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(Reflexão) Sobre práticas acusatórias ao Movimento Anarquista brasileiro

Em outros momentos, a Rede de Informações Anarquistas publicou duas reflexões, a saber, Eleição é farsa, movimentos sociais e organizações anarquistas também!Porque eu não sou anarquista, dos autores R29 e J., respectivamente. Ambas as reflexões promovem importantes críticas ao estágio atual do movimento anarquista no Brasil, perpetuado de individualismos egocêntricos, jogos por poder e autoritarismos disfarçados de princípios programáticos que contradizem os próprios princípios libertários e libertadores que deveriam guiar o anarquismo em qualquer canto do mundo.

Contudo, de modo a criar um espaço de debate, afirmarei aqui que ambos os textos reproduzem alguns equívocos que também devem ser problematizados para que o movimento anarquista brasileiro possa vislumbrar melhores horizontes futuros. Argumento, acima de tudo, que não só o conteúdo de uma crítica importa, como também a forma através da qual ela é feita, algo aparentemente desconsiderado por ambos os autores ao não se preocuparem em desenvolver, em conjunto ao movimento anarquista, uma capacidade de autocrítica que possa ser construída de uma forma leve e saudável. Nesse sentido, apresento a seguir quatro elementos os quais julguei problemáticos nas duas reflexões:

A destruição pela destruição.

A destruição, ao contrário do que pensam muitos, carrega sim consigo uma capacidade inovadora e renovadora capaz de resolver problemas e modificar realidades. Afinal, das cinzas do velho mundo nasce o novo. Contudo, quando a destruição deixa de ser um meio e se transforma no próprio fim da ação, ela deixa de ser propositiva e vira apenas uma negação niilista que em nada agrega.

Ao ler ambos os textos, por mais que eles possuam críticas que eu não só compactuo, como acredito serem problemas centrais do movimento anarquista atual, acredito que os autores ao reproduzirem uma ênfase exacerbada nesse movimento destruidor e negacionista acabam por passar uma impressão que a destruição, que chamarei aqui carinhosamente de esculacho, é a única intenção de ambos.

Explico. Chego a essa interpretação devido aos seguintes fatores: além de ambos serem poucos propositivos (o que, em si, não necessariamente é um problema, pois, como dito, é preciso primeiro criticar para depois ser propositivo), tanto R29 quanto J. parecem estar fazendo a crítica de um lugar de fala fora do próprio objeto o qual eles estão criticando, a saber, o movimento anarquista brasileiro. R29 o faz isso ao rejeitar a própria existência do movimento anarquista no Brasil, enquanto J. nega a si próprio o rótulo de “anarquista”.

Ao fazerem isso, e falarem de certa forma de um “anarquismo que existe por aí”, parece que eles se colocam como imunes à própria crítica uma vez que a construção lógica presente nos textos estabelece uma relação separada entre sujeito crítico e objeto criticado como se essas fossem duas coisas completamente distintas. Se estão do lado de fora desse movimento, se chegam até mesmo a negar o próprio movimento, qual seria então os objetivos da crítica além de esculachar e desmoralizar tal movimento?

Oras, se ambos não fizeram parte e, de alguma forma, ainda fazem sim parte do movimento anarquista (ao se proporem criticá-lo), não são eles tão responsáveis pelos nossos erros como qualquer outro militante? Seja pela omissão, pelo silêncio momentâneo, pelo estabelecimento de prioridades pessoais ou pela seletividade de nossas práticas, seja o que for, quando criticamos uma coletividade, temos que ter ciência de que fazemos parte dessa coletividade, ou seja, que somos objetos de nossas próprias críticas – algo que ambos parecem não só fugir, como também negar ao apelarem até mesmo a uma linguagem debochada (“militontos”, “iluminados”, entre outros termos), em especial o primeiro texto, na construção de sua lógica argumentativa.

Afinal, se o deboche é utilizado como forma de realizar a crítica, quem iria debochar de si próprio? Torna-se evidente assim que o criticado é o “outro”, e não o “nós”. O que nos fazer entrar no segundo elemento que pretendo problematizar, logo abaixo.

A armadilha do anarcômetro. 

Ambos os textos criticam, com razão, a existência de um anarcômetro dentro do movimento, ou seja, uma conduta deplorável de alguns militantes de quererem determinar quem é ou não anarquista, ou quem é a organização ou indivíduo mais revolucionário dentro do movimento, algo que medem a partir de um limitado punhado de princípios e práticas que eles consideram como constituintes do “verdadeiro anarquismo”. Aqueles que não seguem esses princípios e práticas não seriam tidos, assim, como “anarquistas”.

