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A silenciosa e ancestral resistência da mulher negra no Brasil

Resistência política, cultural e religiosa são os símbolos identitários mais fortes que as populações negras fora do continente africano conseguiram resguardar durante séculos de expropriação de suas vidas e força de trabalho escravo, a base de muito sangue, luta e persistência silenciosa/silenciada. Entre danças, cânticos, rodas, comida, sincretismos, termos e palavras, gestos e expressões. A mulher preta foi e ainda é o pilar dessa resistência. Essa mesma mulher foi a linha de manutenção dessa resistência no percurso entre a Casa Grande e a Senzala, exposta a servilhiência de todos os caprichos daqueles que compraram a sua vida, sua força física, seu sexo, objeto de uso e desuso amplo e irrestrito. O termo Resistência significa no sentido da palavra “força que se opõe a outra”. Mais que se opor, nesse sentido, falar da resistência da população negra e da própria mulher negra, nos dias atuais, é também refazer um caminho reflexivo sobre suas lutas, revoltas e movimentos políticos, a exemplo da luta de Palmares, dos Alfaiates e dos Malés.

Dandara dos Palmares
Dandara dos Palmares

Percebendo que no emaranhado das lutas de resistência há um complexo cultural contra-hegemônico, de identidades complexas e resistentes à escravidão, dominação política, física, mas também à dominação cultural. As manifestações culturais possuem significados importantes na constituição das identidades resistentes. Os negros nunca esqueceram suas origens de um passado de profunda organização social e política; é possível afirmar que as mulheres negras sempre estiveram ombro a ombro, ou quiçá na frente de batalha, na luta pela preservação da milenar historicidade marcada pela oralidade, corporeidade e signos culturais. Especialmente presentes nas religiões afro-brasileiras, a exemplo do candomblé, onde a mulher tem a primazia na administração do “espaço mítico, sagrado, religioso e social do terreiro, tendo em conta que o terreiro é, ao mesmo tempo, templo e espaço de socialização e hoje, reconhecidamente um lugar, historicamente, de resistência política!”(OLIVEIRA, 2003).

Em um dos primeiros textos produzidos no Brasil com enfoque nas mulheres negras, da socióloga Lélia Gonzalez (In. LUZ, 1982) mostrava que a mulher negra era “objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”. Também do ponto de vista dos próprios movimentos feministas, chamou atenção para a maneira como as mulheres negras eram praticamente excluídas dos textos e dos discursos desses movimentos sociais e políticos. Em sua conclusão, a autora destacou a resistência da mulher negra anônima, aquela que era o sustentáculo econômico, afetivo e moral de sua família.

No momento histórico atual, faz–se possível perceber que a mulher negra anônima continua sua luta de resistência silenciosa, mais forte, assim como o movimento feminista negro tem empreendido uma forte luta na quebra da histórica construção dos estereótipos e papéis sociais impostos as mulheres negras, geradas ao longo de sua escravização física e intelectual e mantida como mercadoria pelo sistema capitalista. A questão do racismo, a partir da óptica da elite branca e daqueles que foram alienados pelo discurso da mítica igualdade racial, levantam a bandeira de uma admiração notadamente falsa, pela mulher negra e suas qualidades, que ficam delimitadas aos interesses da exploração do mercado de consumo variado. Que mascara a realidade, que a objetifica sexualmente, midiaticamente, culturalmente, ou seja, a exotificação da mulher negra; exotificação é objetificação. A mulher negra ainda desbrava uma luta ancestral e silenciosa, para resistir e existir nos dias de hoje – dias da chamada Modernidade, que desenvolveu novas interfaces ilusórias de liberdades chamadas de morais, mas nunca antes tão sintonizadas com as condições impostas desde os primórdios de 400 anos atrás.

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A mulher negra trava no silêncio imposto, em seu cotidiano, uma luta para além da submissão do patriarcado, desde sua infância até sua morte, sofre a degradação por razões de raça, gênero e inferiorizada, tendo a sexualidade, a afetividade, a imagem, a corporeidade, o intelecto, os signos e heranças culturais e familiares negados. Muitos do que estão a ler o texto poderão considerar um absurdo tais afirmações, imaginando: Como assim? Tudo isso negado? E o carnaval? Quando elas reinam absolutas! Esse é um dos cernes de inúmeras outras questões quanto a imagem, falas permitidas e livre desempenho dos papéis sociais; sendo vistas apenas como sempre foi construída secularmente, um objeto-produto de consumo e sua afirmação podendo ser feita apenas nos moldes permitidos pelos senhores da casa grande. O cotidiano da vida dessas mulheres, giram no eixo da imposto pela mercantilização, de serem apenas simplórios Ser-Objetos-Descartáveis, da hiperlincação dos tempos das “alcovas” aos dias de hoje, do corpo negro feito para o pecado, quente e luxurioso. Para a satisfação da libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções. Ou seja, se tornaram as vistas da sociedade o corpo coisificado. Enquanto os corpos das mulheres brancas se destinavam ao moralismo da pureza da mãe de família traçado por uma cultura religiosa judaica-cristã, o mesmo nunca incidiu sobre a mulher negra. O legado da escravidão é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram desta situação com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho, durante quatro séculos.

