas à nossa era individualista.

Peter Kropotkin Alexeyevich, nascido em 1842, atingiu a maioridade em tempos conturbados. Humilhado pela derrota na guerra da Crimeia, em 1856, Alexander II decidiu fazer reformas na arcaica ordem aristocrática da Rússia, embora preservando os seus fundamentos, e a família Kropotkin era partidária do antigo sistema. Em jovem, Kropotkin foi treinado na academia militar de elite da Rússia, mas a sua capacidade intelectual fez com que fosse escolhido como pajem para a corte do czar. Depressa começou a desprezar o esnobismo obsessivo e cruel do antigo regime, identificando-se não com a nobreza, mas com os camponeses que tinham cuidado dele quando criança.

Esta aliança da empatia para com os pobres com o compromisso com a atividade intelectual, especialmente a nível da ciência, veio a definir a carreira de Kropotkin – fosse ao serviço do Estado czarista ou na realização da revolução anarquista. Enviado pelos militares para a Sibéria procurou melhorar a vida dos presos, ao mesmo tempo que conduziu expedições geográficas pioneiras. E uma vez no exílio, fora da Rússia (perseguido pela sua atividade revolucionária), dedicou-se a conciliar a sua indignação moral profunda pela desigualdade social com o seu amor pela ciência através do desenvolvimento de uma visão anarquista coerente – marcando-o para além do que tinham feito os seus predecessores anarquistas intelectualmente menos ambiciosos, Pierre -Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin .

A síntese do pensamento de  Kropotkin pode ser encontrada em dois dos mais importantes – e acessíveis – textos do anarquismo: “A Conquista do Pão” (1892) e “Campos, fábricas e oficinas” (1899). A sociedade, defendia ele, poderia ser organizada tendo como base as comunidades camponesas que viu na Sibéria, com a sua “organização fraternal semi-comunista”, livre da dominação seja do Estado, seja do mercado. E isso, insistia, não era mero saudosismo ou utopia, porque as novas tecnologias e a agricultura moderna tornariam tal desenvolvimento descentralizado altamente produtivo. Mas Kropotkin estava ciente, também, das necessidades do meio-ambiente, uma consciência que teve origem nas suas preocupações geográficas e científicas e é, por isso, justamente considerado um dos teóricos pioneiros das políticas verdes e ecológicas.

Ele também baseou a sua visão do anarquismo na ciência evolucionista. No livro “Apoio Mútuo“ (1902) defendeu que as comunidades fundadas na igualdade radical e na democracia participativa eram viáveis porque a natureza humana era cooperativa de uma forma inata. Ao contrário dos darwinistas sociais, como Herbert Spencer, que argumentavam que todas as formas de vida tinham evoluído através da “luta pela existência” e da concorrência entre organismos, Kropotkin insistiu que havia outro tipo de luta mais importante – entre os organismos e o meio ambiente. E nesta luta, a “ajuda mútua” era o meio mais eficaz encontrado para a sobrevivência.

Entre os anos de 1880 e 1920, a influência do anarquismo comunista de Kropotkin competiu com o marxismo mais estatista e ganhou muitos adeptos entre os intelectuais, camponeses e operários, especialmente no sul da Europa e nos Estados Unidos (incluindo os “Wobblies” – os trabalhadores industriais do mundo (4)). Na Ásia, o anarquismo impregnava a ideologia do Partido Comunista Chinês, e serviu de base às campanhas de desobediência civil indianas de Gandhi – embora este estivesse mais próximo do anarquismo mais religioso de Tolstói.

Mas as próprias lutas travadas pelos anarquistas acabariam por ser perdidas, em parte porque o seu compromisso com a participação democrática minou a sua capacidade de viabilizar organizações de massas estáveis e porque foram prejudicados pela violência defendida por alguns grupos anarquistas (contra a opinião de Kropotkin), o que provocou uma repressão estatal implacável. Porém, o seu destino ficou selado por uma mudança intelectual mais ampla, com o aumento do prestígio do papel dos Estados na sequência da guerra total – especialmente nas décadas de 1950 e 1960, quando quer o leste comunista e o ocidente capitalista apresentavam visões rivais de “modernização” liderada pelo Estado.

