Entrevista com Angela Davis feita por Alice Harrold e Olivia BlairTexto. Publicado originalmente com o título: ‘Angela Davis on racismo, feminism and Beyoncé’ no site do jornal eastlondonlines.co.uk em 02/12/2014. Tradução de Liliane Gusmão e Patrícia Guedes para as Blogueiras Feministas.
Líder acadêmica radical e feminista, Professora Angela Davis, visitou Goldsmiths, e que obteve um grau honorário, na semana passada para renomeação de um edifício em honra do falecido Stuart Hall. Ela falou com Alice Harrold e Olivia Blair.
Angela Davis teve uma longa jornada desde sua infância de forma segregada em Birmingham, Alabama, passou um período nos “10 mais procurados do FBI”, para se tornar um dos ícones do movimentos de direitos civis e uma respeitada acadêmica e autora.
Aproveito esse espaço para falar da mulher favelada, desta que serve e faz a cidade funcionar todos os dias. É esta mulher favelada que muitas das vezes não tem nome, nem sobrenome e não mora em lugar nenhum. Hoje, ela está aqui exigindo o seu direito de ser mulher, de que alguém ouça o seu grito de socorro!
Tal mulher é, em sua maioria, nordestina, negra, indígena, é parte deste povo que está morrendo dia a dia. Digo, dia a dia, porque é sua casa que há mais de cem anos é removida nesta cidade maravilhosa, é o seu filho que há um século está sendo assassinado por causa da criminalização da pobreza. É ela, os seus filhos e seus familiares que não têm e nunca tiveram o direito de estudar, de ter o direito à saúde, ao trabalho digno e até o direito de circular a cidade, a não ser que seja para trabalhar.
Pelo motivo desta mulher morar na favela, ela nem é vista como mulher, como cidadã, ela é apenas “fábrica de produzir marginal”, como disse o ex-governador Sergio Cabral em uma entrevista. A cultura desta mulher, a identidade, a forma dela falar e até as suas roupas são consideradas feias, erradas, são desvalorizadas por toda a sociedade.
Imaginem o que é não ser considerada parte desta cidade apenas por morar na favela? Ter que se defender todos os dias quando você atravessa os muros visíveis e invisíveis da favela? Ter que dizer que você tem cultura sim, que você é parte da cidade e não margem, que você e toda a sua ‘comunidade’ não é criminosa e sim criminalizada, que você e todos os que fazem parte desta tão grande família favelada não é violenta e sim violentada há mais de cem anos.
Lembrando que esta mulher existe! No entanto, ela deve ser ouvida, não mais lavar sangue de seus filhos, não mais chorar e se preocupar com seus filhos a cada vez que a sua favela é invadida por caveirões. Ela merece que o seu filho tenha uma educação de qualidade, ela deve ter um atendimento digno em um hospital público, ela deve ser respeitada na rua, no trabalho, no ônibus, no metrô, em qualquer espaço.
É 2015 e ainda lutamos por direitos básicas porque muitas de nós estão morrendo, sendo violentadas, espancadas, assassinadas apenas pelo fato de sermos mulheres. O Machismo mata, ele sempre matou. É, por isso, que nós mulheres temos que exigir o nosso espaço em qualquer parte da cidade. Tirar o lugar do homem que sempre nos calou, que sempre matou suas companheiras, que não respeita quando a mulher anda na rua, que não ouve quando ela quer gritar e exigir o que é seu!
Esta mulher favelada e todas as outras mulheres vão seguir falando, escrevendo, gritando e exigindo cada dia o seu direito de existir, de andar, de circular a cidade, de viver!
Nós somos parte da cidade, nós existimos!
Por Gizele Martins, jornalista, moradora e comunicadora do Conjunto de Favelas da Maré.
Resistência política, cultural e religiosa são os símbolos identitários mais fortes que as populações negras fora do continente africano conseguiram resguardar durante séculos de expropriação de suas vidas e força de trabalho escravo, a base de muito sangue, luta e persistência silenciosa/silenciada. Entre danças, cânticos, rodas, comida, sincretismos, termos e palavras, gestos e expressões. A mulher preta foi e ainda é o pilar dessa resistência. Essa mesma mulher foi a linha de manutenção dessa resistência no percurso entre a Casa Grande e a Senzala, exposta a servilhiência de todos os caprichos daqueles que compraram a sua vida, sua força física, seu sexo, objeto de uso e desuso amplo e irrestrito. O termo Resistência significa no sentido da palavra “força que se opõe a outra”. Mais que se opor, nesse sentido, falar da resistência da população negra e da própria mulher negra, nos dias atuais, é também refazer um caminho reflexivo sobre suas lutas, revoltas e movimentos políticos, a exemplo da luta de Palmares, dos Alfaiates e dos Malés.
