A Rede de Informações Anarquistas abre uma seção de artigos e escritos, alguns traduzidos, outros produzidos por colaboradores, sobre a temática da luta antirracista e sua relação com o anarquismo, ou o Anarquismo Negro, por assim dizer, termo que ganhou força nos Estados Unidos devido a militância de pessoas negras, algumas ex-Panteras Negras, no meio libertário. Acreditamos ser um assunto a nós caro, pois o racismo foi historicamente tratado como uma questão secundária pela teoria e prática de esquerda, um equívoco do qual o movimento anarquista não escapou.
Tratar desse problema é, de certa forma, atualizar o anarquismo para as nossas realidades e temporalidades, para a favela e para o quilombo. O desafio diante de nós é árduo, pois devemos evitar naturalizações, etnocentrismos e colonialismos, molduras que impossibilitam a construção de um movimento social palpável de caráter combativo e libertador dentro de nossos contextos regionais nos quais questões locais, identitárias e culturais, são tão importantes quanto a tradicional luta global de trabalhadores e trabalhadoras contra o capital.
Desse modo, começamos com a tradução de um relato sincero e provocativo do escritor anarquista Lorenzo Kom’boa Ervin, ex-membro do Panteras Negras, e originalmente publicado em inglês no primeiro exemplar do Jornal da Anarquia e da Revolução Negra. Lorenzo discorre sobre as deficiências do movimento anarquista estadunidense no tocante à luta contra o racismo nesse país, trazendo algumas questões pertinentes para a construção de mobilizações antirracistas no seio do movimento anarquista brasileiro. Sem mais delongas, segue o texto.
FALANDO DE ANARQUISMO, RACISMO E LIBERTAÇÃO NEGRA
Por Lorenzo Kom’boa Ervin
Essa é a primeira edição do Journal of Anarchy and the Black Revolution (Jornal da Anarquia e da Revolução Negra) e apesar de eu achar que não vai ser o último, não sei que forma e contorno que o jornal vai tomar daqui em diante. Seu futuro dependerá amplamente da natureza da luta negra anti-autoritária que está sendo fermentada e desenvolvida em nossas comunidades. Nós não sabemos precisamente como será nossa relação com o movimento anarquista estadunidense – se será fraterna, hostil ou cautelosa.
Deve ser claro que um movimento que é todo branco, de classe-média, egocêntrico e ingênuo não é um com o qual podemos nos unir. Além disso, trate-se de um movimento o qual pode fazer muito pouco por contra própria, muito menos pela nossa luta. Então é o momento de uma conversa franca com o anarquismo se quisermos avançar da onde estamos para a possibilidade real de uma revolução social.
Por mais de 15 anos, desde que eu me iniciei no assim chamado movimento anarquista estadunidense, tenho estado em conflito com o mesmo. Venho continuamente apontado em meus textos e artigos em publicações anarquistas, apresentações orais e conversas pessoais que o cenário anarquista nos Estados Unidos não é o que deveria ser para ser levado a sério. Eu duvido até mesmo que trata-se de um movimento social propriamente dito, e sim uma cena de contra-cultura tocada por uma juventude branca.
Não sou o primeiro a reconhecer isso. Várias outras pessoas anarquistas negras e não-brancas com as quais tenho conversado como Juliana em Minneapolis, Greg em Seattle, Barbara em Nova Iorque, Ojore em Nova Jersey, Shawn em Massachusetts e outras vêm reconhecendo tal fato. No mesmo sentido, vários ativistas negros radiciais e comunitários que podem se interessar pelo anarquismo são repelidos pela cena majoritariamente branca e de classe-média. Quem pode culpá-los? O movimento anarquista possui algumas das piores políticas na questão da classe e da raça nessa sociedade e nem mesmo simulam estar interessado com as condições das massas negras oprimidas.
Sempre que tento chamar por reformas dentro do próprio movimento anarquismo, como diversificação racial e cultural, recrutamento de mais pessoas negras e do terceiro mundo, construção de um movimento antirracista alternativo que venha desafiar a identidade branca assim como a opressão de pessoas não-brancas, venho encontrando resistências por anarquistas “puristas” e radicais brancas dentro da cena. Eu lutei contra o Industrial Workers of the World (Trabalhadores Industriais do Mundo), contra a Social Revolutionary Anarchist Federation (Federação Social Revolucionária Anarquista) e outros grupos anarquistas dos Estados Unidos na década de 1970 quando me juntei à ao cenário anarquista. Recentemente passei pela mesma luta com um grupo chamado Love and Rage Revolutionary Anarchist Federation (Federação Revolucionária Anarquista Amor e Ódio) que tem a sua sede em Nova Iorque. Então não se trata de algo recente – isso vem ocorrendo por anos e anos!