Pois bem, por mais que eu concorde com essa crítica, tanto R29 quanto J. caem na armadilha de reproduzirem eles próprios o que estão criticando. Ao apelarem não só para o deboche, mas também para uma posição privilegiado onde eles se colocam “fora” do movimento anarquista e desenvolvem uma crítica do “outro”, de quem ainda acredita, ingenuamente, que está “dentro” desse movimento, torna-se perfeitamente plausível afirmar que o que os dois autores estão querendo dizer é que o movimento anarquista brasileiro como um todo está caminhando por estradas equivocadas e eles, os iluminados, foram os únicos a perceber isso.

Temos que nos conscientizar de que quando nos propomos a realizar uma crítica estamos sempre emitindo juízos de valores sobre o que achamos certo ou errado, quer a gente queira ou não. Reconhecer isso é o primeiro passo para conseguirmos construir uma crítica amiga e construtiva ao invés de um esculacho onde se estabelece uma relação do “iluminado” perante o “ingênuo”. O tom enfático, negacionista e de deboche presente nas duas reflexões de nada ajuda a construir essa crítica mais fraterna. Dessa forma, ambos os textos tratam-se, também, mesmo que de uma forma diferenciada, de “anarcômetros”.

A localização espacial da crítica. 

Quando alguém realiza uma crítica, é importante definir precisamente o que está sendo criticando para não cair no perigo de generalizar a reflexão a dimensões e espaços da realidade social os quais devemos humildemente reconhecer desconhecimento. Tanto o primeiro texto quanto o segundo caem nesse erro ao não localizarem espacialmente a sua crítica, onde enquanto o primeiro fala do “movimento anarquista brasileiro”, o segundo nem mesmo se dá o trabalho de definir qualquer localização geográfica.

Pois bem, conhecendo os autores de ambos os textos, sei que os dois tiveram uma experiência dentro do movimento anarquista diversificada, mas ainda assim um tanto limitada, assim como eu, assim como qualquer pessoa, não importa o quão experiente seja, pois, afinal, somos todos apenas meros seres humanos.

Os coletivos que fizemos parte, os espaços que estivemos presentes e as pessoas anarquistas que tivemos a chance de conhecer são ínfimos perto da gama de possibilidades existentes dentro do movimento anarquista brasileiro, mesmo que esse não se encontre em sua melhor fase.

Então, oras, como que é possível a partir dessa limitada experiência acreditar que é legítimo falar do movimento anarquista como um todo, sendo que este que está presente de norte a sul, sendo que há relatos de sua existência, organizada ou não, em todas as regiões brasileiras, e mesmo aqui na cidade onde moramos, temos total ciência da existência de espaços e grupos os quais pouco conhecemos?

Qual a necessidade de generalizar a crítica e partir para uma arrogante presunção de que o “anarquismo brasileiro é uma farsa” se não conhecemos o movimento anarquista brasileiro em sua plenitude? Qual a dificuldade de reconhecer a nossa limitação de atuação e localizar espacial e temporalmente a nossa crítica, dado que só podemos problematizar o que conhecemos?

Ambos os textos caem no equívoco de acreditar que a experiência limitada dos autores resume toda a dimensão de possibilidades e alternativas vigentes dentro do diversificado campo que chamamos de “movimento anarquista”. Errado. O movimento anarquista sempre foi, e sempre será, muito maior do que nossas individualidades. Ainda bem.

O anarquismo pós-colonial. 

Tanto o texto de R29 quanto a reflexão de J. contém uma crítica correta em relação ao eurocentrismo não só contido em muitos dos discursos e práticas de militantes e organizações anarquistas brasileiras, como em outras esferas de produção de conhecimento dada a relação geopolítica desigual entre centro periferia que o Brasil possui com os países do norte.

Contudo, antes de prosseguirmos, vale destacar que, embora eu compactue com a constatação colocada por ambos os autores de que o anarquismo precisa se renovar, ou seja, que precisamos problematizar o colonialismo existente no fato de que o pensamento anarquismo europeu do século 19 continua guiando as nossas práticas atuais em um Brasil do século 21, a questão não é, e nem pode ser, um total abandono de tudo que foi construído e dito até o presente momento.

Pois a história do movimento anarquista é, em alguma medida, a história do operariado, das pessoas oprimidas, dos de baixos, europeus ou não, e, se afirmamos que fazemos parte desses grupos ou que ao menos somos aliados a estes, temos o dever de resgatar e resguardar tal história que é incessantemente rejeitada e negada pela historiografia oficial imposta pelo Estado e suas instituições elitistas. Além disso, tal acúmulo histórico pode conter sim respostas a problemas que hoje nos perturbam em nossas militâncias cotidianas. O problema, portanto, não é descartar o que foi produzido pela sua limitação regional e temporal, mas a transposição mecânica e acrítica que alguns militantes brasileiros fazem dos conceitos e teorias concebidas em realidades distintas do contexto social singular do Brasil atual.

