Um diálogo com Noam Chomsky

Durante uma estada recente em Paris, o linguista estadunidense Chomsky fez uma palestra que depois de sua exposição inicial, o debate com a plateia proporcionou rica troca de ideias a respeito de questões da atualidade. A seguir, leia trechos desses diálogos:

Um participante se diz perplexo diante da falta de abordagem social nas atuais políticas econômicas europeias. Chomsky lhe propõe uma análise diferente da situação.

Na realidade, a política econômica europeia é norteada por um projeto social. Como todos os projetos sociais, aquele adotado pela Europa é concebido para favorecer certas pessoas em detrimento das outras. O próprio Martin Wolf1, economista liberal, observou essa situação: esse programa atende aos interesses dos bancos, mas é nocivo para as populações. Em um plano puramente econômico, ele desperta alguns questionamentos. Sabemos pouquíssimas coisas em relação à economia, mas ao menos conhecemos a lição de Keynes: quando a demanda está fraca e o setor privado não investe, o único meio para estimular o crescimento é a despesa pública. É preciso devolver dinamismo à economia, aceitar produzir um déficit temporário para que as pessoas possam voltar a trabalhar. É bom para elas, bom para a economia e, no final das contas, isso permite zerar o déficit inicial. Evidentemente, existe risco de inflação. Ora, os banqueiros não gostam da inflação. Eles querem reduzi-la o máximo possível, mesmo quando ela está muito fraca, como é o caso atualmente. Mesmo que isso implique reduzir o ritmo da economia e fazer a população sofrer. Mas, isso tudo constitui efetivamente um programa social. Para um país como a Grécia, outra solução seria recusar-se a pagar a dívida. Aliás, muitos utilizam a expressão “dívida odiosa” para demonstrar que ela não tem legitimidade alguma: não foi contraída pela população e o dinheiro foi pedido emprestado por uma pequena patota em proveito das pessoas mais ricas, que são justamente as que não pagam seus impostos. Logicamente, caberia a elas reembolsar a dívida.

Indagado a respeito da utilidade da violência na luta política, Chomsky responde analisando as motivações que embasam esse tipo de ação.

Vamos esquecer por um momento os princípios para nos concentrarmos na tática. Você deve optar por uma tática que tenha uma chance de dar certo, caso contrário, tudo o que fizer não passará de gesticulação. Ao procurar uma tática que permita alcançar um resultado, você não deve aceitar o terreno de batalha que o inimigo prefere. O poder estatal, por sua vez, adora a violência: dela, ele detém o monopólio. Pouco importa o grau de violência dos manifestantes: o Estado sempre os superará nesse quesito. É por essa razão que, ainda nos anos 1960, quando eu falava com os estudantes sobre militantismo, eu os aconselhava a não trajarem capacetes nas manifestações. É verdade, a polícia é violenta, mas ela o será mais ainda se você estiver usando um capacete. Se você se apresentar armado de um fuzil, eles virão com um tanque; e se você vier com um tanque, eles atacarão com um B52: é uma batalha que você irá forçosamente perder. Toda vez que você toma decisões táticas, deve perguntar a si mesmo: “Quem está tentando ajudar?”. Está querendo ficar com a consciência tranquila? Ou estará tentando ajudar pessoas, fazer algo por elas? A resposta conduz a opções táticas diferentes. Suponhamos que a questão seja a do boicote da Universidade de Haifa.2 Com ações desse tipo, você presenteia os extremistas. Eles dirão imediatamente, e com toda razão, que você é um perfeito hipócrita: “Por que não boicotam a Sorbonne, Harvard ou Oxford? Os países que abrigam esses centros estudantis estão envolvidos em atrocidades piores ainda! Então, por que boicotar a Universidade de Haifa?”. Portanto, esse é um presente oferecido aos extremistas que poderão com isso desacreditar o conteúdo ideológico do boicote. Ele pode deixar tranquila a consciência daqueles que o defendem, mas no final trará sérios prejuízos aos palestinos. Durante a guerra do Vietnã, chamou minha atenção o fato de os vietnamitas não aprovarem ações como a dos Weathermen.3 Tratava-se de jovens simpáticos, que eu admirava e dos quais me sentia próximo. A sua maneira de opor-se à guerra consistia em sair às ruas e quebrar vitrines. Os vietnamitas opunham-se com força a atos dessa natureza. Eles queriam sobreviver: desprezavam que estudantes americanos se divertissem dessa forma. Estes não demoraram a compreender que se manifestar nas ruas com cartazes para quebrar as vitrines fortalecia a causa daqueles que desejavam a guerra. Foi o que aconteceu. A tática que privilegia a boa consciência daquele que age, pode prejudicar as vítimas. Em contrapartida, os vietnamitas admiravam as manifestações silenciosas de mulheres que se recolhiam diante de túmulos. Para eles, esse era o tipo de atitude que nós deveríamos ter. É a mesma coisa nos dias de hoje: se quiser ajudar os palestinos, reflita a respeito das consequências da tática que irá adotar.

