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ENTRE-ESPAÇOS

Por Antonis Vradis | Tradução colaborativa pela Rede de Informações Anarquistas

Se existisse um único dispositivo o qual poderia simbolizar nosso estado como sujeito histórico durante esses tempos de crise, este seria um pêndulo. A sensação é de que aparentemente há um eterno sentido de movimento entre um momento histórico e outro, sempre oscilando à beira da catástrofe, de uma revolta, logo que começamos a sair do estado anterior. Encontramo-nos suspensos em meio a alternância dos picos históricos. Vavel, uma velha e querida revista de quadrinhos grega1, se descrevia como um ótimo acompanhamento para seus leitores “para passar agradavelmente seu tempo entre uma catástrofe e a seguinte.” De novo, o sentimento enquanto nós experimentamos o desenrolar dos acontecimentos nos territórios gregos tem sido exatamente assim. Nossa existência cotidiana parece como um mero parêntese para os eventos cataclísmicos que sempre seguem ou procedem o presente, um tempo sempre fugaz que reside entre-espaços.

Em breve, no 25 de janeiro, a Grécia será palco para mais um momento como esse, onde irá testemunhar a ascensão de um partido de esquerda, Syriza, ao poder – um fato inédito. Há aqueles, e aqui me incluo, que duvidam que a mudança social e histórica pode ser desencadeada por um processo parlamentar. Se assim for, e se não houver nenhum caminho aparente para processos parlamentares tradicionais acelerarem o tempo histórico ou até mesmo criar as tão almejadas rupturas dentro de si próprio, qual a razão de existir qualquer tipo de engajamento com o resultado dessas eleições? A resposta, eu creio, não reside na aceleração histórica, mas no efeito oposto que a ascensão ao poder do Syriza pode acarretar.

Há muitos na esquerda (e além dela) que temem que o Syriza suavizou a sua retórica mesmo antes de chegar ao poder; seu programa financeiro lembra mais um keynesianismo tradicional2 do que um marxismo radical, algo que a direita teme e muitos na esquerda desejam. Essa “racionalização” e esse recuo são sinais significativos do que podemos aguardar. Afinal, se existe mesmo um caminho para o plexo de poderes financeiros e políticos para re-legitimar a si próprios e para assegurar seu reinado na Grécia, residiria justamente em uma força política que é tão conciliatória quanto sensível, socialmente legítima como é fiscalmente responsável, para que possa gentilmente orientar o capitalismo para fora de sua crise. Deixe que seja assim. Afinal de contas, dificilmente pode-se argumentar que movimentos mais amplos de antagonismo social, as comunidades políticas populares em ativa na Grécia, não tiveram a oportunidade de lutar contra o complexo autoritário-financeiro3 que vigora no país nesses tempos de crise. Considerável como era, essa luta ao mesmo tempo evidenciou nossas próprias limitações quando se trata de agir sob o fardo desse tempo histórico em constante mudança, espremido entre os impactos dos eventos que nós testemunhamos. E assim, temos aqui uma proposição aparentemente estranha para a inevitável vitória do Syriza, e para a aparente normalização do partido, a governança da sociedade e da economia grega, ambas profundamente entrincheiradas nessa crise. Esse estado de ser normalizado equivale a nada mais do que uma desaceleração do tempo histórico, um tão necessário tempo em que possamos parar para respirar em meio dessa catastrófica sequência de eventos. Se assim for, então comunidades sociais e políticas populares na Grécia estão sendo confrontadas com uma oportunidade única para pressionar por uma mudança de paradigma. Ao invés de oscilar nos entre-espaços da história, esse governo normalizado pode permitir a abertura de certos espaços – os quais eu posso pensar em pelo menos três.

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Sede do Syriza ocupada por militantes anarquistas

Primeiro: espaços de dignidade e sobrevivência. A demanda por uma sobrevivência decente (até mesmo a sobrevivência como um todo4) na forma de salários mínimos ou o reestabelecimento de direitos trabalhistas elementares não é pouca coisa. Tal ponto é também imperativo para o Syriza se o partido pretende ter qualquer sorte em estabilizar sua posição de poder em um corpo social que se transformou, em sua maior parte, cada vez mais reacionário e apático durante a crise.

Segundo: espaços de ruptura no complexo autoritário. Syriza prometeu a abolição das tão odiadas unidades policiais incluindo a polícia de ordem público MAT e a unidade de motocicleta DELTA, além do desarmamento de todas as unidades policiais que entram em contato físico com manifestantes. Contudo, no último 14 de janeiro, o líder do Syriza apareceu para renegar essa promessa no twitter oficial5 – pelo menos a parte relativa à abolição da polícia de motocicleta. No entanto, ele não deve de modo algum ser autorizado a fazer tal ato. É inimaginável para um governo de esquerda ter essas gangues uniformizadas de extrema-direita a seu serviço. É inimaginável para esse partido operar centros de detenção para migrantes, prisões de segurança máxima introduzidas principalmente para os presos políticos do país ou o muro de segurança na fronteira nordeste do país. Em suma, o Syriza deve ser pressionado para abrir um espaço que tenda a desmontagem do aparato estatal como o conhecemos até agora.

Terceiro e o mais importante de todos: espaços para a construção de estruturas para além desse aparato. De cozinhas comunitárias e clínicas solidárias para espaços públicos auto-organizados, projetos vitais já estão sendo construídos, esforçando-se para existir através e além dessa abrangente rede de austeridade fiscal e controle autoritário. Nesses atos pós-ditatoriais de consenso social, a soberania na Grécia previu a permissão de um certo tipo de contrato espacial6, um violento equilíbrio através do qual:

um certo nível de agitação social e instabilidade tornou-se possível dentro do distrito ateninense de Exarcheia sob um entendimento mútuo porém mudo que tal inquietação dificilmente iria disseminar-se para outras partes da cidade ou para o território nacional como um todo.

Enquanto mantiver o poder, o maior serviço que um governo Syriza pode oferecer seria agilizar a formação de um novo contrato social: um contrato não mais baseado nas rígidas fronteiras geográficas de um bairro e na violência nele contida, mas, ao invés disso, na formação de entre-espaços. Espaços de sobrevivência e de abertura política, espaços nos quais as pessoas no território grego podem começar a construir uma sociedade que é, no longo prazo, tanto pós-austeridade quanto pós-autoritária.


Antonis Vradis é militante anarquista e pesquisador júnior no Departamento de Geografia na Universidade de Durham. Ele é um dos coautores do livro Revolt and crisis in Greece: between a present yet to pass and a future still to come (AKPress, 2011).

Texto original na revista Society & Space.


Notas de pé de página:

1Link da revista: http://sangay.gr/.

3Sobre o complexo autoritário-financeiro, ver o filme O Futuro Suspenso, Atenas a partir do espetáculo olímpico para o despontar do complexo autoritário-financeiro, disponível em inglês em: https://vimeo.com/86682631.

4Sobre o aumento nos níveis de suicídio em meio à crise grega, ver: http://www.economist.com/blogs/erasmus/2013/10/greece-and-suicide.

6Referência: Encerrando o contrato espacial, por Antonis Vradis, disponível em http://societyandspace.com/material/commentaries/terminating-the-spatial-contract-by-antonis-vradis/.