Ambos os autores concordariam comigo, acredito. R29 atenta para a condição colonizada do nosso país, decreta também que os séculos 19 e 20 já acabaram além de atestar que as armas utilizadas pelo movimento anarquista de cá tratam-se de interjeições e verbetes importados dos países europeus. Já J. diz que “se ser anarquista é vomitar pensadores de outros séculos e fechar os olhos para o quanto o mundo mudou desde então, eu não sou anarquista“. Pois bem, a crítica está correta. O equívoco está em achar que tal crítica é inédita.

A questão é que essa reflexão crítica tão necessária para a renovação do movimento anarquista já se encontrando em curso há um bom tempo. O bolo já foi fatiado e distribuído, a cereja já foi digerida. Não só isso, enquanto R29 e J. ainda se limitam a simples crítica, o anarquismo do século 21 já superou esse momento ao estar vivenciando processos propositivos onde novos caminhos possíveis estão sendo colocados no horizonte de possibilidades, mesmo que muitos ainda se encontrem em uma fase embrionária.

Exemplos não faltam. O diálogo entre povos não-ocidentais com a teoria libertária presente na antropologia anarquista, o movimento pós-anarquista influenciado pelo pós-estruturalismo francês, o anarquismo negro de diversos militantes ex-Panteras Negras que incessantemente ganha forma nos Estados Unidos, o resgate da história do movimento anarquista em países da África, o confederalismo democrático curdo, os diálogos globais entre os novos movimentos sociais (feministas, queer, trans, LGBT, movimentos negros, etc.) com o anarquismo e, para darmos um exemplo local, as recentes conexões que estão sendo feitas entre os movimentos quilombolas e anarquistas no nordeste brasileiro e o movimento anarcopunk paulista que continuamente coloca em intersecção o anarquismo com as pautas raciais ilustram a capacidade de reinvenção do anarquismo mundial que tanto R29 e J. clamam e parecem negar.

Então, se considerarmos que o movimento anarquista brasileiro ainda está longe do ideal tanto em termos quantitativos quanto em formas qualitativas, qual a necessidade desse jogo identitário de ficar se afirmando frente a meia dúzia de militantes que continuam a insistir no passado? Por que não apostar nessas outras proposições que já se encontram sendo desenvolvidas cotidianamente por pessoas que necessitam mais do que eu, indivíduo privilegiado, por essa renovação? Por que toda essa ênfase na negação, na crítica ao outro, na retórica discursiva, se a melhor maneira de criticar alguém é com base no fazer diferente? Ou seja, ao invés da negação, ação. Ou melhor, negar o autoritarismo e o jogo por poder existente dentro do movimento anarquista brasileiro, algo que não ouso negar, com base em uma ação cotidiana, diária e contínua.

Debochar do outro, se colocar como fora de um movimento o qual você também fez parte e é igualmente responsável por, criticar esse movimento a partir desse lugar de fala diferenciado e privilegiado o colocando como o “outro ingênuo” enquanto você, o “iluminado”, foi um dos poucos que percebeu o quão errados estamos, tudo isso o movimento anarquista já está cheio. O que precisamos agora é desenvolver um ambiente inclusivo, livre de autoritarismos e opressões, no qual a crítica pode não só ser construída de forma leve e cuidadosa, como também traduzida em ações propositivas – e isso, como vimos nos exemplos citados, não falta. Então, antes de negar o anarquismo, conheça o anarquismo. Pois ele se encontra muito além de nossas limitadas e egóicas individualidades. As potencialidades estão aí, basta explorarmos elas.

Por G.

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(Reflexão) Porque eu não sou anarquista

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O rótulo de “anarquista” é algo controverso, contestado por muitos e discutido por outros tantos.

Dado que rotular-se significa limitar-se, muitas pessoas que tem em si, valores e estilos de pensamento anarquista, não se julgam anarquistas afim de não se limitar a algo que é pre-definido e posto por outros.

Desde criança sempre fui uma pessoa questionadora e libertária. Rompi com o ensino formal aos 15 anos de idade.

Nunca cursei uma universidade. Nunca tive preconceitos assumidos contra nenhum tipo de pessoa, classe, coisa ou ser vivo.

Claro que muitas vezes reproduzimos preconceitos que nos são impostos pela sociedade e pelo meio em que vivemos.

Longe de mim pensar que eu seria diferente.

Porem meu anti-academicismo e ao mesmo tempo a minha ânsia por um mundo melhor, me fizeram acreditar muito no anarquismo como solução e por mais distante que uma sociedade libertária esteja dos dias de hoje, acredito nela como um horizonte e como base moral para pensamentos e ações.