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Negras escravizadas desde muito cedo foram forçadas a trabalhar para garantir o conforto das mulheres brancas europeias e/ou brancas – lavando, passando, cozinhando, cuidando dos filhos e servindo de ganhadeira. Observem que os maiores contingentes de empregadas desde sempre são negras (afrodescendentes) e quantas ainda são exploradas e violadas sexualmente nesses mesmos espaços que trabalham. Observem ainda que, o maior contingente de exploração sexual, são de meninas negras servidas nas metrópoles turísticas e no interior do país como objetos sexuais. E ainda há quem afirme que as relações entre senhores brancos e escravizadas negras foram consensuais, assim como, a reprodução desse discurso que alegam que elas as fazem por já nascerem com a mente voltada para isso, que seus hormônios as projetam para essa realidade e que somente não saem porque gostam de tais práticas, que são típicos dos negros.

A mulher negra já nasce dançando na roda da vida, mesmo sem ter consciência já nasce na roda do preconceito, da discriminação e marginalização silenciosa. Desde os primeiros passos na sociedade aprende que anjos negros não existem e quando de suas aparições são chamados de exóticos e curiosos. As curvas antes mesmo de darem seus primeiros sinais já lhes é sinalizado a exploração e expropriação do próprio corpo pelo capitalismo. Com frases do gênero nasceu com o samba no pé e no corpo todo, mas o que há por trás de tão singela expressão? Muito mais do que olhos se dão ao trabalho de ver e dos ouvidos a ouvirem. Assim como diversas frases e termos supliciados a essas mulheres e meninas, denotam obscuros significados implícitos nas entrelinhas das falas, gestos e olhares de uma sociedade profundamente racista, sim.

A mulher negra resiste dia após dia.

Por uma nova compreensão das Jornadas de Junho: formas descentralizadas de ação política e crítica ao “espontaneísmo” analítico

A incapacidade de conferir o devido lugar de destaque a um movimento horizontal e descentralizado vem da hegemonia de uma lógica analítica estadocêntrica, que pressupõe a unidade-homogeneidade do social e, assim, dos sujeitos.

Por Gustavo Fernandes

As jornadas de junho marcaram um momento importante na história da sociedade brasileira. Não se espanta, portanto, que toda uma extensa literatura acadêmica já tenha sido escrita sobre os protestos que marcaram o ano de 2013. Contudo, alguns autores apontam para certa dificuldade interpretativa em relação à análise dessas manifestações multitudinárias. Além da complexidade de pesquisar um contexto em constante movimento, Raúl Zibechi (2013) afirma que “as análises pecaram por uma excessiva generalização e em algumas ocasiões atribuíram um papel quase mágico às ‘redes sociais’ para ativar milhões de pessoas”. Outros autores assinalam um peso excessivo dado aos efeitos da repressão policial e à reação a essa repressão (LACERDA & PERES, 2014).

Para tanto, uma série de orientações metodológicas e analíticas foi elaborada por esses analistas de modo a permitir uma melhor compreensão do que se convencionou denominar como “jornadas de junho”. É nesse sentido que os cuidados propostos por Bringel (2013) visam evitar um conjunto de miopias na análise das manifestações que surpreenderam país afora em 2013. O autor destaca quatro miopias centrais, a saber: 1) miopia temporal presente/passado; 2) miopia da política; 3) miopia do visível; 4) e miopia dos resultados.

A primeira miopia tende a sobredimensionar as lutas atuais, apresentando-as como novos “mitos fundadores”. A segunda delimita a ação política apenas à sua dimensão político-institucional, excluindo assim qualquer possibilidade de compreensão da reinvenção da política e do político a partir de práxis sociais emergentes. Já a miopia do visível diz respeito à limitação das mobilizações contemporâneas à sua face visível apresentada nas ruas e nas praças, “sendo incapaz de captar os sentidos das redes submersas, suas identidades e os significados das dimensões invisíveis para um observador externo” (ibid.). A última miopia, consequente das anteriores, refere-se à restrição da interpretação dessas mobilizações aos seus impactos políticos e às dimensões “mensuráveis” da ação coletiva.

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Crítica à espontaneidade das manifestações multitudinárias a partir da noção de processo histórico

Raúl Zibechi (2013), por sua vez, chama a atenção para a problemática de tratar essas manifestações em massa a partir de sua “espontaneidade”, ou seja, conceber as mobilizações como fenômenos que emergiram subitamente somente devido a fatores pontuais e externos (no caso, o aumento da passagem de ônibus, a articulação via redes sociais e a repressão policial) e de forma fragmentada, sem uma coesão ou uma centralização das pautas reivindicadas [1]. Ao percorrer a história de um dos personagens fundamentais das jornadas de junho, o Movimento Passe Livre (MPL), desde a sua fundação em 2005 em uma plenária do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o autor demonstra que, na verdade, “não existiu espontaneidade e sim uma massificação dos movimentos” (ibid.) [2]. A emersão de revoltas populares em reação ao aumento da passagem de ônibus e das más condições desse serviço não é um fenômeno novo na sociedade brasileira; pelo contrário, desde 2003 o país vem vivenciando uma série de manifestações, bloqueios de avenidas e ruas, destruição de catracas, depredação de ônibus e ocupações de terminais de transporte. Incluem-se aqui grandes revoltas como as de Salvador em 2003, de Florianópolis em 2004 e 2005 e os protestos em São Paulo no ano de 2011 [3].

