(Uruguai) Sobre os ataques ao movimento anarquista em Montevidéu

Em meio ao entusiasmo por grande parte da esquerda institucional brasileira pela vinda do ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica ao Brasil, a Rede de Informações Anarquistas republica uma carta escrita por anarquistas uruguaios e uruguaias  em 2013 denunciando a perseguição e criminalização do movimento anarquista no Uruguai. Para passarmos a compreender que enquanto existir Estado, independente do governo no poder, haverá autoritarismo e repressão aos de baixo, uma vez Estado e Capital são elementos indissociáveis e não há programa reformista capaz de mudar esse fato.


Em uma semana e meia 14 companheiros foram presos, isto se soma à campanha de escutas, perseguições, tentativas de despejos e ataques ao movimento anarquista em Montevidéu. Nada disto nos assusta, só nos faz mais fortes. Se nos golpeiam é porque incomodamos. Se incomodamos aos poderosos e seus delatores, estamos fazendo bem as coisas.

Há uma guerra social que passa por diferentes momentos. Os poderosos sabem, nós também. A imprensa oculta, ofegando sobre o barril do capital, impondo a ideia de uma democracia rançosa que não cumpre nem com suas próprias mentiras mais repetidas, segurança, direitos humanos, justiça…

Entre tudo isso a raiva abre passagem.

O governo dos tupamaros tortura. Onde está a novidade?

O Estado que ocupa o território uruguaio não é alheio ao medo e intenção de recrudescer o controle sobre sua população, como estão levando adiante os diferentes governos progressistas da região (lembrem os encontros de segurança e “antiterrorismo” do Mercosul). O fantasma da primavera árabe, é um medo longínquo mas que palpita e o Brasil se converte em pesadelo para a camarilha empresarial. Qual é o pesadelo para os democratas, extremistas, radicais do poder e demais fascistas? A revolta, a insurreição que quando desperta não parece poder ser controlada. Uma raiva que não pode ser reconduzida pelo futebol ou a compra de roupas de marca ou congêneres. É aí onde aparecem os que lhes fazem o “trabalho sujo” a Bonomi, Tabaré e Mujica, as forças da ordem a serviço de sua autoridade. É aí que os mercenários criados pela direita e especializados pela esquerda do poder saem ao ataque.

Os violentos, encapuzados, anarquistas.

Palavras vazias de todo tipo tem enchido o papo dos jornalistas estes dias. Que os anarquistas isto e aquilo, que as táticas de violência urbana, que minorias, etc., etc. Os violentos de 14 de agosto, os radicais, os infiltrados em tudo, até na torcida do Penharol (como se nesta não houvesse sentimento antipolícia, que precise infiltrar-se os ácratas). Por todos os lados a união entre a repressão policial, a coordenação política e a preparação do conluio feito pela imprensa. O ataque tem várias pontas. O Estado defendendo-se definitivamente. Mas de que? De que se defende o Estado? Hoje todo o exército que mantêm a ordem existente (imprensa, polícia, militares, políticos e demais acomodados) se conjuga sob o abrigo de um nível inédito de consenso entre a direita e a esquerda no que têm a ver com a potencialização do desenvolvimento capitalista. Mas além do jogo eleitoral, as bases importantes do desenvolvimento do capital na região não se põem em discussão por nenhum dos partidos. A mega mineração, o desmatamento, a coordenação, em fim, pela instauração do plano IIRSA [Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana] e demais planos, sua grande coordenação política, econômica e militar seguem em marcha. É necessário deter e evitar toda resistência, todo germe de resistência. É necessário deter aos que não negociam, aos “violentos”.

