Segundo a historiografia oficial e oficiosa, grosso modo, as forças políticas brasileiras – e latino-americanas, em geral – dividir-se-iam, de bom grado, em dois grandes blocos: liberais doutrinários vs. autoritários instrumentais; luzias vs. saquarema; conservadores entreguistas vs. nacionais desenvolvimentistas; coxinhas e petralhas. Nada novo sob o sol. Contudo, a dicotomia não resiste à prova. Não apenas no sentido de que outras forças diabolizam essa simbologia bipartidária, borrando o espectro, mas também pelo fato de que, como alertava Gabriel Garcia Marquez, “nada mais parecido com um conservador do que um liberal no poder”. Não afirmamos a identidade entre Michel Temer e Dilma Rousseff, diga-se de uma vez. Apenas pontuamos a necessidade de saber de quais diferenças se tratam. Afinal de contas, o que temer?
A máquina capitalista funciona como axiomatização dos fluxos, através de todos os meios necessários. Ousado, descolado e performático, esse enunciado, que tão bem poderia ilustrar a camiseta dalgum barbudinho da Praça São Salvador, descreve com precisão cínica o processo que pauta as idas e vindas dessa instância misteriosa chamada de “avanço democrático”.
O que é uma axiomática? Um sistema axiomático é uma espécie de sistema dedutivo que parte de condições mínimas não-questionadas ou tidas como evidentes – os axiomas – para chegar-se às conclusões permitidas pelo sistema através de regras de definição. Isso significa – bem entendido, aplicada à discussão que pretendemos levar adiante aqui – que no capitalismo a produção de tudo que existe é submetida a um conjunto de axiomas que fazem com que os fluxos de trabalho e o os fluxos de capital sejam conjugados e encaminhados, para alegria de poucos e miséria de muitos, para o mercado mundial. No capitalismo, a produção de tudo que existe, inclusive a produção da própria existência, acaba sendo capturada para os fins do mercado. Produz-se para o mercado e nos termos do mercado.
Nesse movimento de organizar toda a atividade humana e canalizá-la para o mercado, isto é, organizar a produção num “modo”, transformá-la em trabalho – e, mais, em trabalho assalariado do qual se extrai a mais-valia – o Estado joga um papel decisivo. É ele que transforma cada um de nós em sujeito de direitos. Isto é, em pessoa privada, despida de toda e qualquer singularidade e que, para se ver restituída de tudo aquilo que lhe foi espoliado nesse processo, adquire benefícios e pagamentos, seja a título de direitos sociais ou massa salarial. Como essa restituição nunca é possível – como atesta a história da colonização – a máquina capitalista sempre se vê diante da tarefa de acrescentar novos e novos axiomas na sua já velha axiomática. Infelizmente, essa é toda a história dos sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores. Enganchar pequenos axiomas na velha axiomática do capital. Axiomas para a classe trabalhadora através de programas como o bolsa família, somado a um aumento real na massa salarial, e um aumento virtual do poder de compra ocasionado por endividamento – numa espécie de keynesianismo privado – gerado através de um sistema de crédito articulado nas malhas do capital financeiro mundial (ou, nas palavras do próprio Lula na Lapa, ou seria Lula Lélé: jamais os banqueiros lucraram tanto!); axiomas para os negros e jovens pobres através da implantação de um sistema de cotas aliados a programas como o Prouni e Pronatec; promessa de axiomas para as mulheres através da criação de um ministério voltado a problemáticas vinculadas às disparidades de gênero e toda sorte de opressões a isso vinculadas. Entre promessas e concretizações, o Partido dos Trabalhadores liberava todo o seu volume nas ondas do capital.
Não sejamos hipócritas. Não façamos eco aos enunciados mais reacionários da política brasileira. Mas não sejamos também os governistas de última hora. Os anarquistas arrependidos. Aqueles que aderem ao barco do governo que naufraga simplesmente por perceber que os fascistas sitiaram a praia. Existem, evidentemente, diferenças entre um governo que cria ou pretende criar axiomas sensíveis aos devires minoritários e aqueles que submetem as secretarias de Mulheres, Direitos Humanos, Juventude e Igualdade Racial ao crivo do – historicamente falocêntrico e hegemonicamente ocupado por homens brancos – Ministério da Justiça. Longe de pautar a justiça nos termos da igualdade racial, essa manobra tem por finalidade transformar os problemas sociais em questões policiais.
Nós não somos idiotas, existem diferenças! Todavia, acreditamos que essa diferença seja tão grande quanto aquela que separa Blairo Maggi e Kátia Abreu, atual ministro e ex-ministra da agricultura respectivamente.
