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(Bielorrússia) Entrevista com a Cruz Negra Anarquista Bielorrussa, agosto de 2015

Com essa publicação, inauguramos nossa parceria com a Rádio Anarquista de Berlim a qual nos renderá uma série de traduções das entrevistas que a rádio realiza pela Europa e, ocasionalmente, em outros continentes sobre diversas temáticas relacionadas ao movimento libertário mundial. Agradecemos a oportunidade aos companheiros e companheiras da rádio e seguimos na disseminação dos ideais e informações anarquistas.


downloadNo dia 22 de agosto, o presidente bielorrusso Lukashenk assinou documentos para soltar todos os prisioneiros políticos oficiais no país. Isso inclui os três anarquistas que ainda estavam presos. Nós, da A-Radio Berlin, falamos com a Cruz Negra Anarquista (CNA) da Bielorrússia sobre sua libertação e as próximas eleições, entre outras coisas. Você pode encontrar mais informações em inglês e em bielorrusso no site da CNA Bielorrússia.

A-Radio Berlin:

Olá, no dia 22 de agosto vocês deram a notícia de que “o último ditador da Europa” finalmente soltou os restantes prisioneiros anarquistas Ihar Alinevich, Mikalai Dziadok e Artsiom Prakapenko. Qual é o contexto dessa decisão?

CNA Bielorrúsia:

Alguns de vocês podem saber que a Bielorrússia é chamada às vezes de a “última ditadura da Europa”. O país está sob sanções econômicas e políticas constantes por violar os direitos humanos e políticos das pessoas, bem como repressões. A União Europeia e os EUA têm exigido a libertação de todos os prisioneiros políticos desde 2010. Desde então, um grande número de pessoas foi perdoado pelo presidente e liberado. Em agosto de 2015, tinham seis presos políticos restantes na cadeia, incluindo os nossos camaradas e um ex-candidato à presidência. Ao mesmo tempo, Lukashenko está se preparando para a nova eleição prevista para 11 de outubro de 2015. Este gesto foi com certeza uma tentativa de ganhar alguma credibilidade no cenário político europeu e introduzir outro “degelo político”. Lukashenko tem utilizado o mesmo esquema cada vez que ele precisa de alguma coisa da Europa. Neste caso ele espera pelo reconhecimento das eleições como transparentes e democráticas.

Eles precisaram assinar alguma coisa? Quanto tempo faltava em suas sentenças?

Artsiom Prakapenka pediu pelo perdão em fevereiro de 2015, mas seu recurso foi rejeitado em abril deste ano. O restante dos prisioneiros nunca assinou nada parecido com isso e foram perdoados por iniciativa do próprio presidente. Mikalai era para ser solto em março de 2016, Ihar em novembro de 2018 e Artsiom em janeiro 2018.

Foram libertados todos os presos políticos? Se não, quem ainda está na prisão?

Sim, todos aqueles reconhecidos internacionalmente como prisioneiros políticos foram libertados. Ao mesmo tempo, mais três pessoas foram presas no início de agosto por grafites políticos. Elas vêm do chamado cenário étnico-anarquista. Também apoiamos quatro pessoas militantes antifascistas que não são reconhecidas como presos políticos pelas organizações internacionais e um anarquista que prefere que o seu caso não se torne público.

E, só por curiosidade, o que seria um ou uma anarquista étnico?

São pessoas que vêm de torcidas organizadas antifascistas que ultimamente têm sido muito influenciadas pelo patriotismo e pela estética nacionalista. Elas propagam ideias antifascistas e antiautoritárias, mas ao mesmo tempo se colocam contra a opressão cultural russa e pela promoção do renascimento da cultura e da língua bielorrussa. Esta mistura acaba em slogans “Bielorrússia deve ser bielorrussa”, “revolução da consciência. Ela está vindo…”, “Paz para as cabanas, guerra aos palácios”.

Como será mudar o foco do seu trabalho agora, se for o caso?