Militei ativamente em diversas frentes que considerei importantes. Me intitulei anarquista pois apesar de sempre ter sido contra rótulos, meu anarquismo foi algo orgânico. Numa certa época de minha vida, eu simplesmente descobri que sempre fui anarquista e não simplesmente decidi que, de um dia para outro, eu o seria.

Mas hoje vejo essa questão com outros olhos e entendo que o anarquismo está muito além de rotular-se ou intitular-se como um.

Conheci diversos anarquistas durante a vida, das mais diversas tendências e com pensamentos muitas vezes divergentes.

Talvez tenha sido justamente essa grande diversidade que pode ser encontrada no pensamento anarquista, que tenha feito com que eu chegasse a conclusão que pretendo passar com esse texto.

Se ser anarquista é vomitar pensadores de outros séculos e fechar os olhos para o quanto o mundo mudou desde então, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é passar por cima de todos os princípios libertários para organizar a militância da forma com que acho correto, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é petrificar idéias e tornar o pensamento imutável, para não contrariar algo que foi pensado por anarquistas em outros momentos, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é apontar dedos, criar brigas internas e ligar “anarcômetros”, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é se achar superior a outros indivíduos, por eles não serem anarquistas e considerar-se iluminado por sê-lo, eu não sou anarquista.

Se ser anarquista é fechar-se em clubinhos secretos, falar para si mesmos e devanear entre realidade e teorias de conspiração ridículas, eu não sou anarquista.

E se hoje não me considero anarquista, não é porque perdi ou desacreditei dos meus princípios de liberdade, anti-opressão, anti-coerção, anti-exploração e anti-hierarquia, entre outros, mas sim porque não enxergo esses mesmos princípios em uma grande maioria de anarquistas que conheci, seja no campo das idéias ou no campo das ações.

Não pretendo ser mais um trilhando um caminho hipócrita, onde as idéias não condizem com as práticas. Não quero ser o messias da salvação libertadora.

Não quero uma estátua minha em lugar nenhum e nem me tornar mártir ou herói da resistência.

Não tenho a menor pretensão de publicar textos acadêmicos ou de organizar coletivos para ação direta simplesmente para me sentir importante.

Não quero jamais ser famoso, mesmo que num submundo que não sai na TV ou jornais.

Não acredito em fórmulas mágicas pra mudar a sociedade.

Não acredito sequer que processos de mudança bruscos, com grandes rupturas sejam possíveis de ser alcançados de forma intencional. Esses processos para mim, são raríssimos e orgânicos, impossíveis de serem previstos ou provocados.

Acredito numa mudança constante, numa mudança que já estamos presenciando e que todos fazemos parte, anarquistas ou não.

Acredito em exemplos, não em gurus iluminados.

Quero andar sempre ao lado, nunca a frente ou atras.

Quero fazer mudança mas jamais SER a mudança.

Quero o confronto de idéias, não para convencer outras pessoas das minhas e sim para alimentar idéias com mais idéias.

Quero o contraditório, quero o diferente, quero o novo, o vivo, o sentido e as sensações.

Quero ser poeta, musico, escritor, medico e advogado.

Quero ser gay, puta, travesti, negro, índio e espirita e umbandista.

Quero ver o mundo, quero ouvir mais e falar menos.

Quero a minha liberdade potencializada pela do outro e não liberdades que cerceiam umas as outras.

Não quero caixinhas, clubinhos, dogmas ou sectarismo.

Disso o mundo de hoje já está cheio e não é o que colabora(pelo menos na minha opinião de merda) para essa constante mudança.

E disso o anarquismo de hoje também está cheio.

Por isso não sou anarquista.

Ou pelo menos não sou esse anarquista. Prefiro me identificar talvez como um ser anárquico, pois tenho pra mim que o anarquismo hoje precisa ser desconstruído e reconstruído, para acompanhar as mudanças do mundo e ser um horizonte menos distante.

Acredito inclusive, que talvez Bakunin ou outros grandes pensadores do anarquismo, se estivessem vivos, fariam tambem algum tipo de desconstrução, de mudança de paradigmas.

Talvez Bakunin revisse seus círculos concêntricos, Proudhon dissertasse com outro olhar sobre a propriedade, Malatesta escrevesse algo sobre proto-fascismo ou Emma Goldman sobre as diversas frentes do feminismo e seus atravessamentos com a luta trans e a filosofia queer.

Ou talvez não. Talvez se mantivessem parados no tempo, como muitos dos militantes anarquistas mais velhos, e encastelados em suas torres de marfim acadêmico, continuassem com um discurso antigo e nem sempre atemporal.

Mas talvez um dia, se o anarquismo “moderno” voltar a não caber no mundo, aceitar melhor suas transformações e passar a ser algo mais líquido e com mais fluidez, numa eterna desconstrução e reconstrução, eu volte a ser um anarquista.

