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(Artigo) A política munduruku – consenso, alianças e integração com a natureza

Jairo Saw durante assembleia dos Munduruku no médio Tapajos

Publicado originalmente por Repórter Brasil

Com forte tradição guerreira, índios se organizam e fazem alianças para enfrentar o governo brasileiro. Eles querem barrar as hidrelétricas que podem alagar suas terras no rio Tapajós.

Microfone na mão, tronco desenhado com traços pretos e um cocar de penas vermelhas na cabeça, o cacique Juarez Saw discursa: “O governo tá chegando aqui para acabar com tudo: o indígena, a floresta e o rio”. Às margens das bucólicas corredeiras do rio Tapajós, no Pará, 230 índios munduruku se reuniram para discutir a resistência ao projeto do governo federal, que planeja construir até sete hidrelétricas na região. A maior delas, a usina de São Luiz do Tapajós, teria potência máxima de 8.040 megawatts e deve alagar mais de 70.000 hectares de floresta. As águas devem deixar áreas munduruku submersas, entre elas a aldeia Dace Watpu, onde a assembleia foi realizada.

“Eles querem acabar com a história munduruku, mas nós não vamos deixar”. A cada frase entoada pelo cacique, os 230 índios ao seu redor gritam “Sawé!”, expressão que mistura saudação com grito de guerra.

O mesmo grito foi entoado no início de dezembro, em Paris, durante a COP-21, conferência sobre mudanças climáticas das Nações Unidas. Dessa vez, a voz ao microfone era da indígena Maria Leusa Kaba Munduruku, que foi à França receber o Prêmio Equador. Concedido pela ONU, o prêmio reconhece o protagonismo do seu povo contra as usinas como uma ação de “sucesso proeminente na promoção de soluções sustentáveis”. Não é a primeira vez que a organização munduruku chama a atenção da comunidade internacional, a resistência dos indígenas já foi retratada pelos jornais Guardian, Washington Post, Aljazeera e BBC.

Em Paris para receber o Prêmio Equador, da ONU, as lideranças munduruku participam de evento que reuniu outras lideranças ambientais importantes do Brasil e do mundo

No Pará ou em Paris, o elemento que fortalece o grupo é sua habilidade para fazer política. Os indígenas sabem costurar parcerias, manter aliados e têm líderes dedicados a estudar os seus direitos no Brasil e os mecanismos internacionais que podem ser usados em sua defesa.

A capacidade de organização e estratégia está alicerçada em sua própria tradição. Durante a assembleia, fica claro que a experiência em debates políticos é anterior à chegada das usinas. Os índios munduruku tem um rito próprio, que lembra um modelo de democracia participativa. Durante as reuniões, qualquer um pode falar – homem, mulher, jovem ou idoso –, pelo tempo que desejar. Todas as decisões têm que sair por consenso, não importando o tempo que isso tome. Nos quatro dias do evento, as reuniões se estenderam das primeiras horas da manhã até o sol se por. Para dar sustento, corria entre os participantes uma cuia com farinha e água, que era sorvida aos goles.

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(Artigo) Sobre o Consenso | retirado de “Anarquismo, ou o Movimento Revolucionário do Século XXI”

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Assembleia Geral do movimento Occupy Wall Street, Nova Iorque, 8 de outubro de 2011

Por David Graeber e Andrej Grubacic

[…] A nova geração de anarquistas está muito mais interessada no desenvolvimento de novas formas de práticas do que de argumentar sobre os pontos mais delicados da ideologia. A mais drástica entre essas formas tem sido o desenvolvimento de novas formas de processos deliberativos, que seria o começo, pelo menos, de uma cultura democrática alternativa. Os famosos conselhos norte-americanos, onde milhares de ativistas coordenavam eventos de grande escala através do consenso, sem alguma estrutura formal de liderança, é apenas um dos exemplos mais espetaculares.

Na verdade, chamar essas formas de “novas” pode ser um tanto quanto equivocado. Uma das principais inspirações para a nova geração de anarquistas são os municípios zapatistas autônomos de Chiapas, baseado nas comunidades de língua tsetal ou tojolabal, que tem usado o consenso como processo decisório por milhares de anos – apenas agora adotados por revolucionários para assegurar que mulheres e pessoas mais jovens tenham suas vozes ouvidas. Na América do Norte, o “processo do consenso” emergiu principalmente a partir do movimento feminista da década de 70, como parte de uma ampla reação às lideranças masculinas e machistas típicas da Nova Esquerda dos anos 60. A ideia de consenso em si foi pego emprestada dos Quakers que, de novo, afirmam ter se inspirado nas nações Iroquois e outras práticas ameríndias.

