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(Tradução) 8 formas de não ser umx aliadx

Tradução do original “8 ways not to be an ally”, por Black Girl Dangerous. A imagem com o texto original em inglês pode ser conferida no final do post abaixo. 


As pessoas gostam de abusar do termo “aliadx”. Pessoas brancas que reivindicam ser antirracistas; gente sem deficiências que alegam investir no questionamento das normas capacitistas; cis queers que afirmam compreender a importância da visibilidade trans*. Grosso modo, as pessoas reivindicam ser “aliadxs” regularmente e com uma facilidade enorme. Contudo, a verdade é que se “aliar” exige bem mais trabalho do que a maioria de nós imagina. Na verdade, demanda uma vigilância constante. E há diversas maneiras em que nós estamos falhando todos os dias nessa vigilância. Para ser franco, algumas pessoas estão fazendo isso de forma completamente equivocada.

Para ajudar a resolver o problema, compilamos essa lista de “8 formas de não ser umx aliadx” e esperamos que seja útil.

1. Assumir que um ato de solidariedade faz de você umx eternx aliadx

Lembra daquela vez que seu tio falou aquelas merdas todas sobre pessoas mexicanas imigrantes “ilegais” e você encheu o peito para falar “na verdade, tio, Califórnia é México, você que precisa ler mais história porque, hein, quanta besteira racista?!”, aquela porra foi foda, saca? E super significa que você é umx aliadx com A maiúsculo para sempre! Mais do que sempre! Pronto, está feito. Vamos beber uma cerveja para comemorar. Mas quer saber? Não. Se aliar exige muito mais prática do que isso. É uma coisa constante e que vai evoluindo. Quero dizer, imagina se rotular como sendo umx grande amante depois que você comeu buceta uma só vez. Isso seria ridículo, né?

2. Centre tudo nos seus sentimentos.

Aquelas mágoas resultantes daquele momento que você fez um ato de racismo/transfobia/capacitismo, etc. são absolutamente mais importantes que o impacto das ações pelas quais você está sendo criticado ou criticada. Sério. E nem estou de sacanagem. Argh! Quero dizer, eu sei que você se sente como se seus sentimentos tivessem importância número 1, mas não, eles não possuem. Eu mesma já fui culpada desse tipo de atitude ridícula no passado. Acredito que todo mundo seja culpado disso ocasionalmente. Mas esse fato não faz com que isso seja aceitável. Tente lembrar daquelas pessoas que foram impactadas pelas suas palavras ou ações racistas/transfóbicas/capacitistas, etc. São os sentimentos delas que precisam de atenção em primeiro lugar. Não os seus.

3. Fique com todos eles, todas elas.

Algumas pessoas parecem achar que o meio mais rápido para alcançar um status de aliadx vitalício é apenas ficar com todos os indivíduos que se parecem com quem essas pessoas dizem se solidarizar. Antirracista? Fique com todas as pessoas negras! E certifique-se de fazer isso exclusivamente e sem análise alguma sobre fetichismo, exotificação ou sobre as formas como o seu corpo branco possa estar interrompendo espaços negros. Até porque, né, você é uma pessoa aliada e tal. Certo? Não.

4. Não veja raça/gênero/deficiências/etc.

Você sabe o que eu amo? Quando as pessoas não veem a minha raça. Não tem nada mais afirmativo para mim como sujeito do que ter partes essenciais em mim e minha experiência completamente desconsideradas. Quero dizer, por dentro nós somos todxs iguais. E existe apenas uma única raça: a raça HUMANA. Não é isso?! Argh! Escute: se a sua habilidade de respeitar o direito de uma pessoa de existir requer fingir que ela é como você, isso é um problema. Nós não somos iguais. E coisas como raça, gênero, deficiências, etc. são exatamente o tipo de fatores que definem nossas vidas e nossas experiências e fazem com que sejamos diferentes. Ser diferente não é um problema. A ideia de que para podermos ter o direito de existir temos que ser que nem você é o que consiste no real problema.

5. Não se esforce mais

Você tentou, certo? Você contatou três artistas queers negras e perguntou se elas queriam estar no seu espetáculo burlesco e todas recusaram. Agora o seu espetáculo é tão branco quanto uma reunião da KKK, mas não é sua culpa, correto? Você fez a sua parte. Mas agora as pessoas estão furiosas e não faz o menor sentido porque, caramba, qual é, você se esforçou, tentou de tudo! Aqui está a questão, no entanto: se esforce mais! Se mudar o status quo fosse fácil, nós já teríamos feito isso há séculos atrás.