Atualmente, os Estados decaíram mais uma vez na estima popular, atingidos desde a década de 1970 pela crise da economia keynesiana e comunista, e pelo surgimento dos valores dos anos 60, que valorizam a auto-afirmação individual e a realização pessoal por cima da lealdade aos Estados-nação e a outras instituições centralizadas.

Este individualismo é particularmente forte entre as pessoas mais instruídas e entre os jovens, tal como era entre os boêmios da Inglaterra vitoriana. E não é nenhuma surpresa que o anarquismo se tenha tornado relevante novamente no espaço na esquerda nos últimos anos – desde os “anti-globalização” de finais de 1990 ao movimento Occupy de 2011. De fato, o principal teórico do Occupy, David Graeber, é um entusiasta de Kropotkin.

Os desafios do anarquismo permanecem praticamente os mesmos que existiam na época de Kropotkin. Como pode um grupo que suspeita tanto das organizações estabelecidas construir um movimento que seja eficaz a longo prazo? Como é que pode conquistar uma maioria de pessoas viciadas em um crescimento infinito e em padrões de vida cada vez mais elevados? E como pode a sua sociedade ideal, fundada sobre a democracia participativa local, controlar as enormes concentrações de poder existentes nos Estados e nos mercados internacionais?

No entanto, muita coisa mudou a favor do anarquismo. Uma sociedade mais educada está a tornar-se cada vez menos dócil e, possivelmente, menos materialista.  Enquanto isso, a falência quer do Socialismo de Estado em 1989, quer do capitalismo global em 2008, e a sua incapacidade flagrante para lidarem com a degradação ambiental, põem em questão, como nunca até hoje, a forma como vivemos. Kropotkin não é nenhum messias, mas os seus textos levam-nos a imaginar politicas que nos poderiam, de fato, ajudar a salvar o mundo.

Notas do tradutor:

(1) Antigo líder do Partido Trabalhista britânico. Demitiu-se depois da derrota do seu partido nas eleições legislativas de 7 de Maio de 2015.

(2) Ator e comediante britânico, que se tem assumido como anarquista em múltiplas entrevistas e declarações.

(3) Zona de Londres em que vive Russell Brand.

(4) Industrial Workers of the World – sindicato inspirado no sindicalismo revolucionário e no anarco-sindicalismo com grande expressão nos Estados Unidos e Canadá. Ainda existe, embora com muito menos influência do que a que tinha nas décadas de 1910 e 1920.

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(Artigo) Antropologia Anarquista: poder e hierarquia

O texto a seguir é uma tradução colaborativa da Rede de Informações Anarquistas de um artigo sobre Antropologia Anarquista escrito por Sarah Lester e publicado originalmente no The Journal of Wild Culture. A versão em inglês pode ser encontrada aqui.


Kotsuis and Hohhuq - NakoaktokA antropologia é conhecida – mais notoriamente – como uma disciplina ainda abraçada com os grilhões de seu passado colonial. É talvez um pouco menos conhecida por sua afinidade com a anarquia. Mas se tomarmos o anarquismo como a crença em uma democracia livre do aparato estatal, então não é de surpreender que exista uma ressonância natural entre ambos. Uma certa propensão a analisar sociedades sem estruturas de poder assimétricas pode explicar a escolha de tantos antropólogos e antropólogas de prefixarem os seus cargos com a palavra “anarquista”. Essas pessoas possuem evidências empíricas que sociedades sem estado são possíveis. Como David Graeber – um antropólogo acadêmico recentemente aclamado como o anti-líder do Movimento Occupy – insiste, qualquer crença em um sistema anárquico tem que decorrer da suposição otimista que um outro mundo é possível.

Mesmo apesar de seus paradoxos e tendências em exoticizar seus objetos de estudo, a antropologia é provavelmente a única disciplina que tenta considerar toda a gama de estruturas societárias e políticas em termos igualitários. Ela buscou melhor compreender sociedades que operam sem uma lei ou estado formal, mesmo – ou especialmente – os casos em que essas sociedades foram consideradas como irrelevantes. A fixação da modernidade com o progresso deu origem a uma visão de sociedades sem estado como estáticas e embrionárias, como se existissem fora da história. Sem a força propulsora da dialética, as ditas “sociedades primitivas” se encontrariam estagnadas na pré-história. Essas sociedades são vistas, portanto, como “totalmente foras do interesse da filosofia da história” – nas palavras de Hegel, fustigadas ao longo de seu compromisso com a teologia.