Percebendo que no emaranhado das lutas de resistência há um complexo cultural contra-hegemônico, de identidades complexas e resistentes à escravidão, dominação política, física, mas também à dominação cultural. As manifestações culturais possuem significados importantes na constituição das identidades resistentes. Os negros nunca esqueceram suas origens de um passado de profunda organização social e política; é possível afirmar que as mulheres negras sempre estiveram ombro a ombro, ou quiçá na frente de batalha, na luta pela preservação da milenar historicidade marcada pela oralidade, corporeidade e signos culturais. Especialmente presentes nas religiões afro-brasileiras, a exemplo do candomblé, onde a mulher tem a primazia na administração do “espaço mítico, sagrado, religioso e social do terreiro, tendo em conta que o terreiro é, ao mesmo tempo, templo e espaço de socialização e hoje, reconhecidamente um lugar, historicamente, de resistência política!”(OLIVEIRA, 2003).
Em um dos primeiros textos produzidos no Brasil com enfoque nas mulheres negras, da socióloga Lélia Gonzalez (In. LUZ, 1982) mostrava que a mulher negra era “objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”. Também do ponto de vista dos próprios movimentos feministas, chamou atenção para a maneira como as mulheres negras eram praticamente excluídas dos textos e dos discursos desses movimentos sociais e políticos. Em sua conclusão, a autora destacou a resistência da mulher negra anônima, aquela que era o sustentáculo econômico, afetivo e moral de sua família.
No momento histórico atual, faz–se possível perceber que a mulher negra anônima continua sua luta de resistência silenciosa, mais forte, assim como o movimento feminista negro tem empreendido uma forte luta na quebra da histórica construção dos estereótipos e papéis sociais impostos as mulheres negras, geradas ao longo de sua escravização física e intelectual e mantida como mercadoria pelo sistema capitalista. A questão do racismo, a partir da óptica da elite branca e daqueles que foram alienados pelo discurso da mítica igualdade racial, levantam a bandeira de uma admiração notadamente falsa, pela mulher negra e suas qualidades, que ficam delimitadas aos interesses da exploração do mercado de consumo variado. Que mascara a realidade, que a objetifica sexualmente, midiaticamente, culturalmente, ou seja, a exotificação da mulher negra; exotificação é objetificação. A mulher negra ainda desbrava uma luta ancestral e silenciosa, para resistir e existir nos dias de hoje – dias da chamada Modernidade, que desenvolveu novas interfaces ilusórias de liberdades chamadas de morais, mas nunca antes tão sintonizadas com as condições impostas desde os primórdios de 400 anos atrás.
A mulher negra trava no silêncio imposto, em seu cotidiano, uma luta para além da submissão do patriarcado, desde sua infância até sua morte, sofre a degradação por razões de raça, gênero e inferiorizada, tendo a sexualidade, a afetividade, a imagem, a corporeidade, o intelecto, os signos e heranças culturais e familiares negados. Muitos do que estão a ler o texto poderão considerar um absurdo tais afirmações, imaginando: Como assim? Tudo isso negado? E o carnaval? Quando elas reinam absolutas! Esse é um dos cernes de inúmeras outras questões quanto a imagem, falas permitidas e livre desempenho dos papéis sociais; sendo vistas apenas como sempre foi construída secularmente, um objeto-produto de consumo e sua afirmação podendo ser feita apenas nos moldes permitidos pelos senhores da casa grande. O cotidiano da vida dessas mulheres, giram no eixo da imposto pela mercantilização, de serem apenas simplórios Ser-Objetos-Descartáveis, da hiperlincação dos tempos das “alcovas” aos dias de hoje, do corpo negro feito para o pecado, quente e luxurioso. Para a satisfação da libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções. Ou seja, se tornaram as vistas da sociedade o corpo coisificado. Enquanto os corpos das mulheres brancas se destinavam ao moralismo da pureza da mãe de família traçado por uma cultura religiosa judaica-cristã, o mesmo nunca incidiu sobre a mulher negra. O legado da escravidão é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram desta situação com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho, durante quatro séculos.