6. Desafie a opressão em situações pessoais mas não de forma sistêmica

Já é o suficiente que você tenha dito alguma coisa quando sua avó usou o termo “vagabunda”. O fato de que você vai trabalhar todo dia em uma organização queer onde nenhuma das 50 empregadxs são mulheres trans* e que você nunca disse nada sobre isso está além da questão. Você está travando uma luta contra os “ismos” interpessoais e é isso o que importa. Exceto que… Você sabe… Isso não é bem verdade. Transfobia, capacitismo, racismo e todas as outras fobias/ismos não são problemas interpessoais. Elas são completamente sistemáticas. E corrigir a sua vovó não acaba com isso. Pense maior, pode ser?

7. Pegue, não dê

Para ser umx grande aliadx, apareça em todos os eventos do movimento negro, leia todos os artigos sobre o complexo prisional-industrial e os comente extensivamente, além de perguntar questões intermináveis na mesa aberta daquele simpósio sobre justiça para deficientes. E sem sombra de dúvidas apareça cedo no festival gratuito de cinema com lotação limitada sobre Queers e Mulheres Negras, para você garantir o seu lugar. Mas nunca, jamais se voluntarie ou doe algo para possibilitar que essas coisas aconteçam.

8. Cite Audre Lorde

A melhor forma de demonstrar solidariedade com um grupo de pessoas é constantemente citar pessoas famosas daquele grupo em conversas regulares. Ou em um status do Facebook. De fato, você deve geralmente se portar como se você soubesse mais sobre as experiências de um grupo de pessoas marginalizadas do que essas próprias pessoas. Essa merda é super atraente. E de jeito nenhum me dá vontade de socar a sua cara.

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“Este texto está escrito em linguagem não sexista, quer dizer, não vamos usar o masculino para representar um grupo misto, por exemplo ‘os trabalhadores’. Assim, usamos o X para indicar que o gênero é indefinido, por exemplo: ‘xs trabalhadorxs’. Quando isso não for possível, usaremos a palavra feminina, por exemplo ‘algumas’.”

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ENTRE-ESPAÇOS

Por Antonis Vradis | Tradução colaborativa pela Rede de Informações Anarquistas

Se existisse um único dispositivo o qual poderia simbolizar nosso estado como sujeito histórico durante esses tempos de crise, este seria um pêndulo. A sensação é de que aparentemente há um eterno sentido de movimento entre um momento histórico e outro, sempre oscilando à beira da catástrofe, de uma revolta, logo que começamos a sair do estado anterior. Encontramo-nos suspensos em meio a alternância dos picos históricos. Vavel, uma velha e querida revista de quadrinhos grega1, se descrevia como um ótimo acompanhamento para seus leitores “para passar agradavelmente seu tempo entre uma catástrofe e a seguinte.” De novo, o sentimento enquanto nós experimentamos o desenrolar dos acontecimentos nos territórios gregos tem sido exatamente assim. Nossa existência cotidiana parece como um mero parêntese para os eventos cataclísmicos que sempre seguem ou procedem o presente, um tempo sempre fugaz que reside entre-espaços.

Em breve, no 25 de janeiro, a Grécia será palco para mais um momento como esse, onde irá testemunhar a ascensão de um partido de esquerda, Syriza, ao poder – um fato inédito. Há aqueles, e aqui me incluo, que duvidam que a mudança social e histórica pode ser desencadeada por um processo parlamentar. Se assim for, e se não houver nenhum caminho aparente para processos parlamentares tradicionais acelerarem o tempo histórico ou até mesmo criar as tão almejadas rupturas dentro de si próprio, qual a razão de existir qualquer tipo de engajamento com o resultado dessas eleições? A resposta, eu creio, não reside na aceleração histórica, mas no efeito oposto que a ascensão ao poder do Syriza pode acarretar.

