A série de textos A Emergência Anarquista, da Liga Anarquista no Rio de Janeiro, pretende ser parte de um conjunto de estudos sobre teoria e prática do anarquismo contemporâneo. O segundo da série, “Anarquismo ou Anarquismos?”, apresentado abaixo e originalmente publicado no site da Liga aqui, reflete sobre a existência de diferentes tendências no movimento anarquista e da necessidade de diálogo e síntese entre essas tendências. A quem interessar, também publicamos anteriormente o primeiro texto, Introdução e Justificativa. É com prazer que a Rede de Informações Anarquistas continua divulgando esses ensaios conforme são produzidos. Viva a anarquia!
“O problema vital do homem, como de quer ser, cifra-se em aproveitar, no mundo, as energias favoráveis ao seu organismo e anular ou desviar as energias desfavoráveis.”
José Oiticica – A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos, 1947
“Queremos abolir a propriedade individual e a autoridade, isto é, expropriar os proprietários da terra e do capital, derrubar o governo, e colocar à disposição de todos a riqueza social, a fim de que todos possam viver a seu modo, sem outros limites senão aqueles impostos pelas necessidades, livre e voluntariamente reconhecidas e aceitas.”
Errico Malatesta – La Questione Sociale, 1899
A fim de iniciar nossa proposta de aproximação dos conceitos e práticas anarquistas talvez seja necessário refletir no primeiro passo a ser dado em relação ao que se entende por anarquismo. Nos remeteremos, portanto, ao problema que colocamos de forma resumida na justificativa deste estudo. A saber, se existe “O anarquismo” ou os anarquismos, e, caso exista UM anarquismo, nos aproximarmos de uma definição de ser este uma teoria político-econômica-social ou um conjunto de práticas que podem ser definidas como “cultura anarquista”.
Max Nettlau, que à primeira vista foi pioneiro em ocupar-se do anarquismo como objeto de análise historiográfica, tratou-o como ideia, a ideia de anarquia. Identificava-a enquanto mapeava o desenvolvimento das raízes desta ideia desde a civilização grega passando pelas comunas medievais, onde subsistia num certo pensamento livre que considerou como as “primeiras tentativas intelectuais e morais para progredir sem deuses tutelares e sem cadeias coercitivas”. Essa ideia é expressa, segundo Nettlau, em vários momentos da história da Europa Medieval e moderna como algo que vamos chamar aqui de uma “tensão libertária”. É essa tensão que deu fermento, de acordo com o autor, às inúmeras rebeliões camponesas facilmente verificáveis nos livros de história. Defendia em seu estudo que o “fermento libertário era bastante limitado e que os rebeldes de um dia encontravam-se no dia seguinte prisioneiros de uma nova autoridade”.
Para esse autor, como para os pesquisadores posteriores, foi apenas no fim do século XVIII e início do XIX que aquele fermento ganhou consistência suficiente para se apresentar como um anarquismo mais claramente elaborado. Entende-se que a ideia de anarquia era, portanto, uma constante tensão antiautoritária, nem sempre consistente o bastante para agitar a ordem social de forma significativa. Em Nettlau percebemos que, de forma embrionária, a ideia de anarquismo já carregava em sua gênese uma proposta de sociedade sem hierarquias e que estaria invariavelmente ligada a uma prática pedagógica de orientação libertária, elemento que nos fica claro quando esse autor resgata a “reforma da pedagógica” entrevista por Comenius, ainda no século XVII. Tal proposta objetivava uma sociedade igualitária e foi largamente estimulada no fim do século XVIII por pensadores iluministas, sobretudo da Suíça, Alemanha e posteriormente na França. O conjunto de ideias identificadas por Nettlau na gênese do anarquismo traziam consigo tendências a restringir ou negar frontalmente o papel do governo, a autoridade na educação, na vida sexual, na religião e nos negócios públicos.
Outro historiador, George Woodcock, apesar de omitir a referência direta a Nettlau, vai empreender sua pesquisa fazendo a divisão do anarquismo, de forma semelhante, em dois campos: o da “ideia” e o do “movimento”. Este autor vai utilizar o termo “doutrina” no prólogo de sua obra para referenciar o campo das ideias anarquistas o que nos dá uma pista de sua abordagem que, como as de outros pesquisadores, vai derivar da de Nettlau e consequentemente se aproximar muito de suas conclusões. Woodcock tenta definir e demarcar uma área para o pensamento anarquista e o movimento derivado das ideias. Para tal ele deixa a clara advertência aos pesquisadores de que “todos os anarquistas contestam a autoridade e muitos lutam contra ela. Mas isso não significa que todos aqueles que contestam a autoridade e lutam contra ela devam ser considerados anarquistas”. Seguindo essa ideia, Woodcock vai buscar nos argumentos dos ideólogos anarquistas e nas práticas do movimento anarquista elementos para demarcar a área do anarquismo para além das simplificações. Novamente encontramos referências ao projeto de sociedade anti-hierárquica e antiestatista intimamente ligado a uma proposta pedagógica, mas igualmente objetivada através do movimento de trabalhadores e, dentro desse movimento, da existência da disputa entre as tendências libertárias e autoritárias no protagonismo das ações. O elemento da luta trabalhista e posteriormente sindical, incluindo as disputas internas desta luta, se torna então um ponto importante e inseparável do anarquismo.