J.

(Artigo) Antropologia Anarquista: poder e hierarquia

O texto a seguir é uma tradução colaborativa da Rede de Informações Anarquistas de um artigo sobre Antropologia Anarquista escrito por Sarah Lester e publicado originalmente no The Journal of Wild Culture. A versão em inglês pode ser encontrada aqui.


Kotsuis and Hohhuq - NakoaktokA antropologia é conhecida – mais notoriamente – como uma disciplina ainda abraçada com os grilhões de seu passado colonial. É talvez um pouco menos conhecida por sua afinidade com a anarquia. Mas se tomarmos o anarquismo como a crença em uma democracia livre do aparato estatal, então não é de surpreender que exista uma ressonância natural entre ambos. Uma certa propensão a analisar sociedades sem estruturas de poder assimétricas pode explicar a escolha de tantos antropólogos e antropólogas de prefixarem os seus cargos com a palavra “anarquista”. Essas pessoas possuem evidências empíricas que sociedades sem estado são possíveis. Como David Graeber – um antropólogo acadêmico recentemente aclamado como o anti-líder do Movimento Occupy – insiste, qualquer crença em um sistema anárquico tem que decorrer da suposição otimista que um outro mundo é possível.

Mesmo apesar de seus paradoxos e tendências em exoticizar seus objetos de estudo, a antropologia é provavelmente a única disciplina que tenta considerar toda a gama de estruturas societárias e políticas em termos igualitários. Ela buscou melhor compreender sociedades que operam sem uma lei ou estado formal, mesmo – ou especialmente – os casos em que essas sociedades foram consideradas como irrelevantes. A fixação da modernidade com o progresso deu origem a uma visão de sociedades sem estado como estáticas e embrionárias, como se existissem fora da história. Sem a força propulsora da dialética, as ditas “sociedades primitivas” se encontrariam estagnadas na pré-história. Essas sociedades são vistas, portanto, como “totalmente foras do interesse da filosofia da história” – nas palavras de Hegel, fustigadas ao longo de seu compromisso com a teologia.

MAUSS POSTULOU QUE AS ECONOMIAS DE DÁDIVA ERAM BASEADAS EM UMA RECUSA PELO CÁLCULO

A visão de Hegel da história enfatiza a importância da razão, da racionalidade e do progresso. Acima de tudo, a filosofia de Hegel foca no Estado, o qual ele vê como um princípio universal com o qual os desejos subjetivos dos cidadãos e cidadãs devem coincidir para atingir algum tipo de perfeição. Enquanto os exames minuciosos de antropólogos e antropólogas de sociedades sem estado sempre arriscaram incorrer em acusações fáceis de primitivismo, em um nível mais básico, a experiência diária do trabalho de campo entre os – ouso eu dizer – primitivos tem destacado o fato de que alternativas viáveis ao modelo estatal existem de fato. Essas pessoas descobriram que sociedades podem operar com sucesso sem alguma regulação constante de uma coerção estrutural sistemática. E, ao contrário do que dizem crenças dominantes, tais sociedades não terminam com todo mundo se matando. Independentemente do quão prático a sua implementação pode ser, análises do poder não-hierárquico e da liderança não-autoritária podem desafiar as noções básicas sobre as quais a nossa concepção de civilização está baseada.

Já em 1925, o fundador da antropologia francesa, Marcel Mauss estava notoriamente advogando a moralidade alternativa de sociedades sem estado em seu “Ensaio sobre a Dádiva”. O seu estudo de trocas de produtos em sociedades de parentesco – como o Potlatch dos índios americanos do sudoeste do Pacífico e os elaborados anéis Kula dos trobriandeses – desafiou o pressuposto universal que economias sem mercado ou dinheiro devem operar por meios do escambo. Longe de procurarem se envolver em um comportamento mercantil, no qual cada lado se esforça para obter as melhores mercadorias ao menor custo possível para si próprio, Mauss postulou que as economias de dádiva não eram baseadas em cálculos, e sim em uma recusa de calcular. Não se trata de argumentar que eles falharam em desenvolver um sistema sofisticado o suficiente para render lucros de uma forma eficiente, mas sim de que esses sistemas de troca estavam enraizados em um sistema ético que rejeitava conscientemente as noções mais básicas sobre as quais nós geralmente acreditamos que a economia se baseia.