Um passo mais…

E que dizer da violência? Não é para nós uma “opção política” como creem os sabidos da faculdade de ciências sociais. Para nada. Não é uma opção e não é para nada política. A escolha que sim fazemos é a de tentar viver do único modo que nos parece digno, o livre. O de não calar, o de fazer algo quando vemos que a coisa vai mal e vai ainda para pior. Escolhemos resistir, escolhemos defender-nos. Aqui (mais além do jogo preferido da imprensa, dirigentes sindicais e demais políticos) não há violentos e não violentos, bons e maus, e demais categorias do poder. Quem não se haja enojado, quem não haja sentido vontade de resistir à miséria, de opor-se e saltar ante tanta porcaria, simplesmente não deve ter sangue. Quem não se enoja conhecendo os negócios policiais com a pasta base, a miséria do trabalho ou o sabor da água de OSE? A violência neste mundo capitalista é natural, a resistência a ele, uma necessidade vital.

E outro depois…

Não negamos, jamais o temos feito, nossos crimes. Queremos e potencializamos a liberdade, esse é um grande crime contra o poder. Queremos e potencializamos não a etiqueta de liberdade, abstrata, utilizável e manejada por qualquer um. Por isso praticamos a solidariedade, o apoio mútuo, a reciprocidade, a resistência e é essa prática a que inevitavelmente produz choque em um mundo voltado cada vez mais a negar chão a quem está caindo. A cultura do medo não pode, não tem podido e não poderá amedrontar-nos ainda que o tente. Por isso os insultos, as ameaças com a tortura e a violência, por isso a pistola na cabeça de um companheiro na delegacia, a nudez forçada e os golpes. Por isso o enfurecimento.

E por que sorriem? Se perguntam…

Nós não temos aparência de vítimas. Se dizemos, se mostramos outro golpe ao movimento anárquico é para mostrar, para continuar mostrando esses golpes que sofremos geralmente em nossos bairros e que a polícia costuma silenciar. Sabemos falar, o fazemos bem e somos suficientemente livres e fortes para não nos calarmos. O porque de tantos e seguidos golpes ao movimento corresponde a um crescimento que o poder não tem podido frear, ainda que o tenha tentado. Corresponde a perda do medo e o abandono da confiança que parte da sociedade havia oferecido aos governos progressistas. Somos tratados com dureza porque o governo tem dado carta branca ante a presença que têm desbancado o parlamentarismo das ruas. Ante a ação direta que não busca negociar, que não pede nada. Somos tratados com dureza porque é contagioso um fazer auto-organizado que fomenta um verdadeiro diálogo, um entre iguais e não políticos ou empresários. Sorrimos por que são bons os ventos e sabemos nos defender.

O espelho do poder.

Onde olham sempre buscando a si mesmos. Em seus interrogatórios quando não se baseiam no simples insulto ou a ameaça, o que buscam é a eles mesmos e sua necessidade de chefes, de alguém que lhes diga o que têm que fazer. O poder necessita inimigos e não serve a seus interesses que estes não se vistam de terroristas, não busquem governar ou que não tenham autoridades. A falta de respeito em todos os âmbitos não pode vir para os serviços de inteligência mais que de um só grupo de pessoas, não pode não ter chefes ou não ter uma grande estrutura organizada para infundir o terror. Mas nós que estamos nas ruas sabemos que o seu crédito social acabou e que os companheiros são muitos e em nada respondem a lógica do partido. Pior para eles mas é assim.

Nós os anarquistas, não somos os que mantemos um sistema de saúde que gera morte e insanidade, não fazemos mega operativos nos bairros pobres, não empreendemos o saque e a destruição do meio ambiente e definitivamente não somos os que mantêm o negócio da pasta base nos bairros. Não dizemos aos jovens que não são nada se não têm certa marca de roupa e não fazemos cárceres para prendê-los depois.

Mas não somos tampouco cidadãos obedientes, não somos, jamais o temos sido dos que esquecem, somos parte dos que têm lutado sempre, como somos irmãos dos que lutam agora em qualquer parte do mundo contra um sistema que nega a vida. Impulsionamos e seguiremos impulsionando sempre a rebelião para conseguir mais e mais liberdade. Quiseram tirar da vista dos turistas os indigentes, criando uma ilusão de comércio, mas aqui não somos todos clientes ou submissos. Nem a todos se pode tapar. Nem todos se rendem.

Anarquistas.

Montevidéu, Agosto-Setembro 2013

Originalmente traduzido e publicado por Agência de Notícias Anarquistas (ANA)