Nesse sentido, o que temos que temer é exatamente aquilo que já vínhamos temendo nos últimos anos dos governos do PT. A saber, a retirada desses pequenos axiomas que foram enganchados lentamente no corpo do capital (os programas sociais, os avanços mínimos na massa salarial, os tímidos avanços na promoção da igualdade racial e de gênero através dos programas de cotas) articuladas em meio ao extermínio de negros e indígenas. Contudo, sabendo dos riscos e evitando a posição apocalíptica, acreditamos que as anarquistas possuem aqui um ponto vital. A derrocada do projeto axiomático do PT tem por consequência elevar a militância combativa para um outro patamar. Trata-se, em suma, de reconhecer de uma vez por todas que a máquina capitalista funciona aumentando e retirando axiomas conforme a conjuntura e que instaurar uma insurgência efetivamente anticíclica consiste em implodir a máquina e todos os seus axiomas. Longe de afirmar que quanto pior melhor, nós anarquistas temos a ocasião para reconhecer que diante da retirada desses axiomas não há motivos para retroceder e embarcar no governismo, nem muito menos temer o devir sombrio desse novo governo fascistóide.
Se não temos o que temer, resta saber o que fazer quando os repertórios tradicionais de ação são capturados pela direita. Nas manifestações de 2013, vimos emergir um grande campo de combate que se espalhava entre as ruas das cidades e as redes do ciberespaço. As grandes massas constituíam espaços heterogêneos que enunciavam muitas coisas. De lá para cá, num claro movimento de captura articulado em camisas da CBF, matracas verde-amarelas, danças coreografadas e patos da FIESP, o ato de se manifestar foi transformado num espetáculo, incentivado pela Globo e outras mídias hegemônicas.
A publicização, em meios de onde se escorre veneno por entre linhas e pautas, dos atos corruptos do governo, centralizou no PT e na figura da presidente as milhares de críticas sistêmicas dos manifestantes. O investimento reacionário na constituição de um nós combativo – que atua contra a corrupção e os problemas do mundo – suplantou com cinismo a velha questão de quem seria de fato o sujeito revolucionário. Olavo de Carvalho destronou Marx e os novos revoltados estão online. No reino da ficção fascistóide – onde reina um universo comunista e anti-homofobia regido pelo foro de São Paulo – combativo é ser reacionário. O pior é que os jovens e cabeludos estão caindo nessa ladainha. Lembrança do velho postulado: todo fascismo é uma revolução fracassada.
O movimento cíclico e veloz do capitalismo se atualiza em acontecimentos desastrosos. Ao contrário de um navio sem direção, a máquina capitalista se territorializa entre mobilidade e controle, dispositivos materializados nas políticas de urbanismo. As cidades se desenvolvem através de tecnologias repressivas e estéticas higienistas. Por que pensarmos então uma polaridade entre os governos de direita e de “esquerda”, ao invés de assumirmos que não há conjugação possível entre esquerda e governo?
A favor de uma análise mais materialista da conjuntura política atual e menos ligada a reproduções da política representativa, ou do Estado enquanto órgão máximo de poder, desejamos desenvolver uma reflexão que, partindo dos dispositivos de controle, seja capaz de sugerir o deslocamento dos centros de gravidade da política para instaurar espaços e práticas de resistência e insurgência. Trata-se, em suma, de criticar todas as posturas que investem na disputa da institucionalidade burguesa considerando que se trata de um movimento de alargamento dos parâmetros de interiorização. Ou seja, entender que no melhor dos mundos possíveis da institucionalidade o máximo que se consegue é incluir o maior número de pessoas na dinâmica do mercado capitalista globalizado. Quando o que devemos, na verdade, é criar zonas de exterioridade – temporárias ou não.
Bom momento para as anarquiadas. Lutas menos interessadas em aparelhamentos midiáticos ou estatais, refratárias a todas as nuances da captura. A situação atual exige exteriorização ao capital, no sentido territorial e organizativo, na construção de autonomia, autogestão e autodefesa. O momento é oportuno, afinal com a redução, ou mesmo com a retirada desses axiomas – que funcionavam como colchão de amortecimento para as derivas da máquina capitalista – ocasionados pela transição para o novo governo, algumas lutas, antes aparelhadas pelo Estado, encontrar-se-ão doravante desaxiomatizadas, destuteladas, desprotegidas de uma proteção que só lhes vedava autonomia. Em poucas palavras, desgovernadas – reconduzidas à selvageria de um devir revolucionário.
Essa conjuntura marca a urgência de outras estratégias de insurgência, que não se detenham ao espaço “legitimado” da manifestação e dos atos de rua, mas que apostem em táticas menos chamativas ou espetacularizadas. Criar zonas autônomas, ocupar e fortalecer a ocupação das escolas, das fábricas, dos espaços de moradia, dos bairros, das cidades e dos mundos (im)possíveis. Diante desse cenário de consagração de um governo que nasce morto – daí a necessidade de se botar um vampiro na presidência – nunca antes na história desse país foi tão desejável afirmar o lema anarquista para dizer: não nos submetamos a nenhum governo, todo governo é um golpe, cuidemos nós mesmos das nossas vidas.
Por Nômades Urbanos Anárquicos