Purismo Anarquista e Supremacia Branca
A questão então surge: estão os anarquistas deliberadamente construindo um movimento branco, questão a qual denomino como problemática dos “direitos brancos” que apenas a refinada classe-média radical está interessada? Esse é o caso mesmo quando a maioria dessas pessoas vivem em cidades cuja população é majoritariamente negra como Detroit, Oakland, Atlanta, Philadelphia e outras. Elas vivem em guetos anarquistas e olham para a comunidade negra que os circundam com uma hostilidade desconfiada e muda. Pode esse tipo de movimento trabalhar em prol da revolução social quando, no final dessa década, está previsto que metade da nação estadunidense será composta por pessoas não-brancas? Eu duvido!
Mesmo o Partido Republicano reconhece que não pode criar qualquer esperança de construir uma coligação governamental capitalista sem a participação da população não-branca, então o que diabos está errado com esses anarquistas?
O purismo anarquista é uma forma de conformidade ideológica, um método de manter os ideais anarquistas “puros” e de prevenir a emergência de qualquer movimento alternativo que violem os princípios cardinais do pensamento e da prática anarquista europeia tradicional. Tal ferramenta também serve para assegurar que apenas pessoas brancas vão definir e continuar a dominar a teoria anarquista e que apenas essas pessoas vão ocupar as fileiras do movimento.
Movimentos emergentes nas comunidades negras e hispânicas, os quais são influenciados pelo nacionalismo revolucionário e pelo núcleo anti-autoritário do anarquismo, estariam sendo denunciados como “não sendo verdadeiramente anarquista”, assim negado qualquer tipo de apoio. Eu presenciei isso sendo realizado historicamente – como é o caso do Student Non-Violent Coordinating Committee (Comitê Coordenador de Estudantes Pacíficos) na década de 1960; da Martin Sostre (e de mim mesmo) na década de 1970; do MOVE nos anos 80, e é algo que acontece até o presente dia. Sem fracassar, essa é uma forma de manter o movimento “em seu lugar” [e branco]. Contudo, também acaba por se transformar em uma camisa-de-força ideológica que o separa dos eventos sociais que ocorrem fora da comunidade branca radical, onde o mundo real e concreto acontece; como consequência, essas práticas colaboram com a marginalização do anarquismo quando o movimento demanda conformidade com o catecismo que Bakunin e Kropotkin escreveram há 100 anos atrás. Como que isso pode ser diferente do marxismo?
Também há a questão do elitismo e racismo desses anarquistas, como é o caso do grupo Love and Rage, que acreditam que eles podem pensar e falar pelos revolucionários e revolucionárias negras e pelas comunidades da onde estes ativistas são provenientes. Essas pessoas são de lares privilegiados que deixaram suas casas para brincarem de revolucionários malvados e fingirem ser pobres. A verdade é que um par de coturnos, calças rasgadas e camisetas sujas não fazem de uma pessoa alguém pobre ou um especialista em políticas raciais estadunidenses. Isso não é nada além de ação missionária para essas pessoas. Elas podem ter modificado suas atitudes; continuam sendo arrogantes doutrinários e condescendentes ao máximo. Elas podem achar que possuem a resposta e que todo mundo, especialmente pessoas negras, deve segui-los para a Terra Prometida. Apenas essas pessoas são qualificadas para falar sobre as questões de raça e classe. Elas sabem de tudo!
Radicais brancos como esses realmente me cansam. Por conta disso apenas um movimento egocêntrico e arrogante vai surgir com esse tipo de ética social dominante no centro do grupo.
Mas há um outro tipo de radical branco dentro do movimento anarquista que precisa ser combatido. Esse é o tipo que alega desconhecer qualquer diferença entre as condições dos trabalhadores e trabalhadoras negras e brancas e argumenta que “nós estamos todos no mesmo barco”. Esse tipo aparenta não enxergar qualquer forma de opressão racial na sociedade estadunidense e que pessoas negras e não-brancas não merecem qualquer “tratamento especial”. Esse tipo de pessoa é frequentemente encontrada no movimento anarco-sindicalista nos Estados Unidos. Trata-se de fato de uma tendência antiga, uma posição economicista, que sacrifica a luta contra o racismo em prol da paz intraclasse entre trabalhadores e trabalhadoras negras e brancas. Seguindo essa lógica, nós devemos unir com base em questões econômicas e evitar problemas “controversos” e “sectaristas” da raça. Entretanto, como pretendo expor logo adiante, essa é na verdade uma posição racista e escapista e demonstra que eles não possuem de nenhum modo alguma estrutura moral.