Na verdade, estávamos dando muita atenção aos camaradas soltos em 2010-2011, quando o apoio era mais necessário. Ao longo do tempo o nosso apoio tornou-se igualmente distribuído entre o resto dos nossos prisioneiros. É por isso que não podemos dizer que perdemos uma boa parcela de nosso trabalho com a libertação. No momento estamos nos preparando para a nova campanha eleitoral, que geralmente termina em novas detenções e sentenças. Também tentamos fazer um trabalho mais preventivo, educando ativistas sobre estratégias para evitar a repressão e fazer o trabalho da polícia o mais difícil possível.

O que vocês esperam tanto politicamente quanto em relação a repressão para as próximas eleições, que provavelmente serão realizadas no outono de 2015?

Por agora é extremamente suspeito que a repressão ainda não tenha começado. Talvez os policiais decidiram primeiro lidar com os “anarquistas étnicos” e com os hooligans no futebol (no verão houveram algumas prisões). Ao mesmo tempo, consideramos esta omissão um tanto tática. Os policiais não se esqueceram dos e das anarquistas e seus círculos mais próximos como no ataque recente a um concerto ao ar livre de música punk e alguns processos criminais que foram iniciados após a campanha de solidariedade em Janeiro-Fevereiro de 2015. Nós sentimos que a polícia está apenas esperando o momento certo para usar suas “listas negras” e começarem a prender pessoas por suspeita de participação nas ações de solidariedade. O que diz respeito às eleições, ainda não está claro se há qualquer protesto em curso porque a oposição está dividida e é perigoso chamar para as ruas quando olhamos para trás em 2010, quando todos os candidatos à presidência foram detidos. O próprio movimento anarquista está longe de ter uma base social vasta que pode se juntar ao nosso chamado para protestar.

 Muito obrigado!

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(Rio de Janeiro) Relato do Ato Indigne-se Contra os Homicídios de Crianças Negras no Brasil

Ato realizado na Central do Brasil – 10 de Setembro de 2015

Após mais uma morte de um jovem negro e pobre nas favelas do Rio de Janeiro, Cristian Soares, de 12 anos, morto na favela de Manguinhos, cerca de 300 pessoas ocuparam e pararam a Central do Brasil para protestar pelo fim do genocídio da população negra. Mais uma, pois os assassinatos contra a população negra e pobre nunca cessaram. Desde a época das “Grandes Navegações” essa população vem sendo dizimada de várias formas.

No século XXI não é diferente. O Rio de Janeiro e cidades mundo afora reproduzem verdadeiros apartheid sociais, exterminado cotidianamente a população mais pobre e não-branca.

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O ato “Indigne-se contra os homicídios de crianças e adolescentes negros e favelados” começou com uma ocupação de um dos portões principais da Central do Brasil, que no horário havia diversos trabalhadores e trabalhadoras voltando para suas casas, o que de certa maneira, deu uma grande visibilidade às denúncias feitas. O portão e grades da Central foram ocupados por diversos cartazes e faixas denunciando as mortes ocorridas na favelas do Rio de Janeiro, que aumentaram após a instalação das UPPs.

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Após a concentração, uma das ruas adjacentes a Central do Brasil foi ocupada e os/as manifestantes, em sua grande maioria negras e negros e moradoras/os de favela, caminharam até uma das secretarias da prefeitura que se localiza também na Central. Ao pararem em frente a esta foram projetados diversos dizeres nas paredes, permanecendo ocupando durante alguns instantes a rua do centro da cidade.

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Não podemos mais admitir o genocídio da população negra e favelada!
Pelo fim do Capital e de seus lacaios chamados de policiais!
Fora UPPs das favelas já!

(Artigo) O Apartheid Social e o processo de higienização no Rio de Janeiro

Apartheid social é a método de violência que mantém o sistema de opressão com base na classe e na raça. A cidade do Rio de Janeiro conhecida internacionalmente por sediar megaeventos também está se aprofundando no processo de higienização social que consiste na expulsão e fragmentação das milhares de famílias que vivem no entorno da cidade suburbana e nas favelas. Uma das medidas que mais afrontam é a seletividade penal, pois é um ataque a auto-estima, subjuga e criminaliza jovens negros e pobres os impedindo de frequentar livremente bens públicos como a praia, por exemplo, porém, este espaço deve sim ser ocupado por todxs.