Há muitos na esquerda (e além dela) que temem que o Syriza suavizou a sua retórica mesmo antes de chegar ao poder; seu programa financeiro lembra mais um keynesianismo tradicional2 do que um marxismo radical, algo que a direita teme e muitos na esquerda desejam. Essa “racionalização” e esse recuo são sinais significativos do que podemos aguardar. Afinal, se existe mesmo um caminho para o plexo de poderes financeiros e políticos para re-legitimar a si próprios e para assegurar seu reinado na Grécia, residiria justamente em uma força política que é tão conciliatória quanto sensível, socialmente legítima como é fiscalmente responsável, para que possa gentilmente orientar o capitalismo para fora de sua crise. Deixe que seja assim. Afinal de contas, dificilmente pode-se argumentar que movimentos mais amplos de antagonismo social, as comunidades políticas populares em ativa na Grécia, não tiveram a oportunidade de lutar contra o complexo autoritário-financeiro3 que vigora no país nesses tempos de crise. Considerável como era, essa luta ao mesmo tempo evidenciou nossas próprias limitações quando se trata de agir sob o fardo desse tempo histórico em constante mudança, espremido entre os impactos dos eventos que nós testemunhamos. E assim, temos aqui uma proposição aparentemente estranha para a inevitável vitória do Syriza, e para a aparente normalização do partido, a governança da sociedade e da economia grega, ambas profundamente entrincheiradas nessa crise. Esse estado de ser normalizado equivale a nada mais do que uma desaceleração do tempo histórico, um tão necessário tempo em que possamos parar para respirar em meio dessa catastrófica sequência de eventos. Se assim for, então comunidades sociais e políticas populares na Grécia estão sendo confrontadas com uma oportunidade única para pressionar por uma mudança de paradigma. Ao invés de oscilar nos entre-espaços da história, esse governo normalizado pode permitir a abertura de certos espaços – os quais eu posso pensar em pelo menos três.

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Sede do Syriza ocupada por militantes anarquistas

Primeiro: espaços de dignidade e sobrevivência. A demanda por uma sobrevivência decente (até mesmo a sobrevivência como um todo4) na forma de salários mínimos ou o reestabelecimento de direitos trabalhistas elementares não é pouca coisa. Tal ponto é também imperativo para o Syriza se o partido pretende ter qualquer sorte em estabilizar sua posição de poder em um corpo social que se transformou, em sua maior parte, cada vez mais reacionário e apático durante a crise.

Segundo: espaços de ruptura no complexo autoritário. Syriza prometeu a abolição das tão odiadas unidades policiais incluindo a polícia de ordem público MAT e a unidade de motocicleta DELTA, além do desarmamento de todas as unidades policiais que entram em contato físico com manifestantes. Contudo, no último 14 de janeiro, o líder do Syriza apareceu para renegar essa promessa no twitter oficial5 – pelo menos a parte relativa à abolição da polícia de motocicleta. No entanto, ele não deve de modo algum ser autorizado a fazer tal ato. É inimaginável para um governo de esquerda ter essas gangues uniformizadas de extrema-direita a seu serviço. É inimaginável para esse partido operar centros de detenção para migrantes, prisões de segurança máxima introduzidas principalmente para os presos políticos do país ou o muro de segurança na fronteira nordeste do país. Em suma, o Syriza deve ser pressionado para abrir um espaço que tenda a desmontagem do aparato estatal como o conhecemos até agora.

Terceiro e o mais importante de todos: espaços para a construção de estruturas para além desse aparato. De cozinhas comunitárias e clínicas solidárias para espaços públicos auto-organizados, projetos vitais já estão sendo construídos, esforçando-se para existir através e além dessa abrangente rede de austeridade fiscal e controle autoritário. Nesses atos pós-ditatoriais de consenso social, a soberania na Grécia previu a permissão de um certo tipo de contrato espacial6, um violento equilíbrio através do qual:

um certo nível de agitação social e instabilidade tornou-se possível dentro do distrito ateninense de Exarcheia sob um entendimento mútuo porém mudo que tal inquietação dificilmente iria disseminar-se para outras partes da cidade ou para o território nacional como um todo.

Enquanto mantiver o poder, o maior serviço que um governo Syriza pode oferecer seria agilizar a formação de um novo contrato social: um contrato não mais baseado nas rígidas fronteiras geográficas de um bairro e na violência nele contida, mas, ao invés disso, na formação de entre-espaços. Espaços de sobrevivência e de abertura política, espaços nos quais as pessoas no território grego podem começar a construir uma sociedade que é, no longo prazo, tanto pós-austeridade quanto pós-autoritária.


Antonis Vradis é militante anarquista e pesquisador júnior no Departamento de Geografia na Universidade de Durham. Ele é um dos coautores do livro Revolt and crisis in Greece: between a present yet to pass and a future still to come (AKPress, 2011).

Texto original na revista Society & Space.


Notas de pé de página:

1Link da revista: http://sangay.gr/.

3Sobre o complexo autoritário-financeiro, ver o filme O Futuro Suspenso, Atenas a partir do espetáculo olímpico para o despontar do complexo autoritário-financeiro, disponível em inglês em: https://vimeo.com/86682631.