Entre agosto e setembro de 2003, 40 mil pessoas foram para as ruas de Salvador, Bahia, protestar contra o aumento da passagem de 1,30 para 1,50 reais. Os manifestantes ocuparam ruas e avenidas, bloquearam pontos centrais para a circulação da cidade e enfrentaram as forças policiais. Essa onda de protestos ficou conhecida como “Revolta do Buzu” e é considerada por ativistas como a grande referência no nascimento do movimento pela passagem gratuita (NASCIMENTO, 2009). Já em Florianópolis, a Campanha pelo Passe Livre Estudantil ganhava forma desde 2000, quando a organização Juventude Revolução, ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT), desenvolvia um trabalho local ao levar o debate sobre o passe livre a colégios além de promover pequenas passeatas. Este trabalho criou as condições para que, em 2004, entre 15 e 20 mil estudantes se mobilizassem em manifestações em uma cidade de 400 mil habitantes, episódio posteriormente denominado como “Revolta da Catraca” (CRUZ & CUNHA, 2009; COLETIVO MARIA TONHA, 2013). Ambos os momentos são tidos como referências-chaves na fundação do Movimento Passe Livre (MPL-SP, 2013).

Em São Paulo, cidade a qual ocupou um espaço de grande visibilidade durante as jornadas de junho, o setor regional do MPL vinha realizando debates sobre o passe livre desde 2005, organizando paralelamente manifestações em 2006 e 2010. Em 2011, o MPL-SP conseguiu reunir mais de 5 mil pessoas em um protesto. No mesmo ano, manifestações em Belém e em Porto Velho conseguiram reverter o aumento das tarifas na primeira cidade e suspendê-lo por duas semanas na capital rondoniense (LACERDA; PERES, 2014). Dessarte, torna-se claro que mobilidade urbana e passe livre são temas que não surgiram apenas a partir das mobilizações populares de 2013. Adalberto Cardoso (2013) demonstra como que a questão do ônibus, considerada como o grande estopim das manifestações de julho quando sua tarifa foi aumentada em várias cidades brasileiras, constitui-se em um objeto de revolta antiga que perdura na população nacional. Pesquisando em um jornal de grande circulação pelo termo “ônibus incendiado” o sociólogo deparou com 559 ocorrências entre novembro de 2011 e junho de 2013. Esse índice implica em

quase uma notícia por dia sobre depredação de ônibus, em média. A grande maioria dos incêndios foi provocada por “criminosos”, “bandidos” ou “traficantes”, termos intercambiáveis na cobertura do jornal, e por vezes eles ganham estatuto de grande acontecimento (CARDOSO, 2013).

O que Cardoso argumenta é que o tema da mobilidade é uma questão cara e central para a população brasileira, o que a transforma não em um estopim qualquer, mas em algo que é central na vida dessa população uma vez que ela representa um

elemento de uma síndrome de recursos inscritos no território que dá materialidade ao que as jornadas de junho popularizaram como “direito à cidade” […] Sem mobilidade os espaços da cidade se tornam privilégios de uns (quando plenos de recursos) ou condenação de outros (quando privado deles), e a impossibilidade ou a dificuldade reiterada de trânsito entre uns e outros pode consolidar mundos segregados, mesmo que em termos jamais absolutos, já que a “miséria” ou o “privilégio” são parte da compreensão do mundo disponível aos citadinos, e a “opressão” de uns é vivida como injusta porque comparada com o “privilégio” de outros (ibid.).

Resgatar o processo histórico da trajetória e dos sentidos das revoltas relacionadas ao sistema de transporte coletivo, em especial o ônibus, mostra-se fundamental, dado que “percorrer os caminhos dos fluxos de inspiração que cada mobilização produz sobre as outras nos fornece elementos para irmos além da face visível das manifestações” (LACERDA; PERES, 2013), evitando, dessarte, a miopia do visível. Além disso, auxilia também a nos prevenir de outra miopia, no caso, a temporal presente/passado, ao analisar as manifestações como um processo em movimento. Torna-se evidente como as jornadas de junho se beneficiaram de um acúmulo produzido por mobilizações anteriores a essas que, por meio de suas redes, ocultas ou não, produziram uma nova cultura política que surgiu como alternativa aos modos de luta e de organização existentes que não conseguiam mais dar resposta aos desafios impostos pela ordem social vigente [4].

Nesse sentido, Zibechi afirma que as revoltas que ocorreram em 2003 e 2004, além da fundação do MPL em 2005, “rechaçaram categoricamente a cultura organizacional burocrática ao destacarem a horizontalidade, ou seja, uma direção coletiva e não individual, o consenso para que maiorias não sejam consolidadas, e a autonomia frente ao Estado e a partidos políticos” (ZIBECHI, 2013). Boa parte dos elementos constituintes das manifestações multitudinárias de 2013 provém desse acúmulo prévio, o que torna equivocado categorizar as jornadas de junho como um novo “mito fundador”.