Wedding party - Qagyuhl

Mauss, um socialista revolucionário, alinhado pessoalmente com várias posições anarquistas clássicas, nunca chegou a se intitular como um anarquista. Significativamente, outro francês, Pierre Clastres – que, por sua vez, se proclamava como anarquista – ficou bastante conhecido por fazer um argumento similar a Mauss em um nível político. Enquanto Mauss usou a antropologia para iluminar caminhos possíveis para a construção de uma economia anticapitalista (em resposta à crise do socialismo de Lênin), Clastres usou a antropologia para demonstrar como era possível o poder operar de uma forma igualitária e não-coercitiva. Através da consideração das estruturas de poder de sociedades sem estado, em seus próprios termos Clastres encontrou um caminho para politizar sociedades primitivas. Ao fazer isso, ele desafiou radicalmente a noção, delineada mais proeminentemente por Thomas Hobbes, que o poder estatal é uma ilusão necessária.

Quando Hobbes escreveu o Leviatã, o seu tratado sobre o contrato social em resposta a sangrenta Guerra Civil inglesa, ele alegou que a submissão do indivíduo a um todo-poderoso estado não era apenas benéfica em prol de uma sociedade igualitária, mas de fato essencial para a sobrevivência de nossa espécia. Sociedades naturais inevitavelmente iriam ser jogadas em um estado de “guerra, onde todo homem é inimigo de todo homem”. Nas últimas três décadas, o argumento de Hobbes que a sociedade civilizada pode apenas existir através do poder coercitivo se transformou em um princípio central da atividade política hegemônica, tanto na direita quanto na esquerda. Uma vez que a ameaça da guerra é onipresente, nós entramos em um contrato social e ficamos sujeitos a um grande Leviatã, o Estado, porque sem ele existiria nada a não ser carnificina a nossa espera em cada esquina.

Clastres, perplexo com a ideia de servidão voluntária, colocou esse axioma em questionamento. Seu trabalho constantemente reitera a seguinte questão: por que nós abandonamos a autonomia e obedecemos a um governo? Se o estado se baseia na autoridade restrita de poucos contra muitos, então por que o estado trinfou? Ou, nas palavras de Etienne de la Boétié, “que desfortuna foi essa que pôde desnaturar tanto o homem”?

O uso da palavra “desnaturado” aqui é particularmente instrutivo, pois, sem dúvida, são as diferentes concepções de “natureza humana” que se encontram no centro desse debate. A orientação hobbesiana assume que a natureza humana é algo selvagem, guerreira e irracional, a ser domesticada pelas forças civilizatórias do controle estatal. Atualmente, a política ocidental mantém essa orientação. Mas ao examinar culturas com diferentes atitudes diante do poder o que a antropologia pode nos mostrar é que esse pressuposto é exatamente o que ele é: apenas um pressuposto.

VOCÊ VALE NÃO MAIS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA; VOCÊ VALE NÃO MENOS DO QUE QUALQUER OUTRA PESSOA

Através de seu extensivo trabalho de campo dos índios Guayaki do Paraguai, Clastres demonstrou como o poder pode ser efetivamente organizado sem um aparato separado do corpo social. Sua análise sugere que é possível falar de poder localizado fora dos domínios das relações de comando-obediência. Tomemos, por exemplo, suas descrições da aparentemente paradoxal “liderença” da chefia indígena americana. Enquanto as sensibilidades ocidentais iriam automaticamente assumir que um chefe necessariamente possui algum meio de exercer poder sobre o resto do grupo, Clastres destaca que, em várias instâncias, a mais notável característica do chefe indígena é a sua completa falta de autoridade. Clastres insiste que o papel do chefe é essencialmente reconciliatório; ele não é um homem de poder mas um pacificador e árbitro. Um chefe é obrigado a possuir um talento retórico grandioso o qual, junto com o seu prestígio e generosidade, ele usa para tentar manter a ordem social. Mas, a qualquer momento, o chefe permanece sob o perigo de ser repudiado.

Qualquer um que associa poder político com a autoridade governante iria certamente achar que uma liderança nesse sentido não apenas não compensa, como também preocupa pela sua instabilidade. No entanto, Clastres insiste que a questão não é questionar a falta de autoridade do chefe em si, mas entender as relações de poder no contexto envolvido. Como alguém pode explicar a bizarra persistência de um poder que é praticamente impotente?

Clastres descreve o ato ritualizado dos discursos do chefe, o qual acontece diariamente ao amanhecer e ao anoitecer. Um chefe não adquire o direito de falar simplesmente em razão de sua chefia – a sua chefia que o obriga a falar. A tribo demanda ouvi-lo: um chefe mudo não é mais um chefe, mas, em mais um ataque às nossas expectativas, Clastres continua a demonstrar que enquanto o chefe fala, ninguém presta qualquer atenção a ele. Independente da força de sua voz ou de suas habilidades oratórias, o resto do grupo parece seguir com as ruas rotinas como se nada estivesse acontecendo. O poder não se encontra no lado do chefe, o que faz com que as suas palavras não sejam autorizativas ou poderosas.

