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Reflexões sobre a redução da maioridade penal

Por Fernando Monteiro

Em tempos de aprovação da redução da maioridade penal acho que é importante fazermos algumas reflexões. Separei alguns trechos de um artigo publicado em 2001 na revista Novos Tempos. Temo que seja um texto demasiado longo mas o assunto é relevante e peço paciência. Procurei cortar ao máximo as citações de Foucault, Godwin e Montaigne a fim de não tornar a leitura muito enfadonha, mas acho que devemos mesmo refletir sobre o abolicionismo penal e sobre o momento cujo texto é muito pertinente!

Aí vai:


À cultura libertária é importante questionar a unicidade do pensamento e a monotonia da reflexão que tem como velhos instituintes a verdade inquisitorial e a forma tribunal. Espaços de reconstrução de contextos sociais, vontades e sensações que, mantenedoras da ortodoxia e da heterogestão, impossibilitam a irrupção de heterodoxias políticas e sociais alternativas e artísticas, formas autônomas de produzir novas percepções instituintes de práticas libertárias.

(…) As guerras religiosas pela ortodoxia e estatais pela servidão estabeleceram um princípio único de verdade que determinou a exclusividade duma escolha social, política e religiosa, bem como a destruição de reflexões, potencialidades e histórias político-culturais que nem o mais otimista dos arqueólogos pode determinar. Contudo, o acontecimento seccionador da ortodoxia eclesiástica não implicou a superação do tribunal religioso da ortodoxia nem do tribunal político da servidão, ao contrário, recriou, na internalização da verdade cristã reformada, a forma tribunal tiranizada, dissolvida e multiplicada através do tribunal privado e racional da consciência.

Se a forma tribunal foi o exercício eclesiástico de apuração da verdade inquisitorial, em que se afirmava a necessidade de uma pretensa, mas impossível, sensibilidade universalizada que se afirmara por meio da senhorialidade daqueles que pensavam defender a “profunda verdade” religiosa duma certeza mal apreendida, a internalização da forma tribunal na consciência, construiu-a no âmbito privado, individual.

O abolicionismo penal é a prática política libertária que possibilita questionamento radical das “soberanias sujeitadoras” por interrogar a “alma”, a “consciência”, o discurso individual e sua responsabilidade, e a pretensa “liberdade fundamental” que se transformou em justificativa para o regime de interdição, exclusão e destruição de pobres, miseráveis e diferentes que confrontam profundamente os corpos adestrados e dóceis que justificam qualquer merda como necessária à “defesa da sociedade”.

O abolicionismo penal permite a constatação de nossa sociabilidade autoritária, e entre várias coisas que a cultura libertária pode produzir é o que atinge os alvos fundamentais que alicerçam as formas de verdade e sujeições presentes.

Ele está voltado para uma revolta contra a vontade científica de tornar-se verdadeiro, mas se entende efetivo e presente em quaisquer sociedades punitivas. Ele não é uma verdade que se deve aceitar, mas uma possibilidade libertária que quer ser reconhecida como acontecimento!

Pois, qualquer vontade de potência pode afirmar-se universal e eficaz, mas todas produzem na história as fricções de sua própria ineficácia e ruína. Nenhum sistema está fora da história, consoante aconteceu com a grande obra autoritária soviética ou quaisquer outros edifícios das civilizações e heterogestões.

O abolicionismo penal é uma constante reinvenção!

Os papéis de vítima e de infrator não precisam ser ocupados necessariamente; na realidade, apenas o lugar de vítima é concebido de forma residual! Na medida em que seja necessário.

O discurso da verdade dos fatos não está preestabelecido, porque, concretamente, não é relevante nem é interessante recriar o agente de seu reconhecimento, razão e juízo da forma tribunal! Não existe posse ou propriedade exclusiva e peremptória da verdade.

Contra regulações da ordem, o abolicionismo penal é um descortínio libertário voltado para o exercício corrente do federalismo e da anarquia, pois prescinde de grandes estruturas promotoras e reconhecedoras da forma tribunal de reflexão, pensamento e gestão.

O abolicionismo penal luta contra o discurso da universalidade, ele é estratégico, não busca ser novo instrumento contra a impunidade. Ele afirma que A IMPUNIDADE É A RESULTANTE POLÍTICA DUM SISTEMA QUE SE PERCEBE SELETIVO, MAS QUE SE ENOJA DISSO, SEM CONTUDO, INTERROGAR-SE. Apenas afirma a necessidade de reformar-se constantemente, reafirmando sempre os mesmos princípios de estigmatização e aprisionamento. Confirmando a todo instante sua permanência necessária. Em tempo algum questiona pressupostos fundamentalistas acerca da correção da prisão. As pesquisas produzidas por seus promotores lembram os comentários bíblicos medievais, sempre iniciados por uma verdade estabelecida que, analisada e confirmada, sempre leva a sua reiteração.

O sistema penal é o problema mais grave que construímos nessa sociabilidade de religião, servidão e miséria. Os acontecimentos que aborda não são excepcionais, são corriqueiros e comuns. Os envolvidos também não formam uma categoria especial de sujeitados, apenas correspondem diversamente a covardia geral.

(…) No Brasil, a justiça se pensa forte porque a sociabilidade é autoritária e a educação, como diria Godwin, é inexistente. Não se trata de instrução formal ou de metas estatísticas de inserção escolar, mas de movimentos de sociabilidade voltados para uma vida de artes e acontecimentos.

A reflexão libertária tem como parceiro estratégico o abolicionismo penal. Seus inimigos comuns são a heterogestão e a sociabilidade autoritária. É preciso olhar o sistema penal observando seus contornos!

O direito punitivo atingiu o “limite do seu destino” e o máximo de seu potencial destrutivo.

Basta de direito penal!

Chega de prisões!

O abolicionismo penal é, apenas, uma pequena talhada. Mas nos oferece infinitos percursos libertários.

José Luis Solazzi – Percepções Libertárias – Trechos do artigo extraído da revista Novos Tempos 3, 2001.


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