No final de 2014 e início desse ano, os grandes reservatórios de água da região sudeste entraram no famigerado “volume morto”. Tudo indicava que as principais cidades da região “mais desenvolvida” do país poderiam entrar em colapso em questão de dias, especialmente São Paulo. A situação parecia assustadora: como imaginar uma cidade de quase 12 milhões de habitantes sem água para a maioria da sua população? Mad Max não podia ter uma sequencia em melhor época.
Há 100 km da capital, nesse mesmo período, a falta d’água já era uma realidade. Em Itu, no interior do estado, bairros inteiros ficaram três meses sem uma gota, com exceção dos condomínios de luxo, que mantinham suas piscinas cheias em plena crise. Há 12 anos o município privatizou o seu serviço de saneamento e cada vez mais sofre com o desabastecimento periódico. O problema se intensificou na seca atual e a população foi às ruas reivindicando o reabastecimento e um posicionamento dos políticos eleitos. As imagens das barricadas espalhadas pela cidade e das “donas de casa black blocs”, como brincam os ituanos, chegaram ao Jornal Nacional. Projetou-se que São Paulo estaria prestes a virar Itu.
Para o alívio dos que colocavam o problema na conta de São Pedro, as chuvas de fevereiro e de março provocaram uma pequena recuperação nos reservatórios e a chamada “crise hídrica” voltou a ser secundária na pauta da grande mídia, dando lugar às panelas.
Para esse ano, as perspectivas não são muito animadoras. Se o volume de chuvas for igual ao do ano passado, é provável de que o ocorrido em Itu se replique pelo sudeste. A seca ainda atinge a região, os reservatórios estão hoje com menos água do que no mesmo período do ano passado e as soluções apresentadas são relativamente ineficazes: cria-se uma agenda emergencial de grandes obras de transposição sem licitação nem licenciamento ambiental, fabricando uma “indústria da seca” bastante lucrativa. De novo, os de cima lucram com o desespero dos de baixo.
Parte do “pacote de medidas” apresentado por governos e mídias tradicionais inclui a ideia de que se cada um fizer a sua parte, será possível reverter o quadro. Tentam convencer a população de que a solução – para um problema que não criamos – é diminuir o tempo do banho ou desligar a torneira ao escovar os dentes. Mais um conto da carochinha. Em um país onde 70% da água utilizada é destinada à irrigação das safras do agronegócio exportador e à mineração, onde cerca de 20% é destinada à produção industrial e cerca de apenas 10% é destinada aos comércios e residências nas grandes cidades, de onde saiu que a principal solução é evitar o desperdício doméstico?
A água disponível para o consumo humano e animal vem reduzindo progressivamente. O desmatamento e a contaminação por resíduos industriais, resíduos da mineração, agrotóxicos ou resíduos urbanos, despejados pelas próprias empresas de saneamento que não conseguem tratar toda a água utilizada nas redes, estão entre os principais fatores de degradação da qualidade da água. Será que somos nós que devemos pagar, sozinhos, por essa situação? Somos nós os principais culpados? É preciso questionar os processos de decisão sobre os usos da água.
As elites têm e sempre tiveram controle sobre os recursos naturais e não sofrem com as secas, como se vê nas constantes faltas d’água seletivas nas periferias de qualquer grande cidade brasileira. É falso dizer que no momento atual não existe água; a distribuição do ônus ambiental é necessariamente desigual. Montadoras, bancos, shopping centers e outros grandes consumidores de água têm seu abastecimento garantido por contratos de demanda firme com amplos descontos e o exército, como recentemente noticiado, já se prepara para uma possível situação de “convulsão social”, na qual fará de tudo para garantir o abastecimento do estrato que historicamente protege, em meio a um cenário de desemprego e encarecimento de alimentos produzido pelo racionamento hídrico.
Há um modelo privatizante em curso, que coloca nas mãos da iniciativa privada, desejosa somente de lucro, a responsabilidade de garantir que um dos elementos mais importantes à vida chegue às nossas casas, por tarifas cada vez maiores. Bem-vindos ao mundo da mercantilização e boa sorte aos que não conseguirem pagar… Aos estatistas por aí, basta uma rápida olhada nos índices de recordes negativos em saneamento que as empresas públicas detém para compreender que, se formos depender da lógica da representação, só teremos o que sempre tivemos: descaso com a população.
Quem tem poder tem água e quem tem água tem poder. Precisamos fugir dos binarismos de partido X versus Y, do estatal versus privatização. Trata-se sempre do mesmo: estruturas de comando hierárquicas, planejadas para aplicar decisões de cima para baixo, independente do que nós, as pessoas comuns, desejamos. Não deixemos mais decidir em nosso nome! Nos organizemos localmente, em nossos espaços de trabalho, de moradia, de estudo como iguais: só nós mesmos poderemos nos ajudar e mitigar o sofrimento durante a crise; só nós mesmos poderemos arrancar do controle privado e do estatal nossa autonomia. Tomemos das mãos dos técnicos e burocratas estatais, distantes dos problemas cotidianos das pessoas, e dos empresários gananciosos que brincam com vidas a prerrogativa de decidir sobre um bem tão precioso quanto a água.
É preciso descentralizar o sistema, redistribuir a água existente, recuperar os mananciais, reaproveitar as fontes desperdiçadas, reduzir o uso do agronegócio, reduzir as fontes de degradação da qualidade. Lutemos para que acatem nossas próprias decisões. Se há crise, ela é permanentemente fabricada. A guerra da água é todo dia. Pela água sob controle da população, pela autogestão hídrica!
Esse texto foi extraído do jornal “Levante” produzido pela Liga Anarquista no Rio de Janeiro, que você pode conferir na integra esse e outros textos no blog: https://ligarj.wordpress.com/