Clastres utiliza seus achados etnográficos para alegar que está na natureza das sociedades primitivas saber que a violência é a essência do poder, e que o discurso é o oposto de violência. Ao restringir o chefe para o domínio do discurso apenas, a tribo garante que nenhum deslocamento de forças perturbará a ordem social. O chefe não pode usar as palavras para seus ganhos pessoais ou por razões de conveniências políticas, porque o chefe que tenta apropriar poder desse jeito é logo abandonado. A sociedade primitiva é o lugar onde o poder separado é recusado, porque a sociedade em si, e não o chefe, é o lugar real do poder.

Dancing to Restore an Eclipsed Moon - Qagychl

O trabalho de Clastres se opõe a noção hegeliana que o estado é o destino final de todas as sociedades. Longe do estado ser o objeto preciso da história mundial, as sociedades sem estado, argumenta, possuem mecanismos preventivos para evitar a formação de um aparato estatal: a oratória impotente do chefe representaria um desses dispositivos. Da mesma forma, Clastres descreve o ato ritualístico de marcar os corpos como uma outra maneira de frustrar o desejo humano por poder. Ao contrário da lei escrita da sociedade hierárquica que é imposta por poucos sobre muitos, a lei das sociedades primitivas, a qual é escrita sobre todos os corpos, diz: “você não vale mais do que qualquer outra pessoa, você não vale menos do que qualquer outra pessoa”. A essas sociedades não falta um estado, simplesmente. Elas são, nas palavras de Clastres, sociedades contra o estado.

Assim como Mauss desafiou a lógica assumida da economia de mercado, Clastres questionou a noção de que o poder pode apenas ser identificado como uma autoridade coercitiva. Ambos os antropólogos desafiaram a lógica evolucionista que assume que o estado e o mercado são destinos inevitáveis de todas as sociedades. Entretanto, mais do que isso, ambos fizeram a sugestão radical de que – longe de serem incapazes de alcançar o estágio avançado da civilização ocidental – essas sociedades estão realizando um esforço conjunto para conter as capacidades humanas de ganância e sede de poder de um jeito que impede que estruturas sociais autoritárias se formem.

Em oposição a descrição de Hobbes da guerra primitiva como perpétua e caótica, Clastres identifica a guerra como um mecanismo preventivo último que possibilita essas sociedades de evitar a emergência do estado. Como os eventuais colaboradores de Clastres, Gilles Deleuze e Félix Guattari, sugeriram, assim como Hobbes percebia claramente que o estado está contra a guerra, Clastres defenda que, nas sociedades “primitivas”, a guerra está contra o estado.

A QUESTÃO NÃO É SE AS PESSOAS SÃO “BOAS O SUFICIENTE” PARA EXISTIREM EM UMA SOCIEDADE PARTICULAR OU NÃO…

Aqui podemos enxergar o valor da antropologia, não como uma disciplina que analisa culturas antigas chamadas de “primitivas” que ainda existem, mas como uma ferramenta que nos possibilita imaginar novas sociedades. A anarquia, atualmente, é comumente julgada como destrutiva, violenta e niilista; é utilizada como sinônimo de caos e desordem. No entanto, anarquia, como compreendida pela maior parte dos e das anarquistas, na verdade significa o oposto. Uma sociedade anárquica – como as igualitárias que Clastres estudou – é baseada na ordem, na autonomia dos indivíduos e na cooperação sem governantes. Enquanto a maioria dos e das anarquistas, seguindo o revolucionário russo Mikhail Bakunin, acredita que caos e desordem possuem potencialidades inerentes, e que a destruição pode ser um ato criativo, o seu objetivo último é de criar uma ordem social que elimina completamente a necessidade da violência legitimada. Esforçar-se para a abolição de instituições sociais que usam a força coercitiva para criar uma nova ordem está longe de desejar um estado de permanente desordem e violência. Na verdade, alguns dos pensadores anarquistas mais conhecidos, Henry David Thoreau, Tolstói e Gandhi, eram também pacifistas.

Outra crítica comum feita ao anarquismo é que ele é idealístico demais. As moralidades anarquistas alternativas e suas visões de um mundo mais livre, com – de todas as sugestões – menos horas de trabalho, foram eventualmente descartadas como utópicas; é o risco ocupacional de reimaginar as estruturas sociais existentes. Ainda assim, um olhar mais considerado no anarquismo relevaria que ele promove uma visão da humanidade que é resolutamente realístico. Humanos não são inerentemente belicosos ou naturalmente benignos; eles possuem a capacidade para o bem e para o mal. A questão, como o escritor e crítico social Paul Goodman colocou talvez da forma mais eloquente possível, não é se as pessoas são “boas o suficiente” para existir em uma sociedade particular ou não. Mas sim como as instituições sociais podem ser desenvolvidas de um jeito que se torne mais propício das pessoas expressarem suas capacidades para a inteligência, benevolência, sociabilidade e liberdade. Anarquistas podem estar precisando de esperanças e de imaginação para vislumbrar um mundo diferente; antropólogos e antropólogas, no meu ver, estão particularmente bem situados para os guiar nesses aspectos para fazer com que isso se transforme em realidade.