Esta violência traz muito impacto à cidade , moradorxs antigxs de regiões especuladas são jogados compulsoriamente para o outro lado com as remoções e jovens são afastados da convivência como ocorreu há duas semanas quando alguns ônibus vindos da zona norte foram vistoriados antes de chegar à praia, assim, a desigualdade fica muito mais acentuada e clara em seu propósito de jogo de interesses numa sociedade capitalista.

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Este ciclo se retroalimenta na manutenção dos desiguais porque, de uma forma ou de outra, eles são consumidores e quando deixam de cumprir este papel produzem outra margem de lucro também às suas custas, pois os poderosos se apropriam de uma imagem estigmatizada que se vende na grande mídia.

Não ao Apartheid Social e em defesa da população pobre e negra das favelas!

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Veja as notícias sobre o recolhimento de adolescentes negros a caminhos das praias na Zona Sul do Rio no Jornal Extra e no Brasil 247.


“Este texto está escrito em linguagem não sexista, quer dizer, não vamos usar o masculino para representar um grupo misto, por exemplo ‘os trabalhadores’. Assim, usamos o X para indicar que o gênero é indefinido, por exemplo: ‘xs trabalhadorxs’. Quando isso não for possível, usaremos a palavra feminina, por exemplo ‘algumas’.”

 

(São Paulo) 7 de Setembro: Uma História Não Contada

Vai chegando o 7 de Setembro, e é hora de contar uma história que pouquíssimas pessoas conhecem. Uma história passada em 1987, onde mais de 300 pessoas, entre eles punks, anarquistas e skatistas sofreram uma das maiores repressões da história deste país, numa manifestação antimilitarista em São Paulo.

Mas antes de entrar nessa história. Vamos contar como surgiu essas manifestações antimilitaristas no 7 de setembro, dia da “Independência do Brasil”, onde acontecem desfiles militares por todo o país.

O primeiro ato antimilitarista nessa data aconteceu em Brasília, em 1986, durante o desfile de 10 mil soldados, armamentos bélicos e politicagem em geral, em frente ao palanque do então presidente da república, o bigodudo José Sarney. Um grupo de anarquistas, punks e carecas, notadamente de São Paulo e Brasília, juntos, ergueram uma faixa, que dizia “Mais Armas, Mais Fome”, além de bandeiras negras, e palavras de ordem gritadas.

Com o enorme aparato de repressão, fardados ou à paisana, não demorou muito para o “pau comer”. Faixas, bandeiras e folhetos foram recolhidos pelos esbirros. Só não aconteceram prisões pelo receio do governo temer um tumulto generalizado.

Apesar da intimidação, os libertários continuaram protestando aos gritos, que se perdiam no meio da multidão.

E assim começa a história dos atos antimilitaristas nessa data “cívica”, se espalhando rapidamente por várias cidades do Brasil.

300 libertários presos e torturados em São Paulo

Agora estamos em 1987. Em São Paulo, resolvemos organizar um ato antimilitarista no dia do desfile militar, para dar continuação ao ato de Brasília. Quem estava puxando o protesto éramos nós, do Coletivo Libertário, que tinha participado da mani de BSB. Nessa época atuava nesse grupo, que era um dos mais ativos do Brasil.

Na verdade, o ato que tínhamos organizado era contra o armamentismo e contra a miséria existente no país. Tratava-se de uma manifestação pacifica, isto estava bem explicito nos cartazes e folhetos que confeccionamos, pois já temíamos a repressão.

Bem, dias antes do ato, o folheto de convocação da mani caiu nas mãos do Redson, do Cólera, uma banda punk, que tinha um programa na rádio 89 FM, com bastante audiência. Nesse período, o movimento punk numericamente tinha uma força, as bandas punks tocavam em algumas rádios, existia uma agitação punk, o skate estava na moda… Dizem que foi o segundo “boom” punk no Brasil.

