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(Artigo) Transformar a desconfiança nos de cima no apoio mútuo entre os de baixo: a influência anarquista

Numa ressaca pós-eleitoral, nossos companheiros e companheiras discutem quem é mais libertário, aguerrido ou combativo. Dado que na nossa opinião, o subcomandante insurgente Moisés resolveu a questão sobre a articulação entre a questão eleitoral e a questão organizativa não vamos ocupar espaços para discutir essa questão. Não seremos mais um bando de anarquistas dispostos a entrar numa política de identidade – ou numa luta por reconhecimento – afirmando que o nosso não comparecimento às urnas implica que sejamos mais revolucionários do que vocês.

Isso não significa, de outra parte, que estejamos ignorando solenemente o espetáculo, ou melhor dizendo, a farsa eleitoral dos governantes. Parafraseando um sujeito que concorre em eleições, não tencionamos nos retirar para o mundo fantástico do anarquismo retorico que só existiria em nossas narrativas. Muito antes, estamos profundamente conscientes do que nos espera. Em outros lugares, discutimos sobre a presença massiva dos aparatos de segurança nos projetos de cidade apresentados pelos candidatos dessa última eleição – o que demonstra a tendência assustadora do acirramento do nosso já conhecido Estado policial. Dessa vez, decidimos nos deixar pautar, no âmbito da reflexão, pelo resultado das eleições para tecer algumas conjecturas que talvez nos levem para a necessidade de construir e, fundamentalmente, de apoiar ações que nos direcionam para muito longe da política eleitoral.

Em poucas palavras, queremos refletir aqui sobre um pequeno dado, mas de dimensões profundas. Referimo-nos a derrota acachapante do PMDB no município do Rio de Janeiro. Dizendo de forma direta, acreditamos que a derrota do partido e do projeto que vem assujeitando a cidade do Rio de Janeiro, ha quase uma década, tenha implicações políticas muito mais significativas do que uma simples “dança das cadeiras” ou um “arranca-rabo dos de cima”. Na nossa visão, é todo um projeto de conciliação que entra em ruína. Se o Partido dos Trabalhadores representou, no plano nacional, um projeto de conciliação de classe, a máquina do PMDB no Rio de Janeiro sempre representou e ainda representa um projeto de conciliação de máfias. Mas, desta vez, o Príncipe das Milícias não elegeu seu sucessor.

Talvez o Bispo entre no tabuleiro para manter as peças nos seus mesmíssimos lugares. Talvez não entre. Em todo caso, parece pouco provável que o arranjo que orquestrou a cidade possa ser reproduzido da mesma forma sob a batuta de outros governantes e, principalmente, de outras forças políticas. A verdade é que o modelo de conciliação de máfias e abafamento dos conflitos através da militarização – projeto no qual UPPs e máfia dos transportes e merenda representam verso e reverso – já começou a ruir e parece ruir ainda mais.

Celebremos, companheiras e companheiros. Mas com cautela. Se a federação das máfias aparentemente faliu, economicamente e politicamente, isso não significa que dos escombros do mundo velho renascera automaticamente o mundo novo. Profetas do fim do mundo, contenham a vossa sanha niilista; é de suma importância levar em consideração que o simples fato da derrocada do PMDB não leva automaticamente à desconstrução desse modelo de cidade. Mas pode levar.

Algumas organizações parecem já se dar conta dessa nova conjuntura e desenvolvem suas estratégias. No momento em que escrevemos essas linhas algumas facções investem pesado e sem hesitação na retomada de territórios colonizados pelas UPPs – como atestam os casos do Fallet, Fogueteiro e Coroa, na região central do Rio. Antevemos, assim, um momento de conflitos acirradíssimos no curto espaço de tempo. Conflitos tao acirrados que se tornará cada vez mais difícil desmentir, como fazem os governantes, o fato de que o Rio de Janeiro vive uma guerra, na qual as vítimas são estritamente os pobres.

No entanto, enquanto essas organizações, comandos ou facções se encarregam de abolir o Estado através de todos os meios necessários, não para proclamar a anarquia, mas antes para construir verdadeiros feudos; nós, anarquistas, infelizmente estamos nos perdendo em debates estéreis sobre quem é mais combativo do que quem, numa disputa identitária de luta por reconhecimento.

Deveríamos, antes, aproveitar a ocasião para nos organizarmos para apoiar a luta contra o genocídio do povo preto e periférico – genocídio este que constitui o verdadeiro projeto político dos governantes dessa cidade – numa luta que articula pautas bastante concretas, que vão desde a abolição das policias e desmilitarização do cotidiano até o fim da guerra às drogas (guerra aos pobres, na verdade) passando por um “basta!” na política de remoções e desalojos, sem deixar de lado a questão do transporte público e da mobilidade urbana. Respeitando o protagonismo de quem sofre na pele as opressões desse modelo de cidade, deveríamos aproveitar o refluxo da federação das milícias para construir o nosso federalismo libertário. Se a construção do poder popular sempre foi uma necessidade, cada vez mais ela se faz uma urgência na medida em que dos escombros do mundo velho ameaça nascer um mais velho ainda.

Mas não estamos sozinhos. Talvez quem tenha efetivamente destituído a cúpula da máfia da prefeitura não tenham sido os eleitores do candidato x ou do candidato y, mas os mais de quarenta por cento do eleitorado que se recusaram, pelas mais distintas razoes, a referendar esse projeto de poder. Não acreditamos que aqueles que não votaram, votaram em branco ou anularam o voto, sejam, na sua maioria, anarquistas ou libertários. Infelizmente, as vezes, a rejeição da política eleitoral vem acompanhada de uma rejeição completa da política – o que pode levar ao endosso de políticos neoliberais, que se legitimam através das narrativas da competência e da gestão, como atesta o caso de São Paulo. Isso para não dizer da rejeição fascistoide que espera pelo líder conquistador e pelo arrebatamento.

Assim, para que das ruínas da política representativa possa emergir, não o espectro do fascismo, mas a rosa negra da autogestão faz-se necessário, agora e sempre, produzir e fomentar os espaços de autogestão, de autodefesa e de formação política. Devemos abandonar o mito jusnaturalista e liberal, muitas vezes difundido no interior do anarquismo, que afirma que todo ser aspira a liberdade e sabe, de maneira espontânea, o que é melhor para si. Preferencias, desejos e aspirações, são matérias políticas e como tais devem ser elaboradas. O fracasso das instituições partidárias, enquanto veículos de ruptura, não pode obscurecer o fato de que a transformação da desconfiança nos de cima em confiança e apoio mutuo nos debaixo é produto da articulação política enquanto tal. Cabe, portanto, a anarquistas e toda sorte de militantes combativos revolucionários conspirar para que isso aconteça através de todos os meios necessários.

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