(Reflexão) O que é a liberdade se não um conjunto de fatores propícios a ela?

Muitos associam a liberdade com o voar dos pássaros mas até essa forma simbólica, se observamos com cuidado, nos mostra que a liberdade é fruto de ações pelo meio. Sua limitação, sua ilimitação, velocidade, deslocamento, grandeza e etc, são fatores físicos naturais que intervém diretamente e nos esclarecem, pela visão natural, que tudo está associado para seguir um fluxo onde a diferença na soma final dos vetores se equilibrem e seja plena, ou seja, a liberdade. 

Vamos analisar o vôo de um pássaro: Já paramos para nos perguntar por que o pássaro, quando no seu vôo, não se desloca infinitamente para fora do espaço terrestre? Isso não acontece, pois existe uma força gravitacional que o puxa para baixo e o “prende” a terra. Por que muitos pássaros preferem migrar de forma coletiva a individual? Pois o atrito do ar contrário ao seu rumo é maior quando apenas um se desloca e menor, devido ao revezamento e vácuo gerados pelo vôo, em conjunto, proporcionando assim um melhor deslocamento e priorizando a vida de cada um ali mutuamente.

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E o que a liberdade tem a ver com isso?

A analogia do vôo do pássaro nos mostra que o simples fato de não estar preso a um meio é a liberdade em si. E também que esse mesmo meio é o meio no qual buscamos a liberdade. Se pudéssemos voar a nossa liberdade, por analogia, seria a terra. Os meios são diferentes, a natureza é extremamente complexa nas suas formações químicas e físicas, e mesmo assim ela consegue ser livre. Ou seja, exercer sua liberdade de forma plena contemplando, dentro do seu infinito meio de diferenças, todas as formas de liberdade, onde todas elas se apóiam gerando aquilo que chamamos de caos, (por não ter definições teóricas matemáticas) mais conhecido também como liberdade.

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(Artigo) Liberdade: Reflexão baseada em observações físicas e matemáticas

A vida por si só é uma grande construção matemática de dependência mútua dos seus fatores e variáveis, a roda gira e varia sua velocidade em função do atrito do vento e solo, esses dois exercem forças em sentidos contrários alterando seu percurso e deslocamento, e ainda sem mencionar, claro, a energia propagada por esse processo é transformada em diversas outras formas. Assim provamos uma freqüência infinita de relações mútuas entre todos os fatores, direta e indiretamente, envolvidos nesse processo e em todos os outros processos na natureza.

11017707_786731761413463_5618138323943952948_nAssim, também, são as relações humanas. O ser humano vive buscando desde a sua existência a liberdade, mas o ser humano não é diferente da natureza e tão pouco dos fatores físicos mútuos de qualquer processo dela. Logo liberdade não é um fato alcançável sozinha, ela depende de amplas construções, relações e interações sociais macro e micro.

Qual a influência que um indivíduo exerce sobre o outro e qual é a responsabilidade, nessa lógica mútua da natureza, das suas ações em função da sua liberdade?

slide_5A simples observação do indivíduo e suas formas de convivência, a despeito de sentimentos, nos indica o quão deturpada está o significado de liberdade. Qual é o limite da liberdade de um indivíduo? Até que ponto a minha liberdade limita a liberdade dos indivíduos ao meu redor? E se limita também pode ser considerado uma forma de opressão?

Entender que “a liberdade do outro estende a minha ao infinito” é compreender que simples atitudes podem influenciar diretamente se não tivermos a devida sensibilidade e consideração.

Liberdade é mais do que uma autonomia individual, não devemos confundir o “eu sou livre” nos julgando livres, quando do ponto de vista coletivo apenas estaremos sendo individualistas e em contra partida indiretamente cerceando o nosso redor da sua própria, grande ou pequena, parte de uma total liberdade. Jamais chegaremos a ela de forma individualista e é um erro crer nisso.

liberdade-8-728Entender a liberdade é conjugar igualmente consideração, responsabilidade e sensibilidade. A órbita que tange a liberdade é o limite finito e infinito das pessoas que estão ao nosso redor e cada um, sujeito que se julga livre, tem a responsabilidade do peso diretamente proporcional de se julgar livre.

“Tudo na natureza age de forma mútua e é por isso que a natureza é a prova física do que é liberdade.”

Por Rede de Informações Anarquistas

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