4Sobre o aumento nos níveis de suicídio em meio à crise grega, ver: http://www.economist.com/blogs/erasmus/2013/10/greece-and-suicide.

6Referência: Encerrando o contrato espacial, por Antonis Vradis, disponível em http://societyandspace.com/material/commentaries/terminating-the-spatial-contract-by-antonis-vradis/.

É hora de tomarmos de volta o nosso discurso (ou um manifesto contra o capacitismo e pela gagueira)

Tradução colaborativa pela Rede de Informações Anarquistas

1) A gagueira não é um defeito individual, mas uma discriminação social e cultural contra certos padrões de fala.

A fonoaudiologia, a neurobiologia e a psicologia não estão dizendo toda a verdade sobre a gagueira. Foi-nos dito que a gagueira é uma coisa, um defeito biológico e médico dentro de nossos corpos; que pode ser visualizada através de tomografias, calculada usando medidores de fluências e gerenciada através de terapia: é um problema a ser consertado.

Nós discordamos. Nós nos recusamos a deixar que nossos corpos e nosso discurso sejam definidos por peritos médicos e científicos.

Após o movimento pelos direitos de deficientes que ganhou forma na década de 60, nós compreendemos a deficiência não como um defeito individual, mas, acima de tudo, como uma discriminação social contra certas formas de variação humana. Podemos falar de “capacitismo” assim como falamos de racismo e sexismo. Logo, a experiência que nós chamamos de gagueira não pode ser explicada apenas como uma mera dificuldade de vocalizar certas palavras, mas deve ser fundamentalmente entendida como uma discriminação contra formas disfluentes de comunicação e de utilização do nosso corpo.

A gagueira é apenas um problema – de fato, é somente anormal – porque a nossa cultura coloca tanto valor na eficiência e no autodomínio. A gagueira quebra a comunicação apenas por conta de noções capacitistas que decidiram de antemão o quão rápido e fluente uma pessoa deve falar para ser ouvida e levada a sério. Uma linha arbitrária foi desenhada ao redor do discurso “normal” e essa linha é vigorosamente defendida.

2) A assimilação do discurso é um processo cultural em curso no qual formas de discurso que não são consideradas fluentes e legíveis são estigmatizadas e sutilmente forçadas a se conformar com os padrões de fala dominantes.

Desde o primeiro momento que nós falamos, nos corrigem ou nos envergonham por qualquer atraso ou repetição. Parentes, professoras, professores e nossos colegas estudantes notam e estigmatizam qualquer discurso que não esteja conforme os padrões vigentes. A sociedade e suas instituições, em particular o Estado e as instituições processuais, intervêm para mudar o indivíduo, adicionando ansiedade às nossas vidas e fazendo com que seja ainda mais difícil falar ao invés de nos encorajar a sermos mais confidentes falando da forma que desejarmos.

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Conserte o sistema, e não eu!

3) O único jeito de nos liberar é através da reeducação local e da criação de comunidades que afirmam o discurso disfluente.

Individualmente e coletivamente, nós precisamos começar a compreender a “gagueira” como resultado de expectativas, normas e valores capacitistas disseminadas em toda nossa cultura e nos recusar a permitir que nossos corpos e nós próprios sejamos patologizados. Esse processo não é nada mais que uma mudança de paradigma que só pode ser alcançada através de educação e de uma reinterpretação da nossa fala, da nossa identidade e da nossa sociedade. Precisamos também, portanto, de comunidades que afirmam a necessidade de vozes disfluentes, nomeando e resistindo coletivamente ao pensamento capacitista do qual nós viramos objetos de vergonha e pena. Nós devemos juntos e juntas desaprender toda uma vida de ódio de si, subjugação e silenciamento.

4) Finalmente, nós defendemos um consentimento informado em todas as idades para qualquer forma de reabilitação fonoaudiológica como um direito e uma necessidade humana básica.

Não há nenhuma esperança de nos tornarmos confiantes ou de nos empoderarmos enquanto o discurso disfluente for estigmatizado. Nós permaneceremos sozinhos e sozinhas, humilhados e humilhadas enquanto a fala disfluente for um problema. Precisamos que seja nos dada a escolha se queremos ou não receber alguma reabilitação de nossa fala. Perspectivas positivas e negativas da disfluência devem sempre ser oferecidas antes de optarmos por um tratamento fonoaudiológico a longo prazo. Defendemos que em qualquer idade múltiplas perspectivas sobre disfluência são absolutamente necessárias para uma escolha autônoma em relação às opções terapêuticas que nós temos.

Texto original em: http://www.didistutter.org/.