MAUSS POSTULOU QUE AS ECONOMIAS DE DÁDIVA ERAM BASEADAS EM UMA RECUSA PELO CÁLCULO

A visão de Hegel da história enfatiza a importância da razão, da racionalidade e do progresso. Acima de tudo, a filosofia de Hegel foca no Estado, o qual ele vê como um princípio universal com o qual os desejos subjetivos dos cidadãos e cidadãs devem coincidir para atingir algum tipo de perfeição. Enquanto os exames minuciosos de antropólogos e antropólogas de sociedades sem estado sempre arriscaram incorrer em acusações fáceis de primitivismo, em um nível mais básico, a experiência diária do trabalho de campo entre os – ouso eu dizer – primitivos tem destacado o fato de que alternativas viáveis ao modelo estatal existem de fato. Essas pessoas descobriram que sociedades podem operar com sucesso sem alguma regulação constante de uma coerção estrutural sistemática. E, ao contrário do que dizem crenças dominantes, tais sociedades não terminam com todo mundo se matando. Independentemente do quão prático a sua implementação pode ser, análises do poder não-hierárquico e da liderança não-autoritária podem desafiar as noções básicas sobre as quais a nossa concepção de civilização está baseada.

Já em 1925, o fundador da antropologia francesa, Marcel Mauss estava notoriamente advogando a moralidade alternativa de sociedades sem estado em seu “Ensaio sobre a Dádiva”. O seu estudo de trocas de produtos em sociedades de parentesco – como o Potlatch dos índios americanos do sudoeste do Pacífico e os elaborados anéis Kula dos trobriandeses – desafiou o pressuposto universal que economias sem mercado ou dinheiro devem operar por meios do escambo. Longe de procurarem se envolver em um comportamento mercantil, no qual cada lado se esforça para obter as melhores mercadorias ao menor custo possível para si próprio, Mauss postulou que as economias de dádiva não eram baseadas em cálculos, e sim em uma recusa de calcular. Não se trata de argumentar que eles falharam em desenvolver um sistema sofisticado o suficiente para render lucros de uma forma eficiente, mas sim de que esses sistemas de troca estavam enraizados em um sistema ético que rejeitava conscientemente as noções mais básicas sobre as quais nós geralmente acreditamos que a economia se baseia.

Wedding party - Qagyuhl

Mauss, um socialista revolucionário, alinhado pessoalmente com várias posições anarquistas clássicas, nunca chegou a se intitular como um anarquista. Significativamente, outro francês, Pierre Clastres – que, por sua vez, se proclamava como anarquista – ficou bastante conhecido por fazer um argumento similar a Mauss em um nível político. Enquanto Mauss usou a antropologia para iluminar caminhos possíveis para a construção de uma economia anticapitalista (em resposta à crise do socialismo de Lênin), Clastres usou a antropologia para demonstrar como era possível o poder operar de uma forma igualitária e não-coercitiva. Através da consideração das estruturas de poder de sociedades sem estado, em seus próprios termos Clastres encontrou um caminho para politizar sociedades primitivas. Ao fazer isso, ele desafiou radicalmente a noção, delineada mais proeminentemente por Thomas Hobbes, que o poder estatal é uma ilusão necessária.

Quando Hobbes escreveu o Leviatã, o seu tratado sobre o contrato social em resposta a sangrenta Guerra Civil inglesa, ele alegou que a submissão do indivíduo a um todo-poderoso estado não era apenas benéfica em prol de uma sociedade igualitária, mas de fato essencial para a sobrevivência de nossa espécia. Sociedades naturais inevitavelmente iriam ser jogadas em um estado de “guerra, onde todo homem é inimigo de todo homem”. Nas últimas três décadas, o argumento de Hobbes que a sociedade civilizada pode apenas existir através do poder coercitivo se transformou em um princípio central da atividade política hegemônica, tanto na direita quanto na esquerda. Uma vez que a ameaça da guerra é onipresente, nós entramos em um contrato social e ficamos sujeitos a um grande Leviatã, o Estado, porque sem ele existiria nada a não ser carnificina a nossa espera em cada esquina.