Enfim…

O Redson, que tinha um perfil pacifista, gostou do texto, e leu na rádio, dando todas as dicas, local de concentração etc. Tínhamos marcado a concentração na estação Ponte Pequena do metrô. Não deu outra, no dia do ato, apareceram centenas de punks, libertários, skatistas. Mas também a polícia, que armou um dos maiores cercos repressivos aos libertários na história desse país. Nunca tinha visto algo igual. Praticamente em todas as estações do metrô tinha um grupo de policiais detendo pessoas com visual punk.

Eu, por sorte, não fui pego, pois não andava de visual. Porém, se fosse estaria frito, já que as faixas e folhetos para serem distribuídos na mani estavam comigo. Mas eu vi companheiros ficarem nus em praça pública para averiguação.

Os punks nem desciam do metrô e já eram jogados em caminhões da Polícia Militar, amarrados e levados para alguma delegacia. Nessas delegacias eram agredidos, torturados, tinham seus moicanos cortados. Eram obrigados a fazer a limpeza das delegacias, mulheres eram assediadas por policiais. Foi um horror! Só depois de muitas horas de humilhações que o pessoal foi solto. Mas alguns punks, como o punk Revolta, ficaram dias presos, sem sabermos onde estava detido.

Foi uma loucura, pois não tínhamos nenhuma estrutura de advogados, contatos… Foi desesperador não fazer nada, só esperar o tempo passar para que os companheiros fossem soltos. A manifestação mesmo nem aconteceu.

Moésio Rebouças

Folheto de convocação do ato

A consciência dos brasileiros fica suja ao permitir que no nosso país sejam feitos desfiles enaltecendo o desenvolvimento enaltecendo o desenvolvimento bélico. Devemos nos envergonhar por sermos o 3º maior exportador de armamentos leves do planeta. Assim é que ajudamos a se manterem no poder ditadores que armam suas polícias contra seus povos.

Assim é que nos alimentamos de guerras fatricidas em outros países enquanto a fome e a miséria social se tornam realidades cada vez mais presentes entre nós.

Toda riqueza vem do trabalho! Deveríamos orientar nossa força produtiva comum ao desenvolvimento do individuo e da coletividade, ao invés disso, 85% do resultado de nosso esforço comum se dirige à indústria bélica.

Quem é que se beneficia com o fabrico, exposição e venda de armas? Militares, políticos e banqueiros!!!

Eles fazem as guerras em que os melhores filhos do povo morrem como bucha de canhão.

Assim, de acordo com a nossa posição, convocamos uma manifestação pacífica, que acontecerá no dia do desfile militar de São Paulo, 7 de setembro. Concentração a partir das 8:00 horas da manhã na Estação Ponte Pequena do metrô.

Apelamos à participação de todas as pessoas que aspirem a uma sociedade livre e igualitária. Preparem suas faixas, fanzines, panfletos…

CONTRA ESTA SOCIEDADE MILITARIZADA

DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Fonte: https://www.nodo50.org/insurgentes/textos/brasil/12historiacontada.htm

Protesto Anarco Punk durante o 7 de setembro em Florianópolis (1997)
Protesto Anarco Punk durante o 7 de setembro em Florianópolis (1997)

 

(Artigo) Relato de como um gago se tornou anarquista

9413184Eu tinha apenas 10 anos quando comecei a compreender o que é ser uma pessoa gaga em uma sociedade discriminatória como a nossa. Apesar de, cedo assim, ter sofrido com as mazelas dessa conscientização, o curioso é notar que sempre fui gago, desde a primeira palavra falada, mas só anos depois, na sempre complicada transição entre infância e adolescência, que tal fato passou a ser um problema. Hoje o motivo por trás disso mostra-se claro como nunca. Algo havia mudado, não só para mim, mas para todas as pessoas que me cercavam.

Quando criança, mesmo estando apenas no começo do tratamento fonoaudiológico – onde minha fluência ainda estava longe da “ideal” –, a convivência com as outras crianças era leve e doce. A gagueira acentuada que portava não me impedia de ser uma criança normal, alegre e viva, cheia de amizades que me renderam boas lembranças. A fala não era um problema. Até hoje me recordo de uma situação onde, mesmo gaguejando, assumi a frente de uma apresentação escolar para pais e mães quando o restante do meu grupo ficou acuado diante da audiência. Fui aplaudido. A gagueira não era uma questão nem para mim, nem para os meus colegas. Contudo, ao entrar na adolescência, tudo mudou.