Na mesma direção, Bringel analisa esses protestos com base na distinção analítica proposta por Doug McAdam entre “movimentos iniciadores” e “movimentos derivados”, em que os “primeiros seriam responsáveis por identificar brechas, realizar enquadramentos provisórios, agitar e encorajar a mobilização social” enquanto os segundos são os “derivados”, “intérpretes criativos” do cenário aberto pelos primeiros, quando estes são bem-sucedidos (WALSH-RUSSO, 2004; BRINGEL, 2013). O Movimento Passe Livre seria, assim, um dos “movimentos madrugadores que acenderam a chama da mobilização social” no cenário brasileiro, onde “por meio da reivindicação do passe livre estudantil, [o MPL] abriu um campo de conflito e de debate mais amplo sobre o transporte coletivo urbano” (BRINGEL, 2013).

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Crítica à centralização: uma nova cultura política rizomática e fragmentada

Contudo, apesar do protagonismo do MPL, seu repertório de ações transcendeu as fronteiras do próprio movimento e foi apropriado por outros grupos e organizações, espontâneas ou não, que estavam desenvolvendo processos similares [5]. A experiência organizativa do MPL acabou por influenciar militantes envolvidos em outros tipos de ações políticas que não diziam respeito apenas à questão do transporte público (ZIBECHI, 2013). O ponto central aqui, apontado por Bringel, é que

ao contrário do previsto pelas teorias dos movimentos sociais, os movimentos derivados aproveitaram-se, no Brasil, dos espaços abertos pelas mobilizações iniciais, sem, contudo, manter laços fortes, enquadramentos sociopolíticos, formas organizativas, referências ideológicas e repertórios de mobilização que os una ao MPL e/ou a outros iniciadores. Essa aparente desconexão relaciona-se a um fenômeno que gostaria de denominar como desbordamento societário, ou seja, quando na difusão de setores mais mobilizados e organizados a setores menos mobilizadores e organizados, os grupos iniciadores acabam absolutamente ultrapassados (BRINGEL, 2013).

O processo relatado por Bringel em muito advém da forma como os próprios movimentos iniciadores, no caso o MPL, se organizaram. No Segundo Encontro Nacional do Movimento Passe Livre, organizado em julho de 2005 em Campinas, São Paulo, o grupo presenciou sua primeira tentativa de cooptação por parte de partidos da esquerda radical que buscavam modificar as resoluções deliberadas em Porto Alegre [6]. Diante dessa ameaça, a plenária reafirmou as suas posições de horizontalidade e de independência, além de decidir que o movimento se constituiria a partir de uma “federação de grupos”, com um Grupo de Trabalho Federal ao invés de uma coordenação, evitando um caráter mais hierárquico no referente ao modelo organizacional do movimento (MPL, 2005).

O próprio MPL, por conseguinte, faz parte dessa nova cultura política que ressalta não só uma maior horizontalidade e descentralização dos modelos organizacionais, como também opera em espaços politizados além dos canais políticos tradicionais-institucionais. As ruas, as praças, os espaços públicos de discussão, como escolas e colégios, tornam-se o locus da práxis política. O processo de transcendência das formas de ação de uma organização como o MPL faz parte do próprio repertório de práticas do mesmo. O levante de junho e as redes que foram sendo construídas no Brasil retomaram “uma matriz mais libertária e autônoma, polêmica e complexa para o conjunto da esquerda brasileira”, onde emerge “um novo tipo de ação política viral, rizomática e difusa” (BRINGEL, 2013).

O fato das jornadas de junho terem sido avaliadas a partir da sua “espontaneidade” – onde fatores externos, como a repressão policial e o papel das redes sociais, ganharam um sobrepeso indevido em relação a fatores internos ao movimento, como o processo de articulação, organização e disseminação que começou a ser construído muito antes de 2013 – muito se deve à forma como os movimentos sociais são vistos por parte da esquerda tanto política quanto acadêmica. Zibechi, em outro texto, constata que não são poucos os dirigentes políticos e acadêmicos que criticam a fragmentação e dispersão que os movimentos sociais estão sofrendo. Além disso, “ambos os fatos são observados como problemas a superar através da centralização e da unificação” (ZIBECHI, 2007). Argumentamos que essa fragmentação e dispersão, todavia, fazem parte dessa nova cultura política e do novo repertório de ação, para o qual o Movimento Passe Livre se apresenta como exemplo.