Negras escravizadas desde muito cedo foram forçadas a trabalhar para garantir o conforto das mulheres brancas europeias e/ou brancas – lavando, passando, cozinhando, cuidando dos filhos e servindo de ganhadeira. Observem que os maiores contingentes de empregadas desde sempre são negras (afrodescendentes) e quantas ainda são exploradas e violadas sexualmente nesses mesmos espaços que trabalham. Observem ainda que, o maior contingente de exploração sexual, são de meninas negras servidas nas metrópoles turísticas e no interior do país como objetos sexuais. E ainda há quem afirme que as relações entre senhores brancos e escravizadas negras foram consensuais, assim como, a reprodução desse discurso que alegam que elas as fazem por já nascerem com a mente voltada para isso, que seus hormônios as projetam para essa realidade e que somente não saem porque gostam de tais práticas, que são típicos dos negros.
A mulher negra já nasce dançando na roda da vida, mesmo sem ter consciência já nasce na roda do preconceito, da discriminação e marginalização silenciosa. Desde os primeiros passos na sociedade aprende que anjos negros não existem e quando de suas aparições são chamados de exóticos e curiosos. As curvas antes mesmo de darem seus primeiros sinais já lhes é sinalizado a exploração e expropriação do próprio corpo pelo capitalismo. Com frases do gênero nasceu com o samba no pé e no corpo todo, mas o que há por trás de tão singela expressão? Muito mais do que olhos se dão ao trabalho de ver e dos ouvidos a ouvirem. Assim como diversas frases e termos supliciados a essas mulheres e meninas, denotam obscuros significados implícitos nas entrelinhas das falas, gestos e olhares de uma sociedade profundamente racista, sim.
Apesar das transformações nas condições de vida e papel das mulheres em todo o mundo, em especial a partir dos anos de 1960, a mulher negra continua vivendo uma situação marcada pela dupla discriminação: ser mulher em uma sociedade machista, e ser negra numa sociedade racista (MUNANGA, 2006).
Ser mulher negra no Brasil significa constante perigo, principalmente na luta por direitos, contra o machismo, patriarcado, os recortes de classe e a opressão da mulher branca, presente cotidianamente, instituído, naturalizado, acordado. Ser mulher negra no Brasil é passar uma vida inteira tentando descobrir se você está sendo inferiorizada por ser mulher ou por ser negra, e no final percebe-se que por ambas. No Brasil o racismo não é explícito, devido a imposição de um flagelo histórico construído por uma elite branca, o mito da democracia racial. Construído apenas para ser enfiado goela abaixo e silenciar, distorcer e tornar mansos e passivos os que são discriminados, porque é mais importante combater a ideia de que racismo existe, do que combater propriamente o racismo.
Nesse contexto, ser mulher negra é viver uma negritude mutilada emocionalmente e fisicamente desde o nascer até a morte. A questão racial é tratada como mero elemento secundário, não sendo enfrentada com responsabilidade. Alimentando o silencioso acirramento, vivido atualmente nas ruas, faculdades, escolas, trabalho e redes sociais, crescendo de forma contundente e feroz, devido a força da opressão massificada contra os negros e negras. O Estado brasileiro, ao fingir que não vê tal situação, colabora amistosamente em suas instituições na manutenção dessas condições. Mantendo negras e negros como escravos modernos nos porões da sociedade, encarcerados em guetos, favelas e periferias sociais, a carne negra continua sendo vendida, destroçada e consumida de forma mais barata possível.
A carne mais barata do mercado sempre foi a carne negra, principalmente a carne da mulher negra. É a carne de todas as Thamires Fortunato, é a carne de todas as Miriam França. Essas mulheres-meninas negras carregam toda a ancestralidade mutilada e violada de quatrocentos anos de escravização do povo negro no Brasil. O que ambas têm em comum para estarem nesse texto? O fato de serem negras, mulheres de origem pobre. Ambas carregam em si toda carga simbólica que o Estado brasileiro sempre repudiou: a negritude. A grande massa populacional brasileira é negra, e isso o governo sempre lutou para eliminar, fomentando políticas de embranquecimento – é fato registrado nos anais da construção da sociedade brasileira.