O motivo por trás disso busco nos escritos do geógrafo russo Piotr Kropotkin. “O que a gagueira e um teórico anarquista teriam a ver”, você provavelmente deve estar se perguntando. A resposta está em uma única palavra, cooperação. Kropotkin acreditava que a tendência natural de todo ser vivo, não só o humano, é a cooperação e o apoio mútuo. Baseado em suas experiências durante uma excursão científica na Manchúria e na Sibéria, argumentou que a competição agressiva por meio da seleção natural não é o principal fator para a evolução, como muitos darwinistas defendiam. Em seu livro Ajuda Mútua: Um Fator de Evolução, ao examinar evidências de cooperação em comunidades animais, sociedades pré-feudais e cidades medievais, o anarquista demonstrou que, embora a competição exista, o mutualismo e a cooperação são as principais forças a garantir a sobrevivência e a evolução de um grupo como todo.

É com base nessa ideia que acredito que a cooperação e o coletivismo presente entre as crianças nos espaços que circulei durante a infância foram cruciais para que eu pudesse me sentir parte integrante do grupo, como qualquer outra criança, independente das heterogeneidades existentes. No entanto, isso foi sendo modificado gradualmente conforme essas crianças eram sociabilizadas enquanto indivíduos que devem exercer uma função dentro de uma sociedade capitalista, sociedade a qual valores como competitividade e individualismo são predominantes. Utilizando o palavreado de Foucault, tais sujeitos foram sendo domesticados, se transformando em corpos dóceis, pois a escola e a família são instituições de poder e controle. A antes cooperação coletiva deu lugar a uma busca implacável por status e poder onde os indivíduos que não se encaixavam nos padrões ideais vigentes, como eu, acabavam sendo marginalizados, sofrendo, assim, com a humilhação cotidiana. Em uma sociedade que possui a capacidade retórica e a eloquência como virtudes que devem ser incansavelmente estimuladas, um gago não tem vez, nem voz. Foi nesse contexto que a gagueira passou a ser um problema.

Essa é a história de como fui transformado em um pária. Pois uma pessoa sem voz fluente é uma pessoa incapaz de exercer uma função social e, portanto, deve ser estigmatizada e posta a margem. Tal fato afeta drasticamente o desenvolvimento subjetivo de um indivíduo. Foram poucos os casos de preconceito explícito que sofri; a maior parte da discriminação vivenciada por pessoas gagas opera sutilmente. Porém, esses poucos casos se encontram bastante vívidos em minha memória. Desde uma paixão juvenil que justificou sua recusa por “ele é gago”, passando por um policial que, durante uma dura, me humilhou quando respondi a uma pergunta, chegando ao dia que uma pessoa que tinha como amiga me imitou pejorativamente diante do nosso grupo apenas para ganhar algumas gargalhadas. Isso sem contar nos inúmeros apelidos jocosos (quem se lembra do personagem Gaguinho das séries de animação Looney Tunes, o porquinho cuja gagueira era sua principal característica vendida como piada?), nas pessoas que perdiam a paciência quando não conseguia terminar uma frase e nas atenções que se desviavam quando eu começava a falar. Explícita ou sutil, a discriminação que sofri causou um agressivo impacto na minha personalidade.

A consequência disso foi um isolamento social quase que total que enfrentei por quase dez anos. Tudo isso fez com que a antes criança sociável, extrovertida e brincalhona se transformasse em um adolescente infeliz, solitário e tímido. Não que isso tivesse alterado, de fato, minha personalidade; mas o casulo o qual foi me imposto a aprisionou, impossibilitou a livre expressão do meu ser, fez com que eu ficasse preso dentro do meu próprio mundo. Acabei por desenvolver um estado depressivo que perdura até hoje. Felizmente, depois de 15 anos de tratamento fonoaudiológico, recebi alta há alguns anos atrás. Sempre acreditei que quando esse dia chegasse todos os meus problemas estariam resolvidos. Estava enganado. A discriminação e o consequente isolamento social não foram a pior parte. Como dito, as implicações subjetivas de uma opressão são terríveis. Aqui entra em cena algo que Bourdieu chamou em sua obra A Dominação Masculina de violência simbólica, uma violência que, a grosso modo, faz com que o oprimido passe a adotar os padrões do opressor.