Tanto Nettlau quanto Woodcock concluem que é em Proudhon que identificamos o primeiro uso não pejorativo e a autodeterminação de si sob o termo anarquista. É precisamente na obra de Proudhon que podemos perceber de forma clara e consistente a proposta de sociedade e a ideia libertária de indivíduo que viaja através do tempo junto com a ideia de anarquia e suas práticas em movimento. Enquanto permanecermos junto à obra de Proudhon não poderemos identificar nada além do anarquismo, até então o único anarquismo autodeclarado. Não desejamos, como advertimos na justificativa deste texto, empreender um estudo sobre os clássicos teóricos. Nos limitaremos, portanto, a apanhar alguns conceitos para que nos sirvam de objetos consistentes de nossa análise.
Proudhon, em seu ponto de partida, fornece ao anarquismo a madura crítica à propriedade, ao estatismo, a democracia burguesa e contra toda a autoridade que em sua obra permanecerá como sinônimo de tirania. Proudhon não busca um sistema como a maioria dos pensadores sociais de sua época, contudo fornece um certo método crítico de análise conjuntural constante que vai orientar seu pensamento através de uma dialética muito distante do método desenvolvido por Marx ao inverter o método da dialética idealista e a metafísica hegeliana em materialismo histórico – o método Proudhoniano é o da dialética serial. Suas constantes mudanças de posição não são, portanto, recuos ou reflexos de alguma insegurança, mas são derivadas de sua própria concepção de conjunturas dinâmicas que exigem crítica constante e, por consequência, guinadas e alterações de trajetória a cada mudança substancial na conjuntura política. Essa prática de mover-se de acordo com a conjuntura é influência metodológica para toda a tradição da imprensa operária de tendência anarquista e suas analises conjunturais periódicas (quando não é possível ou viável o diário) a fim de fazer do debate político uma constante, mas sempre orientado pelo antiestatismo e pela luta dos explorados contra os exploradores. É ainda desse tipógrafo, oriundo da classe laboriosa, o germe conceitual do federalismo libertário e do mutualismo, ideias então destinadas a servir aos pequenos produtores franceses, em grande parte ainda vivendo sob o regime das pequenas oficinas, entre a condição do artesão e do proletariado moderno, conceitos que embora fossem destinados à aplicação em uma determinada conjuntura e pertencentes a um contexto histórico definido preservam atualidade e pertinência indiscutível para os dias de hoje.
Qualquer historiador consequente em seu ofício precisaria como espaço geográfico e temporal adequado para o amadurecimento do anarquismo, enquanto movimento, a Europa no segundo quartel do século XIX e seu caldo social no qual é verificável a articulação entre o processo de conformação de um jovem proletariado urbano e a tensão campesina constante desde o período medieval acirrada pela questão da propriedade privada na era moderna, elementos que se entrecruzam e estão intimamente ligados à consolidação da ascensão da burguesia ao poder político no Ocidente através do ciclo de revoluções e reações que varreriam o continente durante esse período.
Não é espantoso que, mesmo sem relação direta comprovada, tenhamos a efervescência de ideias libertárias muito semelhantes em diferentes países da Europa em um mesmo período, embora partindo de diferentes pontos, mas encontrando porto seguro nos mesmos conceitos gerais, frutos de um mesmo “espírito da época” ou de um mesmo “tom da época” para utilizar um conceito elaborado por Fourier. Tampouco espanta ao observador do processo histórico a consolidação prática e experimental – muito em função da sua curta duração – das anunciadas propostas pedagógicas de orientação libertária durante o século XIX e o primeiro quartel do século XX em regiões diferentes do mundo ocidental como França, Espanha, Alemanha e o “distante” Brasil.