Clastres, perplexo com a ideia de servidão voluntária, colocou esse axioma em questionamento. Seu trabalho constantemente reitera a seguinte questão: por que nós abandonamos a autonomia e obedecemos a um governo? Se o estado se baseia na autoridade restrita de poucos contra muitos, então por que o estado trinfou? Ou, nas palavras de Etienne de la Boétié, “que desfortuna foi essa que pôde desnaturar tanto o homem”?

O uso da palavra “desnaturado” aqui é particularmente instrutivo, pois, sem dúvida, são as diferentes concepções de “natureza humana” que se encontram no centro desse debate. A orientação hobbesiana assume que a natureza humana é algo selvagem, guerreira e irracional, a ser domesticada pelas forças civilizatórias do controle estatal. Atualmente, a política ocidental mantém essa orientação. Mas ao examinar culturas com diferentes atitudes diante do poder o que a antropologia pode nos mostrar é que esse pressuposto é exatamente o que ele é: apenas um pressuposto.

VOCÊ VALE NÃO MAIS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA; VOCÊ VALE NÃO MENOS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA

Através de seu extensivo trabalho de campo dos índios Guayaki do Paraguai, Clastres demonstrou como o poder pode ser efetivamente organizado sem um aparato separado do corpo social. Sua análise sugere que é possível falar de poder localizado fora dos domínios das relações de comando-obediência. Tomemos, por exemplo, suas descrições da aparentemente paradoxal “liderença” da chefia indígena americana. Enquanto as sensibilidades ocidentais iriam automaticamente assumir que um chefe necessariamente possui algum meio de exercer poder sobre o resto do grupo, Clastres destaca que, em várias instâncias, a mais notável característica do chefe indígena é a sua completa falta de autoridade. Clastres insiste que o papel do chefe é essencialmente reconciliatório; ele não é um homem de poder mas um pacificador e árbitro. Um chefe é obrigado a possuir um talento retórico grandioso o qual, junto com o seu prestígio e generosidade, ele usa para tentar manter a ordem social. Mas, a qualquer momento, o chefe permanece sob o perigo de ser repudiado.

Qualquer um que associa poder político com a autoridade governante iria certamente achar que uma liderança nesse sentido não apenas não compensa, como também preocupa pela sua instabilidade. No entanto, Clastres insiste que a questão não é questionar a falta de autoridade do chefe em si, mas entender as relações de poder no contexto envolvido. Como alguém pode explicar a bizarra persistência de um poder que é praticamente impotente?

Clastres descreve o ato ritualizado dos discursos do chefe, o qual acontece diariamente ao amanhecer e ao anoitecer. Um chefe não adquire o direito de falar simplesmente em razão de sua chefia – a sua chefia que o obriga a falar. A tribo demanda ouvi-lo: um chefe mudo não é mais um chefe, mas, em mais um ataque às nossas expectativas, Clastres continua a demonstrar que enquanto o chefe fala, ninguém presta qualquer atenção a ele. Independente da força de sua voz ou de suas habilidades oratórias, o resto do grupo parece seguir com as ruas rotinas como se nada estivesse acontecendo. O poder não se encontra no lado do chefe, o que faz com que as suas palavras não sejam autorizativas ou poderosas.

Clastres utiliza seus achados etnográficos para alegar que está na natureza das sociedades primitivas saber que a violência é a essência do poder, e que o discurso é o oposto de violência. Ao restringir o chefe para o domínio do discurso apenas, a tribo garante que nenhum deslocamento de forças perturbará a ordem social. O chefe não pode usar as palavras para seus ganhos pessoais ou por razões de conveniências políticas, porque o chefe que tenta apropriar poder desse jeito é logo abandonado. A sociedade primitiva é o lugar onde o poder separado é recusado, porque a sociedade em si, e não o chefe, é o lugar real do poder.