Isto posto, não é de se surpreender que fatores externos tenham sido sobrevalorizados na compreensão das jornadas de junho; o caráter horizontal e descentralizado do MPL impossibilitou que alguns acadêmicos e militantes pudessem conferir o protagonismo apropriado ao Movimento na fomentação das manifestações multitudinárias, mesmo que este depois tenha sido superado por processos derivados. Concordamos com Zibechi (2007) que a criação e recriação dos laços sociais constituintes de um movimento não necessariamente necessitam de nenhum tipo de articulação voltada para a centralização ou para a unificação. A concepção de militância proposta pelo MPL caminha nesse sentido ao basear a sua ética na rejeição da separação entre “palavras e fatos […], entre a vida pessoal e a coletiva, e também entre quem toma as decisões e quem as executa, aspectos que marcham na contracorrente da cultura política hegemônica, mesmo nos partidos de esquerda” (ZIBECHI, 2013).

A incapacidade de conferir o devido lugar de destaque a um movimento horizontal e descentralizado vem da hegemonia de uma lógica analítica “estadocêntrica, que pressupõe a unidade-homogeneidade do social e, assim, dos sujeitos” (ZIBECHI, 2007). Considera-se que a regra do ser sujeito implica em algum grau de unidade, homogeneidade e não-fragmentação. As dificuldades interpretativas das práticas e dos sentidos referentes às jornadas de junho derivam da combinação desse viés analítico estadocentrista com a miopia do visível (onde são ignoradas as redes submersas que vêm sendo construídas há anos) e com a miopia da política (onde a análise é restrita apenas ao político-institucional, evitando assim a chamada “reinvenção da política”, ou seja, a busca de novos espaços para atuação política uma vez que o acesso aos canais tradicionais-institucionais são restritos à apenas uma parcela minoritária da população). Conforme afirma Zibechi, “tanto os partidos de esquerda como os acadêmicos interessados nos movimentos sociais seguem sustentando uma suposta centralidade da política, como se os movimentos não fossem políticos e como se a inexistência de um ‘plano detalhado’ e, por tanto, de uma direção, convertesse os movimentos em não-políticos” (ZIBECHI, 2007).

À guisa de conclusão

Torna-se necessário, portanto, mudar as formas através das quais analisamos e enfocamos as revoltas multitudinárias e as formas emergentes e descentralizadas de ação política no Brasil, de modo a permitir visualizar as invisibilidades e os lugares ocultos que constituem esses novos movimentos sociais e que escapam à conceptualização acadêmica, estadocentrista e unitária. Esses movimentos já demonstraram serem portadores de uma ampla potencialidade no referente à modificação do mundo social. Portanto, segundo Bringel, estamos diante de um grande desafio teórico e político, pois o cenário atual nos exige “adaptar e renovar nossas formas de luta e de interpretação das ações coletivas diante de atuações mais invisíveis, com maior protagonismo da agência individual, da configuração de novos atores, de militâncias múltiplas e organizações mais descentradas (conquanto não espontâneas) e de repertórios mais mediáticos e performáticos” (BRINGEL, 2013). Em vista disso, novos referenciais teóricos e metodológicos necessitam ser elaborados para dar conta da complexidade dos fenômenos que estão sendo construídos e que culminaram nas grandes revoltas das jornadas de junho que presenciamos país afora.

Notas
[1] O artigo de Javier Alejandro Lifschitz (2013) é um exemplo de argumentação que estabelece uma relação causal entre repressão policial e reação à repressão. Já os textos de José dos Santos e Valmaria Santos (2013) e Leonardo Sakamoto (2013) ilustram essa sobrevalorização do papel das redes sociais nas manifestações.
[2] Devido aos limites desse artigo, a trajetória história do Movimento Passe Livre não é amplamente debatida. Para uma maior compreensão desse processo, ver, além do trabalho de Zibechi, os textos de Leo Vinicius (2005), Lucas Legume e Mariana Toledo (2011), Adriana Saraiva (2013) e, por fim, um texto do próprio Movimento Passe Livre-SP (2013).
[3] Nesse sentido, assim como Lacerda e Peres (2014), também concordamos com José Arbex Jr. (2013) quando este afirma que as manifestações de junho já vinham se anunciado há tempos.
[4] Raúl Zibechi (2013) aponta a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT) como exemplos ilustrativos de modos de luta e organização, criadas após o fim da ditadura civil-militar, que não dão mais conta de responder a esses desafios.
[5] Entendo por repertórios como um conjunto de formas de ação coletiva familiares que estão disponíveis à disposição das pessoas ordinárias (ALONSO, 2012).
[6] Os partidos eram o Partido Operário Revolucionário (T-POR) e a Construção ao Socialismo (CAS).