Dessa forma, não é difícil encontrar semelhanças ou pontos pacíficos entre a crítica de Proudhon na França ou em seu exílio na Bélgica, da radical postura filosófica de Max Stirner em língua alemã. O sentimento antiautoritário é certamente o ponto que os identifica, embora Stirner não tenha se autodeclarado anarquista ou partidário da anarquia, não resta dúvidas de que estava imbuído de uma forte veia antiautoritária e antiestatista ao formular sua crítica. Tampouco é difícil encontrar a separação entre suas ideias. Se Proudhon esteve claramente empenhado na causa dos trabalhadores franceses e defendeu de determinado ângulo ideias socialistas mas antiestatistas, Stirner em sua crítica, antecipando o niilismo, nega também o socialismo e qualquer possibilidade de organização social, mesmo que fomentada e construída a partir das bases da classe laboriosa, seja das cidades, seja dos campos.
Percebemos aí não dois anarquismos, mas certamente duas correntes, uma de tendência socialista libertária a qual podemos aqui, assumindo os riscos da afirmativa, chamar de “anarquismo social” que tem seu prosseguimento no encadeamento de ideias e objetivos compartilhados e que vai ligar os proudhonianos da primeira internacional aos bakuninistas, coletivistas e subsequentemente aos anarco-comunistas, enquanto que o outro desenvolvimento de ideias – e por consequência, de práticas – segue uma linha que chamaremos de “anarquismo individualista” e estará presente com maior ou menor influência em práticas que vão desde as experiências comunitárias até grupos minoritários de tendência insurrecional e adeptos da “propaganda pelo ato”.
Assumindo novamente os riscos, podemos traçar um paralelo com um recorte mais atual e contemporâneo, onde o primeiro dá origem ao anarquismo dito “organizado” e o segundo àqueles que reivindicam o anarquismo como um “estilo de vida”. Não são dois anarquismos opostos, para nos mantermos atrelados ao nosso problema enunciado, já que ambos estão comprometidos com a luta antiautoritária e antiestatista, ambos apresentam propostas de autonomia dos indivíduos e coletividades, ambos reconhecem a necessidade de uma pedagogia e um processo educacional libertário e horizontal, além da necessidade de lutas sociais que levem a uma sociedade liberta, ambos consideram que é necessário fazer emergir uma prática libertária e fazer dos fins os meios, das teorias as práticas.
Se há alguma separação ou fratura entre estas duas tendências certamente não traz nenhum acréscimo significativo ao movimento anarquista, já que as práticas dos adeptos de uma corrente não afetam o desenvolvimento das práticas dos adeptos de outra corrente. Não passaria de um gasto desnecessário de energia a disputa entre essas duas correntes, o que se perde é a oportunidade de fortalecimento dos laços, as necessárias trocas de experiências práticas, cooperações e afetos, a solidariedade e o apoio entre agrupamentos por vezes próximos geograficamente e quase sempre alvo dos mesmos aparelhos coercitivos. Não parece mesmo necessária uma disputa para saber qual prática ou conceito é mais válido, eficaz ou aplicável, já que ambos são aplicáveis enquanto agem no mesmo campo, o campo do anarquismo. E, partindo de uma premissa banal, mas necessária, ambos não têm – ou não deveriam ter – interesse em disputas de poder no campo de ação libertária já que aqueles que se autodeterminam libertários não almejam o poder ou o controle que por fim se torna apenas mais uma forma de coerção e controle de uns sobre outros.
Não é nosso temor que não tenhamos chegado a conclusões definitivas já que a proposta é a de uma aproximação conceitual e de uma franca discussão em relação a questões práticas do anarquismo no tempo presente, com as quais não buscamos mais uma polêmica, mas, pelo contrário, a síntese das ideias e práticas correntes e anunciadas pelos anarquistas. Optamos, não sem recorrer a uma forma de arbítrio, ao afastamento da ideia da existência de mais de um anarquismo e a aceitação da ideia de que encontramos variadas correntes anarquistas mais marcadas pela segmentação – e não por uma dicotomia, contrariando a premissa bookchiniana – entre duas grandes correntes de pensamento anarquista: os partidários do “anarquismo social” e “organizado” e os do “anarquismo individualista” e de “estilo de vida “. Verificamos, ainda, que mesmo dentro destas duas grandes correntes existem variações saudáveis e necessárias para o desenvolvimento das práticas libertárias, não havendo ruptura desejável entre elas e tampouco espaço para que possam direcionar seus esforços uma contra a outra. Resta-nos em momento posterior discutir o problema do anarquismo como “cultura”, se é que este é mesmo um problema que nos aflija. Contudo, cremos necessário abordá-lo a fim de ensaiar a verificação da aplicabilidade do termo cultura para as práticas anarquistas.