Thamires Fortunato, estudante de filosofia da UFF, passou por uma repetição naturalizada cruelmente na história de ancestralidade negra no Brasil, agarrada brutalmente pela Polícia Militar como uma serva que não se sujeita aos poderes, mandos e desmandos dos senhores da Casa Grande. Foi violada física e emocionalmente – como indicativo de sua condição de negra e servir de exemplo de qual lugar na sociedade deveria ocupar. Thamires foi jogada ao chão, arrastada pelos cabelos, teve suas roupas rasgadas, seu corpo ferido, sua carne friccionada no solo por enormes homens ou melhor, capangas do Estado, que molestaram sua dignidade emocional e física. Qual o motivo? Ser negra e mulher na luta por direitos sociais que lhes são negados historicamente.
Não teve defesa, somente ataques. Apenas uma menina sem forças, abatida como caça, arrastada e dependurada como tecido esfarrapado para dentro de uma viatura cheia de homens. Foi ameaçada, socada na tentativa de quebrarem seus membros – tudo isso dito em alto som. Thamires estava sendo usada como objeto de exemplificação do que poderia ocorrer aos demais negros e negras que reagissem. Ah! A história se repete, lembrando que a corporação da Policia Militar tem em sua hierarquia Comandos Superiores que disseminam a ideologia Nazista pelos Quartéis. Creio que isso já amplia o quadro de compreensão da história atual do Brasil. Essa corajosa mulher/menina negra foi forte, lutou diante de tanta dor imposta, dores físicas e emocionais, que continuaram dentro de uma Delegacia misógina, machista e racista, ou seja, a senzala da modernidade. Thamires viu o tronco dos açoites, a chibata da modernidade. Sua carne foi a mais barata no dia 09 de Janeiro de 2015 na mão dos feitores.
A vivência de Thamires Fortunato vai de encontro ao de Miriam França, não havendo nenhuma coincidência, apenas fatos, ambas vítimas da violação, perseguição, massacre e expropriação pelo Estado brasileiro. É histórico no Brasil a polícia militar, o governo e a sociedade usarem sempre o artificio de jogar a culpa de suas mazelas no povo negro e negra, sentenciado e silenciado-os, para depois receber um julgamento e ter direito a uma investigação. É nessa ordem mesmo. Miriam foi encarcerada pelo simples fato de ser negra, sem provas de que tenha cometido algum delito – tendo seus direitos constitucionais vilipendiados pela magistratura racista do País.
Mirian França foi violada emocionalmente, humilhada e cerceada de seus direitos básicos de defesa – inocente até que se prove ao contrário. Ser negra ou negro no Brasil já os tornam culpados. Vejam que mesmo Mirian atingindo um elevado grau de estudo, estando em igualdade educativa em relação a inúmeras mulheres brancas, foi submetida a marginalização através dos códices racistas subliminares. A situação da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da sua realidade vivida no período de escravidão, com poucas mudanças, carregando as desvantagens do sistema injusto e racista do país, e as poucas que ascendem socialmente não conseguem, mesmo assim, romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial que se estruturam de forma velada. A jovem Miriam foi sentenciada pela polícia, sem julgamento e investigação, pela morte de Gaia uma turista italiana branca. Agora encontra-se em liberdade, graças à revogação de sua prisão. Porém, deverá permanecer no Ceará por 30 dias, tempo necessário para que, segundo declaração da polícia à imprensa, saia o resultado da perícia.
A luta pelo direito de existir, pelo respeito integral e o orgulho de sua negritude as tornam perigosas, indesejáveis e passiveis de serem eliminadas através de inúmeros artífices nas ruas desse país ainda escravocrata. A resistência cultural, social e emocional incomoda, como sempre, a elite branca, que sempre almejou ser “européia”. Mulheres Negras incomodam, porque gestam uma força contínua, suas vozes ecoam ao longo, seja baixo ou em alto bom som, não se rendem, não adormecem, não se dão por derrotadas, não conhecem o significado dessa palavra, são perigosas por que sua batalha é ancestral, nascem lutando e fortes como se soubessem sobre o que as aguardam. E certamente não se calarão, jamais irão se recuar, nunca tiveram opção e seguir em frente sempre foi a única condição.