O consenso é frequentemente incompreendido. É comum ouvir críticas que afirmam que o consenso causaria uma conformidade sufocante, mas quase nunca ditas por alguém que, de fato, observou o consenso em ação, ou ao menos guiado por facilitadores treinados e experientes (algumas experiências recentes na Europa, onde há pouca tradição nesse âmbito, mostram-se um tanto cruas). Na verdade, o pressuposto operacional presente no consenso é que ninguém realmente pode converter uma outra pessoa completamente ao seu ponto de vista, ou que deveria realizar tal ato. Ao invés disso, o ponto central do processo de decisão através do consenso é permitir que um grupo decida um curso comum de ação. Ao invés de votar propostas para cima e para baixo, as propostas são trabalhadas, retrabalhadas e reinventadas, através de um processo de negociação, cessão e síntese, até que seja alcançado uma proposta que todo mundo possa aceitar.

Quando se trata da etapa final, ou o momento de “encontrar o consenso”, existem dois tipos de objeções possíveis: uma que alguém pode “ficar de fora”, que seria dizer “eu não gosto disso e não participarei mas eu não irei impedir qualquer outra pessoa de fazer isso”, ou “bloquear”, que teria o poder de um veto. Uma pessoa só pode vetar se sentir que a proposta está em direta violação dos princípios ou razões fundamentais do grupo. Pode-se dizer que tal função, que na constituição dos EUA é relegada às cortes, de derrubar decisões legislativas que violam princípios constitucionais, é aqui relegada a qualquer pessoa que tenha coragem o suficiente de levantar-se contra a vontade combinada do restante do grupo (embora haja, é claro, formas de questionar vetos não fundamentados).

Poderíamos continuar a discorrer sobre os elaborados e surpreendemente sofisticados métodos que tem sido desenvolvidos para garantir que tudo isso funcione; sobre as formas de consenso modificado requeridas para grupos muito grandes; sobre o fato que o consenso em si reforça o princípio de descentralização ao garantir que uma pessoa não queira fazer propostas diante de grupos muito grandes a não ser que precise mesmo fazê-la; sobre os caminhos pelos quais garante-se a igualdade de gênero e a resolução de conflitos…

O ponto é, essa é uma forma de democracia direta que é muito diferente do tipo que nós frequentemente associamos com tal termo – aliás, em relação a isso, esse tipo de sistema de votação majoritária foi comumente adotado por anarquistas europeus e norte-americanos de gerações passadas, ou adotado ainda, por exemplo, nas assembleias da classe média argentina (apesar de que, significamente, entre os piqueteros mais radicais, os desempregados organizados tendiam a operar através do consenso). Com um contato crescente entre diferentes movimentos internacionalmente, com a inclusão de grupos indígenas e movimentos da África, da Ásia e da Oceania que possuem tradições radicalmente diferentes, nós estamos vendo novos começos de uma nova reconceitualização global do que “democracia” deveria significar, de preferência o mais longe possível do parlamentarismo neoliberal promovido pelas potências mundiais existentes.

É difícil de seguir esse novo espírito de síntese através de leituras da maior parte da literatura anarquista existente, pois aqueles que optam por gastar a maior parte de suas energias em questões teóricas, ao invés de fazer emergir novas formas de práticas, são os mais propícios a manter as velhas lógicas dicotomizantes e sectárias. O anarquismo moderno é imbuído de incontáveis contradições. Enquanto pequenos grupos anarquistas estão lentamente incorporando ideais e práticas aprendidas com seus aliados indígenas aos seus modos de organização ou em suas comunidades alternativas, uma das principais tendências entre a literatura tem sido a emergência de uma seita de Primitivistas, um grupo notoriamente controverso que pede pela abolição da civilização industrial e, em alguns casos, até da agricultura. Ainda assim, é apenas uma questão de tempo para que essas lógicas antigas comecem a dar espaço para algo que se assemelhe mais à prática dos grupos baseados no consenso.

Traduzido pela R.I.A. do texto original, em inglês, que pode ser encontrado aqui.

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Milhares de pessoas se reúnem no Largo de São Francisco, Rio de Janeiro, durante as revoltas de 2013; momento quando a multidão se viu diante de uma mesa desastrosa, que não soube conduzir o processo, revelando nossa dificuldade crônica, como esquerda radical, de enfrentar o desafio da organização fora dos espaços ou dos padrões mais tradicionais do movimento.