A respeito da fraqueza das mobilizações populares em torno de um programa de esquerda, Chomsky se refere ao movimento radical de direita “Tea Party4”, nos Estados Unidos.

Tendem a ridicularizar o movimento “Tea Party”, e muitas das coisas que lhe dizem respeito são mesmo ridículas. Mas essa gente levanta questões relevantes. É inútil contentar-se em ironizar o que dizem e fazem. Em relação aos seus líderes, talvez seja o caso: pode-se zombar de Sarah Palin, por exemplo. Mas as pessoas que foram atraídas por esse movimento sofreram muito ao longo dos últimos 30 anos e não compreendem necessariamente por quê. Se prestarmos atenção nos programas de rádio nos quais expressam suas opiniões, em geral ouviremos o seguinte: “Eu fiz tudo o que precisava. Sou um operário branco, um bom cristão. Servi meu país no exército. Fiz tudo o que esperavam de mim. Então, por que a minha vida está desmoronando? Por que estão transformando meu país? Por que deixam profanar os valores que tanto prezo? E por que não tenho trabalho enquanto os banqueiros não sabem mais o que fazer com os seus dólares?”. Estas são preocupações autênticas. Talvez sejam mal formuladas, mas são justificáveis. E de nada adianta fazer troça delas. Essas pessoas são precisamente aquelas que a esquerda deveria organizar. E não o faz.

Um participante critica Chomsky por ele postular, com frequência, que existe uma maneira racional de analisar as políticas, ao passo que não haveria nada de racional no comportamento israelense de multiplicar as colônias, inclusive em Jerusalém-Leste. Nada racional, tampouco, quando o governo americano apoia de fato uma ocupação, apesar de condená-la verbalmente em certas instâncias – atitude que só pode ser nociva para as suas relações com o mundo árabe.

O apoio de Washington a Israel é mesmo racional. Ele data de 1967, quando os Estados Unidos substituíram a França nesse papel. Na época, um conflito opunha entre si duas forças do mundo árabe: o fundamentalismo muçulmano, que os Estados Unidos apoiavam, e o nacionalismo laico, considerado como o principal inimigo das potências ocidentais. Esquematizando, a Arábia Saudita contra Nasser. Ora, Israel não apenas destruiu o nacionalismo laico como apoiou e consolidou o fundamentalismo muçulmano aliado dos Estados Unidos. Washington apoiou militarmente Israel; com isso, o Estado hebraico tornou-se mais ou menos sagrado, o que não era o caso anteriormente.

Em 1970, foi dado outro presente importante. Segundo o desejo dos Estados Unidos e de Israel, a Jordânia esmagou a resistência palestina no decorrer do que foi chamado de “Setembro Negro”. A Síria havia sinalizado que poderia intervir para defender os palestinos, e os Estados Unidos ainda estavam atolados no sudeste asiático. Eles recorreram, portanto, a Israel, pedindo-lhe para mobilizar suas tropas com o objetivo de impedir a Síria de intervir em defesa dos palestinos. A Síria recuou. A Jordânia, aliada dos Estados Unidos, consolidou seu reino, assim como a Arábia Saudita.