Dancing to Restore an Eclipsed Moon - Qagychl

O trabalho de Clastres se opõe a noção hegeliana que o estado é o destino final de todas as sociedades. Longe do estado ser o objeto preciso da história mundial, as sociedades sem estado, argumenta, possuem mecanismos preventivos para evitar a formação de um aparato estatal: a oratória impotente do chefe representaria um desses dispositivos. Da mesma forma, Clastres descreve o ato ritualístico de marcar os corpos como uma outra maneira de frustrar o desejo humano por poder. Ao contrário da lei escrita da sociedade hierárquica que é imposta por poucos sobre muitos, a lei das sociedades primitivas, a qual é escrita sobre todos os corpos, diz: “você não vale mais do que qualquer outra pessoa, você não vale menos do que qualquer outra pessoa”. A essas sociedades não falta um estado, simplesmente. Elas são, nas palavras de Clastres, sociedades contra o estado.

Assim como Mauss desafiou a lógica assumida da economia de mercado, Clastres questionou a noção de que o poder pode apenas ser identificado como uma autoridade coercitiva. Ambos os antropólogos desafiaram a lógica evolucionista que assume que o estado e o mercado são destinos inevitáveis de todas as sociedades. Entretanto, mais do que isso, ambos fizeram a sugestão radical de que – longe de serem incapazes de alcançar o estágio avançado da civilização ocidental – essas sociedades estão realizando um esforço conjunto para conter as capacidades humanas de ganância e sede de poder de um jeito que impede que estruturas sociais autoritárias se formem.

Em oposição a descrição de Hobbes da guerra primitiva como perpétua e caótica, Clastres identifica a guerra como um mecanismo preventivo último que possibilita essas sociedades de evitar a emergência do estado. Como os eventuais colaboradores de Clastres, Gilles Deleuze e Félix Guattari, sugeriram, assim como Hobbes percebia claramente que o estado está contra a guerra, Clastres defenda que, nas sociedades “primitivas”, a guerra está contra o estado.

A QUESTÃO NÃO É SE AS PESSOAS SÃO “BOAS O SUFICIENTE” PARA EXISTIREM EM UMA SOCIEDADE PARTICULAR OU NÃO…

Aqui podemos enxergar o valor da antropologia, não como uma disciplina que analisa culturas antigas chamadas de “primitivas” que ainda existem, mas como uma ferramenta que nos possibilita imaginar novas sociedades. A anarquia, atualmente, é comumente julgada como destrutiva, violenta e niilista; é utilizada como sinônimo de caos e desordem. No entanto, anarquia, como compreendida pela maior parte dos e das anarquistas, na verdade significa o oposto. Uma sociedade anárquica – como as igualitárias que Clastres estudou – é baseada na ordem, na autonomia dos indivíduos e na cooperação sem governantes. Enquanto a maioria dos e das anarquistas, seguindo o revolucionário russo Mikhail Bakunin, acredita que caos e desordem possuem potencialidades inerentes, e que a destruição pode ser um ato criativo, o seu objetivo último é de criar uma ordem social que elimina completamente a necessidade da violência legitimada. Esforçar-se para a abolição de instituições sociais que usam a força coercitiva para criar uma nova ordem está longe de desejar um estado de permanente desordem e violência. Na verdade, alguns dos pensadores anarquistas mais conhecidos, Henry David Thoreau, Tolstói e Gandhi, eram também pacifistas.

Outra crítica comum feita ao anarquismo é que ele é idealístico demais. As moralidades anarquistas alternativas e suas visões de um mundo mais livre, com – de todas as sugestões – menos horas de trabalho, foram eventualmente descartadas como utópicas; é o risco ocupacional de reimaginar as estruturas sociais existentes. Ainda assim, um olhar mais considerado no anarquismo relevaria que ele promove uma visão da humanidade que é resolutamente realístico. Humanos não são inerentemente belicosos ou naturalmente benignos; eles possuem a capacidade para o bem e para o mal. A questão, como o escritor e crítico social Paul Goodman colocou talvez da forma mais eloquente possível, não é se as pessoas são “boas o suficiente” para existir em uma sociedade particular ou não. Mas sim como as instituições sociais podem ser desenvolvidas de um jeito que se torne mais propício das pessoas expressarem suas capacidades para a inteligência, benevolência, sociabilidade e liberdade. Anarquistas podem estar precisando de esperanças e de imaginação para vislumbrar um mundo diferente; antropólogos e antropólogas, no meu ver, estão particularmente bem situados para os guiar nesses aspectos para fazer com que isso se transforme em realidade.