Pois por mais que o tratamento tenha me fornecido as técnicas necessárias para melhorar a minha fluência e controlar a gagueira, ele possui um grave problema. Se sempre fui gago, por que só depois de anos a minha “deficiência” passou a ser uma questão? O tratamento fonoaudiológico falha em responder isso pois as suas premissas estão centradas em uma reabilitação do paciente, deixando de problematizar as pressões coercitivas da sociedade as quais esse paciente sofre. Em suma, a lógica é a de que há algo de “errado” com a pessoa gaga e que, portanto, tal pessoa necessita ser “curada”, ao invés de contextualizar e demonstrar que, na verdade, se há alguém que porta alguma “doença”, é a própria sociedade que marginaliza esse paciente. Devemos aprender a falar “direito” se quisermos ser ouvidos. Paralelos podem ser feitos aqui com outros tipos de opressões nas quais, por exemplo, a pessoa negra que deve “embranquecer” para não sofrer racismo, a mulher que deve se “vestir melhor” para não ser estuprada, o gay que deve “não dar pinta” para não ser espancado, entre tantos outros.

quem é perfeito
Afinal, quem é perfeito?

Tal reflexão provém de um feliz encontro. No começo do ano, tive a oportunidade de cruzar caminho com um potente texto chamado Não ao Tratamento Fonoaudiológico, o qual me fez começar a questionar o meu próprio tratamento. O que ele coloca é simples e direto: a de que a corrente dominante na fonoaudiologia compartilha de uma “presunção equivocada que é a minha gagueira, e não o preconceito do ouvinte, que causa a minha dificuldade de me comunicar”. Voltando para a minha infância, essa afirmação é ilustrada pela constatação de que, mesmo sendo gago, nunca tive dificuldade de me comunicar com as outras crianças; tal dificuldade só emergiu quando essas crianças foram coagidas a se transformarem em jovens preconceituosos e intolerantes. Ao centrar o problema no paciente, o tratamento faz com que a pessoa gaga passe a acreditar que a culpa é dela, e não dos indivíduos que a rodeiam. Esse é o principal resultado da violência simbólica. Tanto o fetiche pela perfeição oratória quanto os métodos equivocados da fonoaudiologia fazem com que a vítima não só seja culpabilizada, como passe a se sentir culpada.

Para melhor entender a crítica a fonoaudiologia, no site onde foi originalmente publicado o texto supracitado, intitulado Did I Stutter?, um manifesto foi lançado. Em determinado trecho desse manifesto o seguinte é dito:

A fonoaudiologia, a neurobiologia e a psicologia não estão dizendo toda a verdade sobre a gagueira. Foi-nos dito que a gagueira é uma coisa, um defeito biológico e médico dentro de nossos corpos; que pode ser visualizada através de tomografias, calculada usando medidores de fluências e gerenciada através de terapia: é um problema a ser consertado.

Nós discordamos. Nós nos recusamos a deixar que nossos corpos e nosso discurso sejam definidos por peritos médicos e científicos.

(…) Logo, a experiência que nós chamamos de gagueira não pode ser explicada apenas como uma mera dificuldade de vocalizar certas palavras, mas deve ser fundamentalmente entendida como uma discriminação contra formas disfluentes de comunicação e de utilização do nosso corpo.

A gagueira é apenas um problema – de fato, é somente anormal – porque a nossa cultura coloca tanto valor na eficiência e no autodomínio. A gagueira quebra a comunicação apenas por conta de noções capacitistas que decidiram de antemão o quão rápido e fluente uma pessoa deve falar para ser ouvida e levada a sério. Uma linha arbitrária foi desenhada ao redor do discurso “normal” e essa linha é vigorosamente defendida.