Referências
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ARBEX JR., José. (2013), “Conjuntura no Brasil pode desembocar em crise revolucionária”. Viromundo, julho de 2013. Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2014.
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CARDOSO, Adalberto. (2013), “As jornadas de junho e a mercantilização da vida coletiva”. Revista Insight e Inteligência, ano XVI, jul-set 2013, pg. 23-30.
COLETIVO MARIA TONHA. (2013), “Ele ajudou a fundar o Movimento Passe Livre, entrevista com Marcelo Pomar”. Disponível aqui. Acesso em 12 de agosto de 2014.
CRUZ, Carolina & CUNHA, Leonardo Alves da. (2009), “Sobre os 5 anos das Revoltas da Catraca”. Disponível aqui. Acesso em 10 de agosto de 2014.
LACERDA, Renata & PERES, Thiago. (2014), “Jornadas de junho: explorando os sentidos da indignação social contemporânea no Brasil”. Revista Enfoques. Rio de Janeiro, v. 13, nº 1, pp. 43-72.
LEGUME, Lucas & TOLEDO, Mariana. (2011), “O Movimento Passe Livre São Paulo e a Tarifa Zero”. Disponível aqui. Acesso em 11 de agosto de 2014.
LIFSCHITZ, Javier Alejandro. (2013), “Sobre as manifestações de junho e suas máscaras”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. São Paulo, v. 6, nº 4, pp. 669-715.
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NASCIMENTO, Manoel. (2009), “Teses sobre a Revolta do Buzu”. Disponível aqui. Acesso em 12 de agosto de 2014.
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ZIBECHI, Raúl. (2007), Autonomías y emancipaciones, América Latina en movimiento. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.
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Sobre o autor
Gustavo Fernandes é mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é membro do coletivo de midiativismo Rede de Informações Anarquistas (RIA) e atua no Grupo de Educação Popular (GEP).

Sobre o artigo
O presente texto faz parte de um artigo maior apresentado no I Seminário Internacional Poder Popular na América Latina, um evento acadêmico-militante que aconteceu no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre os dias 25 e 28 de novembro de 2014.

Texto inicialmente publicado no Passa Palavra, podendo ser acessado aqui. A RIA agradece o apoio mútuo por parte deste Coletivo.

 

O perigo de ser mulher e negra na luta por direitos no Brasil

Apesar das transformações nas condições de vida e papel das mulheres em todo o mundo, em especial a partir dos anos de 1960, a mulher negra continua vivendo uma situação marcada pela dupla discriminação: ser mulher em uma sociedade machista, e ser negra numa sociedade racista (MUNANGA, 2006).

Ser mulher negra no Brasil significa constante perigo, principalmente na luta por direitos, contra o machismo, patriarcado, os recortes de classe e a opressão da mulher branca, presente cotidianamente, instituído, naturalizado, acordado. Ser mulher negra no Brasil é passar uma vida inteira tentando descobrir se você está sendo inferiorizada por ser mulher ou por ser negra, e no final percebe-se que por ambas. No Brasil o racismo não é explícito, devido a imposição de um flagelo histórico construído por uma elite branca, o mito da democracia racial. Construído apenas para ser enfiado goela abaixo e silenciar, distorcer e tornar mansos e passivos os que são discriminados, porque é mais importante combater a ideia de que racismo existe, do que combater propriamente o racismo.

Nesse contexto, ser mulher negra é viver uma negritude mutilada emocionalmente e fisicamente desde o nascer até a morte. A questão racial é tratada como mero elemento secundário, não sendo enfrentada com responsabilidade. Alimentando o silencioso acirramento, vivido atualmente nas ruas, faculdades, escolas, trabalho e redes sociais, crescendo de forma contundente e feroz, devido a força da opressão massificada contra os negros e negras. O Estado brasileiro, ao fingir que não vê tal situação, colabora amistosamente em suas instituições na manutenção dessas condições. Mantendo negras e negros como escravos modernos nos porões da sociedade, encarcerados em guetos, favelas e periferias sociais, a carne negra continua sendo vendida, destroçada e consumida de forma mais barata possível.

A carne mais barata do mercado sempre foi a carne negra, principalmente a carne da mulher negra. É a carne de todas as Thamires Fortunato, é a carne de todas as Miriam França. Essas mulheres-meninas negras carregam toda a ancestralidade mutilada e violada de quatrocentos anos de escravização do povo negro no Brasil. O que ambas têm em comum para estarem nesse texto? O fato de serem negras, mulheres de origem pobre. Ambas carregam em si toda carga simbólica que o Estado brasileiro sempre repudiou: a negritude. A grande massa populacional brasileira é negra, e isso o governo sempre lutou para eliminar, fomentando políticas de embranquecimento – é fato registrado nos anais da construção da sociedade brasileira.

Thamires sendo levada pela PM após ser brutalmente agredida, arrastada e ter suas roupas rasgadas.
Thamires sendo levada pela PM após ser brutalmente agredida, arrastada e ter suas roupas rasgadas.

Thamires Fortunato, estudante de filosofia da UFF, passou por uma repetição naturalizada cruelmente na história de ancestralidade negra no Brasil, agarrada brutalmente pela Polícia Militar como uma serva que não se sujeita aos poderes, mandos e desmandos dos senhores da Casa Grande. Foi violada física e emocionalmente – como indicativo de sua condição de negra e servir de exemplo de qual lugar na sociedade deveria ocupar. Thamires foi jogada ao chão, arrastada pelos cabelos, teve suas roupas rasgadas, seu corpo ferido, sua carne friccionada no solo por enormes homens ou melhor, capangas do Estado, que molestaram sua dignidade emocional e física. Qual o motivo? Ser negra e mulher na luta por direitos sociais que lhes são negados historicamente.