A estratégia estadunidense para as alianças periféricas no mundo árabe apoia-se em ditadores que controlam seu país e o petróleo. Eles devem ser protegidos da sua própria população. Para alcançar esse objetivo, Washington recorre a policiais, de preferência não árabes, já que eles são mais eficientes quando se trata de matar árabes. Inicialmente, a tal periferia era constituída pelo Irã, então governado pelo xá, pela Turquia e Paquistão. No começo dos anos 1970, Israel passou a integrar esse grupo, tornando-se membro da delegacia. Nixon os chamava de “os tiras na patrulha” (“cops on the beat”). Delegados locais, com uma sede da polícia em Washington: essa era a estrutura que tinha por missão controlar a região.

Em 1979, o xá foi derrubado e o Irã foi “perdido”. Novamente, o papel de Israel ganhou importância. Naquela época, Israel prestava diversos serviços pelo mundo afora. O Congresso americano impedia o apoio direto de Washington ao terrorismo de Estado no poder na Guatemala, na África do Sul e em outros lugares. Diante disso, os Estados Unidos recorreram a uma rede de países amigos que incluía Taiwan, Israel e Grã-Bretanha para fazer o trabalho sujo, por assim dizer.

Neste campo, Israel é muito eficiente. Com a sua rica sociedade industrial dotada de tecnologia de ponta, de mão de obra muito qualificada, o Estado hebraico atraiu investimentos de empresas americanas de alta tecnologia. Certas indústrias militares israelenses estabeleceram laços estreitos com os Estados Unidos, para onde transferiram parte da sua logística; os serviços de inteligência dos dois países trabalham de maneira harmoniosa desde os anos 1950. Para a indústria militar americana, Israel é uma dádiva financeira: quando os Estados Unidos gastam bilhões de dólares por ano para ajudar Tel Aviv, a Lockheed Martin embolsa parte dessas quantias. E quando a Lockheed Martin vende aviões militares de última geração para Israel, a Arábia Saudita aparece para dizer: “Nós também queremos comprá-los”. A Lockheed Martin vende então equipamentos de qualidade inferior para a Arábia Saudita, que nem sempre sabe utilizá-los, mas os compra às toneladas. Em suma, os lucros são duplicados.

E o que os palestinos têm para oferecer aos Estados Unidos? Eles são fracos, espalhados, não dispõem de recurso algum e, na prática, não contam com o apoio do mundo árabe. Os direitos são proporcionais ao poder. Israel é um país poderoso, o que lhe confere vantagens; portanto, ele goza de direitos. Os palestinos são fracos, não têm aliado algum; portanto, não gozam de direitos. Apoiar os poderosos além do seu próprio interesse corresponde a uma política perfeitamente racional. Pode-se rebater que o apoio dado a Israel provoca oposições e manifestações nos países árabes, mas isso nunca foi considerado problema. Contamos com as ditaduras para esmagar populações e lhes fornecemos as armas para alcançar esse objetivo. Você pode dizer que essa não é uma boa decisão, mas não que ela é irracional. Aliás, ela apresenta coerência perfeita com as políticas conduzidas em outros lugares, como na América Latina, sudeste asiático e outras partes do mundo. Às vezes as coisas acabam mal, pois o planejamento imperialista não é perfeito.

Hoje a situação é um pouco diferente, não por causa de Obama, mas sim porque Israel deu uma guinada muito à direita. Sopra nesse país um vento de paranoia, de ultranacionalismo, de histeria etc., que contribui para banalizar os atos destruidores e irracionais. Ora, os Estados Unidos passaram a ter exércitos no Iraque e no Afeganistão. Estes correm perigo por causa da irracionalidade das ações israelenses. O general David Petraeus alertou recentemente sobre o risco que a intransigência israelense faz pesar sobre as tropas estadunidenses. Não se pode mais excluir uma guinada da política norte-americana. Os Estados Unidos são um país muito ufanista; quando alguém se atreve a prejudicar nossos bravos soldados, somos bastante propensos a nos livrar dele. Portanto, Israel está jogando um jogo muito perigoso.

Avram Noam Chomsky é um linguista, filósofo, cientista cognitivo e anarquista, comentarista e ativista político norte-americano, reverenciado em âmbito acadêmico como “o pai da linguística moderna“, também é uma das mais renomadas figuras no campo da filosofia analítica.

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