É justamente por essa pressuposição da gagueira como defeito que, mesmo após ter recebido alta da minha fonoaudióloga, eu estava longe de superar os meus demônios. Imagine você, fazer um tratamento por 15 anos com a promessa de que, no final, tudo vai ser resolvido, mas quando a alta finalmente chega, descobre que os seus problemas só estão começando. Sofri com o isolamento e com a discriminação, as consequentes mudanças de personalidade afetaram nocivamente a relação com a minha família, não só tive que conviver com a depressão, como ela era ainda interpretada como uma “preguiça” ou uma “fase”’ – o que fez me sentir ainda mais culpado pelo meu estado –, passei a ter acessos de raiva e de fúria na qual agredia sem motivo colegas próximos, era incapaz de conversar com pessoas estranhas, sendo obrigado a pedir para outros a falarem por mim, tive que conviver com a noção de que a minha gagueira era sinal de algum desequilíbrio emocional ou intelectual, cheguei até mesmo a tentar o suicídio. Fui silenciado, literal e simbolicamente. Tudo isso com apenas 14, 15 anos de idade. Mesmo assim, os meus problemas estavam longe de acabar.

Estavam longo de acabar pois, primeiro, não existe “cura” para a gagueira. Todo gago será gago até morrer; o que existe são técnicas que ele pode aprender para controlar a sua fluência a um nível onde a gagueira torna-se quase que imperceptível, mas o esforço necessário para falar sempre será muito maior do que uma pessoa não-gaga necessita. Falar para mim é extremamente cansativo, tudo porque se eu não falar “direito” não serei ouvido. Segundo, e mais importante, o sentimento de que havia algo de errado comigo, o qual a fonoaudiologia auxiliou a construir, criou raízes profundas na minha psique que determinaram profundamente a percepção que tenho de mim e do mundo. Tais fatos levaram a, dois anos depois de receber alta do tratamento, em 2013, eu tivesse que enfrentar a minha primeira crise severa depressiva da qual estou me recuperando até hoje a base de medicação e de tratamento psiquiátrico.

Tamanha foi a crise que ela me afetou no cumprimento de alguns prazos da minha pesquisa acadêmica. Para justificar, abri o jogo com o professor. A resposta que ouvi levou lágrimas aos meus olhos. Pois, para ela, eu tinha total condições de lidar com a minha condição por ser uma pessoa de classe média com uma família bem-estruturada, e de que o meu real problema era falta de disciplina – sim, eu, como homem branco de classe média e cis, sou privilegiado em muitos aspectos, aspectos esses que me beneficiaram em muito (como na condição financeira necessária para ter acesso a um bom tratamento fonoaudiológico ou no fato de que, mesmo sendo gago, ainda ocupo um lugar privilegiado de fala por ser homem), mas que não anulam a opressão que vivi. Mais uma vez, a culpa é da vítima. Não bastasse ter que lidar com a pressão incessante de adquirir uma “fala perfeita”, ainda tenho que me sentir responsabilizado pela depressão causada por essa pressão. Como se a culpa fosse das pessoas depressivas, e não da sociabilidade típica de sociedades capitalistas, caracteristicamente destrutiva e esquizofrênica; compartilho, dessarte, da noção de que muitas das patologias mentais que são tratadas como “doenças psicológicas” são, na verdade, frutos do modo doentio como vivemos em sociedade.