Não teve defesa, somente ataques. Apenas uma menina sem forças, abatida como caça, arrastada e dependurada como tecido esfarrapado para dentro de uma viatura cheia de homens. Foi ameaçada, socada na tentativa de quebrarem seus membros – tudo isso dito em alto som. Thamires estava sendo usada como objeto de exemplificação do que poderia ocorrer aos demais negros e negras que reagissem. Ah! A história se repete, lembrando que a corporação da Policia Militar tem em sua hierarquia Comandos Superiores que disseminam a ideologia Nazista pelos Quartéis. Creio que isso já amplia o quadro de compreensão da história atual do Brasil. Essa corajosa mulher/menina negra foi forte, lutou diante de tanta dor imposta, dores físicas e emocionais, que continuaram dentro de uma Delegacia misógina, machista e racista, ou seja, a senzala da modernidade. Thamires viu o tronco dos açoites, a chibata da modernidade. Sua carne foi a mais barata no dia 09 de Janeiro de 2015 na mão dos feitores.

A vivência de Thamires Fortunato vai de encontro ao de Miriam França, não havendo nenhuma coincidência, apenas fatos, ambas vítimas da violação, perseguição, massacre e expropriação pelo Estado brasileiro. É histórico no Brasil a polícia militar, o governo e a sociedade usarem sempre o artificio de jogar a culpa de suas mazelas no povo negro e negra, sentenciado e silenciado-os, para depois receber um julgamento e ter direito a uma investigação. É nessa ordem mesmo. Miriam foi encarcerada pelo simples fato de ser negra, sem provas de que tenha cometido algum delito – tendo seus direitos constitucionais vilipendiados pela magistratura racista do País.

Mirian França foi violada emocionalmente, humilhada e cerceada de seus direitos básicos de defesa – inocente até que se prove ao contrário. Ser negra ou negro no Brasil já os tornam culpados. Vejam que mesmo Mirian atingindo um elevado grau de estudo, estando em igualdade educativa em relação a inúmeras mulheres brancas, foi submetida a marginalização através dos códices racistas subliminares. A situação da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da sua realidade vivida no período de escravidão, com poucas mudanças, carregando as desvantagens do sistema injusto e racista do país, e as poucas que ascendem socialmente não conseguem, mesmo assim, romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial que se estruturam de forma velada. A jovem Miriam foi sentenciada pela polícia, sem julgamento e investigação, pela morte de Gaia uma turista italiana branca. Agora encontra-se em liberdade, graças à revogação de sua prisão. Porém, deverá permanecer no Ceará por 30 dias, tempo necessário para que, segundo declaração da polícia à imprensa, saia o resultado da perícia.

A luta pelo direito de existir, pelo respeito integral e o orgulho de sua negritude as tornam perigosas, indesejáveis e passiveis de serem eliminadas através de inúmeros artífices nas ruas desse país ainda escravocrata. A resistência cultural, social e emocional incomoda, como sempre, a elite branca, que sempre almejou ser “européia”. Mulheres Negras incomodam, porque gestam uma força contínua, suas vozes ecoam ao longo, seja baixo ou em alto bom som, não se rendem, não adormecem, não se dão por derrotadas, não conhecem o significado dessa palavra, são perigosas por que sua batalha é ancestral, nascem lutando e fortes como se soubessem sobre o que as aguardam. E certamente não se calarão, jamais irão se recuar, nunca tiveram opção e seguir em frente sempre foi a única condição.

Nota da R.I.A sobre as recentes questões políticas da mobilização contra o aumento das passagens no Rio de Janeiro

É com desalento que nós, enquanto rede midiativista livre e autônoma, vemos e vivenciamos as disputas egoicas que se desenrolam no campo político do Rio de Janeiro. Mesmo com a experiência das revoltas de 2013, onde tornou-se claro que somente a pressão popular nas ruas pode ser capaz de modificar nossa realidade, o que percebemos é a insistência de algumas organizações em se afirmarem como a voz máxima de um povo que mal sabe que as mesmas existem. O século XIX já se foi e aos poucos algumas nuances do passado vão se desvanecendo e dando espaço para novas formas de pensar, agir e, sobretudo, lutar. Afinal, é a luta política cotidiana por uma sociedade justa e livre que nos mantém vivas e vivos, a luta sem os ismos, em especial os ismos fora do lugar, importados de outros tempos e de outras realidades alheios ao contexto local de opressões. Reivindicamos, assim, a busca por uma construção coletiva da liberdade e não um direcionamento a ela, a luta que cada vez mais nos desapega de toda inércia social e que prossegue junto com os de baixo, porque somos os de baixo.

Mas é com prazer que ainda sentimos o ímpeto libertário batendo em nosso peito (e como bate!), suas utopias seguem alimentando corações que já não suportam mais os fracassos das políticas sectárias e do vanguardismo que busca medir quem entre nós é o mais e o menos revolucionário, o que os tornam cegos para as resistências efetivas que tomam lugar cotidianamente nas favelas, nas periferias e nas ruas de nossa sociedade. Cada vez mais essas organizações se distanciam da população, de quem vive na pele o dia-a-dia da exploração assalariada e da prisão social. Precisamos de uma nova arte para pessoas reais, e não insistir em seres fictícios que o imaginário vanguardista julga existir.