Trata-se de uma desculpa esfarrapada na tentativa de alegar que a “classe trabalhadora” está sendo oprimida sem apontar para o fato de que não existe uma classe trabalhadora monolítica no país – e que nunca existiu. Sempre houve uma classe trabalhadora afro-americana brutalizada e explorada, a começar pela escravidão, passando pelos períodos econômicos agrário e industrial, chegando na chamada era da informação. A mão-de-obra negra sempre esteve sujeita à opressão racial em adição à luta dos trabalhadores e trabalhadoras contra o governo do capital.
É um reducionismo do pior tipo alegar que não há diferenças nas posições sociais da classe trabalhadora negra, que não há uma opressão especial, como o grupo Workers Solidarity Alliance (Aliança Solidária dos Trabalhadores) faz. Em um artigo publicado em Ideas and Action (Ideias e Ações), o jornal político da WSA, um escritor declarou que via nenhuma diferença ou “nada em especial”, o citando, entre pessoas canhotas e as condições de pessoas afro-americanas. Mas a questão mais infame da publicação estava em um artigo que ocupava uma página inteira na 13ª edição, impressa em 1990, chamada “White Workers and Racism” (Trabalhadores Brancos e Racismo) e escrito em resposta ao assassinato racista de Yusuf Hawkins em Nova Iorque.
Da forma mais repugnante possível, o artigo tenta equiparar “ataques contra brancos inocentes por juventudes de minorias étnicas” com o assassinato racista de Hawkins. Neil Farber (um pseudônimo de um membro não-identificado da WSA) fala sobre “racismo e demagogos em ambos os lados”, uma clássica desculpa da classe-média branca. Ele nega haver algo como o privilégio da pele branca, dizendo que trata-se apenas de uma criação de setores da esquerda na década de 1960. Nós devemos assumir que ele está falando do Black Panther Party (Partido dos Panteras Negras) ou do sindicato revolucionário League of Revolutionary Black Workers (Liga dos Trabalhadores Revolucionários Negros), apesar dele tentar afirmar que está falando sobre indivíduos radicais brancos.
O autor afirma ainda que o relativo padrão de vida superior é devido às “lutas dos trabalhadores”, como se trabalhadores brancos tivessem “ganhado” seu espólio por terem lutado contra o patrão. Falso. O padrão de vida da classe-média branca só é possível por conta da exploração disseminada de países colonizados e da escravidão e da continuação da ampla exploração de trabalhadores e trabalhadoras afro-americanas e não-brancas.
Esses absurdos escritos por Farber são coroados pela declaração do movimento anarco-sindicalista de que ele “sempre” apoiou as lutas de trabalhadores e trabalhadoras oprimidas. Isso é uma mentira. O movimento anarquista em geral nunca forneceu apoio à luta negra ou se envolveu em movimentos antirracistas. A WSA não é uma exceção. Eles estão apenas agora começando a assim fazer.
A negação do privilégio da pele branca é um tipo de obscurantismo o qual a esquerda branca no geral, e particularmente os anarquistas, é responsável pela sua existência. Esse obscurantismo, ou o obscurecer da concretitude da opressão negra, foi também denominada de “ponto cego branco” por radicais como Noel Ignatiey, organizador e teórico de longa data sobre questões da raça e da classe.
Mas em adição ao ocultamento de problemáticas econômicas, há um tipo de escapismo eclético dentro do anarquismo estadunidense que finge que a opressão de gênero, a opressão homofóbica, a exploração de classe e outras opressões, ou outras contradições dentre a nacionalidade branca, está a par ou é até mesmo mais importante do que a supremacia branca. Esses indivíduos são geralmente pessoas que aderem à comportamentalização, ou tentam confinar impecavelmente as dinâmicas do racismo como uma questão secundária ou como uma questão política singular, sendo apenas um outro “ismo”.
Isso reflete-se em seus movimentos – movimentos majoritariamente brancos contra o “fascismo” ou o que eles chamam de racismo, habitualmente organizações KKK/Nazis em bruto. Eles nunca lidam com o racismo institucional ou com o diferencial da supremacia branca na qualidade de vida desse país. São bastantes pueris, idealísticos e emocionais, e certamente não fazem nenhum bem à pessoas negras ou não-brancas. Nós não estamos mais protegidos do fascismo por conta desses bons samaritanos brancos. Eles são parte do problema, não parte da solução.
Quem sabe será possível para o cenário anarquista estadunidense coexistir com, muito menos trabalhar em conjunto com um movimento negro anti-autoritário há pouco emergente? Algo que os anarquistas brancos devem compreender é que não trata-se meramente de conseguir que pessoas negras ou não-brancas se juntem a associações anarquistas apenas para dizer que eles agora possuem uma face negra. Nós devemos trabalhar para construir uma sociedade não-racista; devemos, assim, ter uma unidade de princípios.
Tradução colaborativa da Rede de Informações Anarquistas. Texto original em inglês.