Queria eu essa ser uma história sobre superação. Não é. Ainda enfrento a depressão; uma parte de mim ainda acredita que a culpa é minha; nos momentos mais sombrios, o desejo dormente de não ter nascido gago ainda me assombra. A recusa em me aceitar é tanta que há pouco tempo percebi que, quando cruzo com outra pessoa gaga, não consigo me concentrar para ouvi-la e logo perco a paciência. De certa forma, oprimo o meu próprio par – mais uma vez, a violência simbólica em jogo. Mesmo “curado”, o dano na minha autoestima foi extenso. Por isso ainda me sinto intimidado até mesmo por amigos e amigas mais íntimas que possuem boa eloquência. Ainda me omito em momentos em que quero falar algo. Deixei de frequentar espaços de militância por perceber o quanto que a retórica é central para a participação ativa. Volto para casa vez ou outra reencenado mentalmente conversas que tive com a ilusória esperança de que elas poderiam ter sido melhores. Por conta disso, perdi inúmeras oportunidades, e ainda hoje me sinto responsabilizado por tudo que deixei de fazer por ser gago. A crença de que eu poderia ser “mais” se não fosse gago resiste em mim. Não, esse não é um texto sobre superação. É um chamado por conscientização, é uma tentativa de levar o leitor a desconstruir o lugar da oratória no processo comunicacional. Há inúmeras expressões não-verbais possíveis de serem comunicadas. A comunicação, afinal, não deveria ser uma relação de dominação, e sim de troca. Pois por mais que o caminho que necessito trilhar ainda seja longo e árduo, uma certeza ao menos eu compartilho com convicção: a culpa não é minha.

É nesse sentido que decidi nesse ano me envolver com a luta anticapacitista. Segundo o blog Chega de Capacitismo, o termo “capacitismo” significa a

concepção presente no social que tende a pensar as pessoas com deficiência como não iguais, menos humanas, menos aptas ou não capazes para gerir a própria vida, sem autonomia, dependentes, desamparadas, assexuadas, condenadas a uma vida eterna e economicamente dependente, não aceitáveis em suas imagens sociais (…).

Englobo aqui a discriminação contra a gagueira como uma forma de capacitismo, mesmo que até o presente momento não tenha conseguido encontrar uma única legislação ou norma que aborde a gagueira como uma “deficiência”. O próprio movimento anticapacitismo não toca nessa questão, pois a gagueira ainda é vista como patologia a ser tratada, e não sob a ótica da crítica à opressão estrutural. Ela é tida como um defeito individual, representada pela ideia de que quando alguém gagueja, deve ser porque está “nervoso”, e não como uma discriminação social e cultural contra certos padrões de fala (não, pessoas não-gagas, vocês não gaguejam quando tem que fazer uma importante apresentação ou quando são pegos de surpresa com alguma pergunta; no máximo, vocês hesitam). Esse texto é apenas uma das várias conversas que tenho tido desde o começo desse meu envolvimento. Contudo, não basta apenas lutar contra a discriminação capacitista. Pois, como dito, a questão maior é o conflito entre coletividade e individualidade, é a luta contra o capitalismo, contra a forma como esse sistema controla nossas subjetividades a ponto de nos botar uns contra os outros.

Recordo de uma história que vivenciei recentemente. Tive, nos últimos anos, o prazer de participar de alguns projetos de educação popular nos quais realizava atividades com crianças. Em uma dessas atividades, um menino me abordou com a seguinte pergunta, “tio, você é gago?”. No mesmo instante fechei a cara esperando por algum comentário jocoso, tão comuns durante a adolescência e a minha fase adulta. Respondi que sim. A reação do garoto me surpreendeu. Com a maior naturalidade, ele me disse, “que legal! Eu também sou!”. Naquele mesmo momento, todas as boas lembranças da infância, da solidariedade coletiva, da cooperação mútua, reluziram em pensamento. Precisamos voltar a ser crianças. Precisamos regressar a ser sujeitos coletivos.

Pois Kropotkin tinha razão. A cooperação e o apoio mútuo são elementos cruciais para a nossa sobrevivência enquanto espécie, e são essas crianças que mais sabem sobre isso. Essa, portanto, é a história de um gago que se tornou anarquista por conta de sua gagueira, uma vez que a opressão que vivi não só me tornou solidário com outras opressões, como me fez criar um desejo inabalável por um mundo melhor onde ninguém tenha que passar pelo que passei e pelo que milhões de pessoas oprimidas passam. Enquanto continuarmos a coagir nossas crianças a desenvolverem subjetividades individualistas e egocentradas a ponto de as colocarem umas contra as outras, estaremos fadados a extinção como espécie – e apenas o espírito infantil de coletividade e mutualidade que um dia tivemos pode nos salvar.

Por Gustavo Fernandes