É nesse sentido que entendemos o midiativismo como ferramenta de potencialização de quem é silenciada e silenciado, de todas as pessoas cuja fala é abafada; entendemos o midiativismo como ferramenta de construção da liberdade, onde o indivíduo libertário se faz a partir de suas próprias escolhas e não como forma de condução das massas.

Repudiamos toda forma de verticalidade, toda forma de protagonismo vanguardista; repudiamos partidos políticos e seus métodos centralizadores; repudiamos o uso da mídia como forma de manipulação política, o desrespeito ideológico que reproduz formas sectárias que são análogas ao próprio modo de agir do capital; repudiamos o Capitalismo e o Estado, a perseguição política e a criminalização da pobreza, entendendo que a última é um dos grandes males sociais das últimas décadas, condição imperativa que nos inclina de coração e mente abertas a cada dia mais nos sacrificar pela luta libertária e libertadora.

Vemos com enorme tristeza alguns coletivos compactuando e reproduzindo calúnias infundadas contra movimentos que tocam importantes lutas populares, no caso, o Movimento Passe Livre do Rio de Janeiro, calúnias essas fabricadas pelas organizações sectárias e vanguardistas que denunciamos anteriormente. O espanto é perceber que a difamação do MPL-Rio segue lógica similar à forma como a mídia burguesa opera para desmobilizar e criminalizar as lutas populares. Pensam eles estar combatendo o governismo que se infiltra nos espaços de mobilização libertária, mas ao invés de boicotar essa invasão com base na construção organizacional autônoma e no debate político, preferem berrar aos microfones autoritarismos que pedem pela expulsão agressiva de pessoas em espaços que se pretendem abertos.

Lembramos que no I Encontro contra o Aumento da Passagem, alguns homens membros dessas organizações vanguardistas vociferaram agressivamente contra uma pessoa que, apesar de ser afiliada a um partido governista, era mulher. Não nos espanta o machismo contido nas ações de militantes que reproduzem práticas autoritárias. O agravante é que no raiar do dia, o papel do governismo de se infiltrar nas lutas populares com o intuito de desmobilizá-las acaba sendo efetuado por esses supostos revolucionários quando estes decidem caluniar e difamar aqueles com quem eles deveriam estar marchando ombro-a-ombro. Não bastasse a cooptação partidária, a criminalização política e a perseguição midiática, ainda temos que lidar com fogo amigo.

Estamos aqui para contribuir, criar e construir a descentralização dos meios de comunicação e informação para uma sociedade livre e para a autogestão socioeconômica. Priorizamos métodos que contemplem quem não é ouvido, não excluindo qualquer pessoa por divergências ideológicas, mas sim trabalhando de maneira fraternal, horizontal e mútua, desde que respeitadas os princípios básicos da luta libertária.

No mais, esperamos nos vermos nas ruas, junto à população. Nosso inimigo está do outro lado das barricadas!

p1060575            “A las barricadas! A las barricadas!”

Considerações acerca da primeira Escola de Rua em Santos, na União das comunidades da Alemoa (Ucom)

No dia 20 de dezembro de 2014 foi realizada a primeira Escola de Rua com projeção no bairro da Alemoa em Santos. Trata-se de um evento horizontal sem quaisquer vínculos com partidos políticos ou com o governo. A atividade é baseada na auto-gestão, na livre associação e no apoio mútuo (ideais libertários).

10859319_752171291536177_962037195_nComo o calor estava muito forte à tarde, de comum acordo decidimos deixar as atividades para o começo da noite. Por volta das 20:30 eu iniciei uma aula básica de geografia com um pequeno globo e uma lanterna, explicando os principais movimentos da Terra: movimento de rotação e o movimento de translação. As crianças prestaram atenção, sentaram ao redor de mim e ficaram extasiadas. Também surgiram muitas perguntas e muitas considerações sobre a geografia. A aula foi curta e algumas crianças ainda pediram que eu falasse mais sobre a geografia, mas como já era um pouco tarde, pedi para que eles procurassem um bom lugar para assistir ao curta O Reino Azul que pode ser visto no youtube.

10872382_752171254869514_1278530078_nApós o curta, Domingos Pardal Braz, que é professor de história, fez uma intervenção perguntando para as crianças e adolescentes sobre os temas tratados no curta e também distribuiu muitos doces para as crianças.

O amigo Rafael Pires foi o responsável por trazer o notebook, caixa de som, o projetor e o pano branco para a projeção e ele trouxe todo esse equipamento de ônibus, numa sacola e numa mochila, um verdadeiro ato de heroísmo, considerando como os ônibus da baixada santista sempre estão lotados e fora a caminhada que ele deu até à comunidade da Alemoa.

O outro filme tinha duração de uma hora e catorze minutos, desenho animado de bela computação gráfica contando a história do Brasil numa perspectiva vista pelos povos oprimidos dos índios, passando pela balaiada, pela ditadura militar e indo até um futuro distante que fala sobre o problema da água no Brasil. Penso que todos envolvidos saíram satisfeitos com o resultado.

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