Resistência política, cultural e religiosa são os símbolos identitários mais fortes que as populações negras fora do continente africano conseguiram resguardar durante séculos de expropriação de suas vidas e força de trabalho escravo, a base de muito sangue, luta e persistência silenciosa/silenciada. Entre danças, cânticos, rodas, comida, sincretismos, termos e palavras, gestos e expressões. A mulher preta foi e ainda é o pilar dessa resistência. Essa mesma mulher foi a linha de manutenção dessa resistência no percurso entre a Casa Grande e a Senzala, exposta a servilhiência de todos os caprichos daqueles que compraram a sua vida, sua força física, seu sexo, objeto de uso e desuso amplo e irrestrito. O termo Resistência significa no sentido da palavra “força que se opõe a outra”. Mais que se opor, nesse sentido, falar da resistência da população negra e da própria mulher negra, nos dias atuais, é também refazer um caminho reflexivo sobre suas lutas, revoltas e movimentos políticos, a exemplo da luta de Palmares, dos Alfaiates e dos Malés.
Percebendo que no emaranhado das lutas de resistência há um complexo cultural contra-hegemônico, de identidades complexas e resistentes à escravidão, dominação política, física, mas também à dominação cultural. As manifestações culturais possuem significados importantes na constituição das identidades resistentes. Os negros nunca esqueceram suas origens de um passado de profunda organização social e política; é possível afirmar que as mulheres negras sempre estiveram ombro a ombro, ou quiçá na frente de batalha, na luta pela preservação da milenar historicidade marcada pela oralidade, corporeidade e signos culturais. Especialmente presentes nas religiões afro-brasileiras, a exemplo do candomblé, onde a mulher tem a primazia na administração do “espaço mítico, sagrado, religioso e social do terreiro, tendo em conta que o terreiro é, ao mesmo tempo, templo e espaço de socialização e hoje, reconhecidamente um lugar, historicamente, de resistência política!”(OLIVEIRA, 2003).
Em um dos primeiros textos produzidos no Brasil com enfoque nas mulheres negras, da socióloga Lélia Gonzalez (In. LUZ, 1982) mostrava que a mulher negra era “objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”. Também do ponto de vista dos próprios movimentos feministas, chamou atenção para a maneira como as mulheres negras eram praticamente excluídas dos textos e dos discursos desses movimentos sociais e políticos. Em sua conclusão, a autora destacou a resistência da mulher negra anônima, aquela que era o sustentáculo econômico, afetivo e moral de sua família.
No momento histórico atual, faz–se possível perceber que a mulher negra anônima continua sua luta de resistência silenciosa, mais forte, assim como o movimento feminista negro tem empreendido uma forte luta na quebra da histórica construção dos estereótipos e papéis sociais impostos as mulheres negras, geradas ao longo de sua escravização física e intelectual e mantida como mercadoria pelo sistema capitalista. A questão do racismo, a partir da óptica da elite branca e daqueles que foram alienados pelo discurso da mítica igualdade racial, levantam a bandeira de uma admiração notadamente falsa, pela mulher negra e suas qualidades, que ficam delimitadas aos interesses da exploração do mercado de consumo variado. Que mascara a realidade, que a objetifica sexualmente, midiaticamente, culturalmente, ou seja, a exotificação da mulher negra; exotificação é objetificação. A mulher negra ainda desbrava uma luta ancestral e silenciosa, para resistir e existir nos dias de hoje – dias da chamada Modernidade, que desenvolveu novas interfaces ilusórias de liberdades chamadas de morais, mas nunca antes tão sintonizadas com as condições impostas desde os primórdios de 400 anos atrás.
A mulher negra trava no silêncio imposto, em seu cotidiano, uma luta para além da submissão do patriarcado, desde sua infância até sua morte, sofre a degradação por razões de raça, gênero e inferiorizada, tendo a sexualidade, a afetividade, a imagem, a corporeidade, o intelecto, os signos e heranças culturais e familiares negados. Muitos do que estão a ler o texto poderão considerar um absurdo tais afirmações, imaginando: Como assim? Tudo isso negado? E o carnaval? Quando elas reinam absolutas! Esse é um dos cernes de inúmeras outras questões quanto a imagem, falas permitidas e livre desempenho dos papéis sociais; sendo vistas apenas como sempre foi construída secularmente, um objeto-produto de consumo e sua afirmação podendo ser feita apenas nos moldes permitidos pelos senhores da casa grande. O cotidiano da vida dessas mulheres, giram no eixo da imposto pela mercantilização, de serem apenas simplórios Ser-Objetos-Descartáveis, da hiperlincação dos tempos das “alcovas” aos dias de hoje, do corpo negro feito para o pecado, quente e luxurioso. Para a satisfação da libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções. Ou seja, se tornaram as vistas da sociedade o corpo coisificado. Enquanto os corpos das mulheres brancas se destinavam ao moralismo da pureza da mãe de família traçado por uma cultura religiosa judaica-cristã, o mesmo nunca incidiu sobre a mulher negra. O legado da escravidão é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram desta situação com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho, durante quatro séculos.
Negras escravizadas desde muito cedo foram forçadas a trabalhar para garantir o conforto das mulheres brancas europeias e/ou brancas – lavando, passando, cozinhando, cuidando dos filhos e servindo de ganhadeira. Observem que os maiores contingentes de empregadas desde sempre são negras (afrodescendentes) e quantas ainda são exploradas e violadas sexualmente nesses mesmos espaços que trabalham. Observem ainda que, o maior contingente de exploração sexual, são de meninas negras servidas nas metrópoles turísticas e no interior do país como objetos sexuais. E ainda há quem afirme que as relações entre senhores brancos e escravizadas negras foram consensuais, assim como, a reprodução desse discurso que alegam que elas as fazem por já nascerem com a mente voltada para isso, que seus hormônios as projetam para essa realidade e que somente não saem porque gostam de tais práticas, que são típicos dos negros.
A mulher negra já nasce dançando na roda da vida, mesmo sem ter consciência já nasce na roda do preconceito, da discriminação e marginalização silenciosa. Desde os primeiros passos na sociedade aprende que anjos negros não existem e quando de suas aparições são chamados de exóticos e curiosos. As curvas antes mesmo de darem seus primeiros sinais já lhes é sinalizado a exploração e expropriação do próprio corpo pelo capitalismo. Com frases do gênero nasceu com o samba no pé e no corpo todo, mas o que há por trás de tão singela expressão? Muito mais do que olhos se dão ao trabalho de ver e dos ouvidos a ouvirem. Assim como diversas frases e termos supliciados a essas mulheres e meninas, denotam obscuros significados implícitos nas entrelinhas das falas, gestos e olhares de uma sociedade profundamente racista, sim.
A mulher negra resiste dia após dia.