O perigo de ser mulher e negra na luta por direitos no Brasil

Apesar das transformações nas condições de vida e papel das mulheres em todo o mundo, em especial a partir dos anos de 1960, a mulher negra continua vivendo uma situação marcada pela dupla discriminação: ser mulher em uma sociedade machista, e ser negra numa sociedade racista (MUNANGA, 2006).

Ser mulher negra no Brasil significa constante perigo, principalmente na luta por direitos, contra o machismo, patriarcado, os recortes de classe e a opressão da mulher branca, presente cotidianamente, instituído, naturalizado, acordado. Ser mulher negra no Brasil é passar uma vida inteira tentando descobrir se você está sendo inferiorizada por ser mulher ou por ser negra, e no final percebe-se que por ambas. No Brasil o racismo não é explícito, devido a imposição de um flagelo histórico construído por uma elite branca, o mito da democracia racial. Construído apenas para ser enfiado goela abaixo e silenciar, distorcer e tornar mansos e passivos os que são discriminados, porque é mais importante combater a ideia de que racismo existe, do que combater propriamente o racismo.

Nesse contexto, ser mulher negra é viver uma negritude mutilada emocionalmente e fisicamente desde o nascer até a morte. A questão racial é tratada como mero elemento secundário, não sendo enfrentada com responsabilidade. Alimentando o silencioso acirramento, vivido atualmente nas ruas, faculdades, escolas, trabalho e redes sociais, crescendo de forma contundente e feroz, devido a força da opressão massificada contra os negros e negras. O Estado brasileiro, ao fingir que não vê tal situação, colabora amistosamente em suas instituições na manutenção dessas condições. Mantendo negras e negros como escravos modernos nos porões da sociedade, encarcerados em guetos, favelas e periferias sociais, a carne negra continua sendo vendida, destroçada e consumida de forma mais barata possível.

A carne mais barata do mercado sempre foi a carne negra, principalmente a carne da mulher negra. É a carne de todas as Thamires Fortunato, é a carne de todas as Miriam França. Essas mulheres-meninas negras carregam toda a ancestralidade mutilada e violada de quatrocentos anos de escravização do povo negro no Brasil. O que ambas têm em comum para estarem nesse texto? O fato de serem negras, mulheres de origem pobre. Ambas carregam em si toda carga simbólica que o Estado brasileiro sempre repudiou: a negritude. A grande massa populacional brasileira é negra, e isso o governo sempre lutou para eliminar, fomentando políticas de embranquecimento – é fato registrado nos anais da construção da sociedade brasileira.

Thamires sendo levada pela PM após ser brutalmente agredida, arrastada e ter suas roupas rasgadas.
Thamires sendo levada pela PM após ser brutalmente agredida, arrastada e ter suas roupas rasgadas.

Thamires Fortunato, estudante de filosofia da UFF, passou por uma repetição naturalizada cruelmente na história de ancestralidade negra no Brasil, agarrada brutalmente pela Polícia Militar como uma serva que não se sujeita aos poderes, mandos e desmandos dos senhores da Casa Grande. Foi violada física e emocionalmente – como indicativo de sua condição de negra e servir de exemplo de qual lugar na sociedade deveria ocupar. Thamires foi jogada ao chão, arrastada pelos cabelos, teve suas roupas rasgadas, seu corpo ferido, sua carne friccionada no solo por enormes homens ou melhor, capangas do Estado, que molestaram sua dignidade emocional e física. Qual o motivo? Ser negra e mulher na luta por direitos sociais que lhes são negados historicamente.

Não teve defesa, somente ataques. Apenas uma menina sem forças, abatida como caça, arrastada e dependurada como tecido esfarrapado para dentro de uma viatura cheia de homens. Foi ameaçada, socada na tentativa de quebrarem seus membros – tudo isso dito em alto som. Thamires estava sendo usada como objeto de exemplificação do que poderia ocorrer aos demais negros e negras que reagissem. Ah! A história se repete, lembrando que a corporação da Policia Militar tem em sua hierarquia Comandos Superiores que disseminam a ideologia Nazista pelos Quartéis. Creio que isso já amplia o quadro de compreensão da história atual do Brasil. Essa corajosa mulher/menina negra foi forte, lutou diante de tanta dor imposta, dores físicas e emocionais, que continuaram dentro de uma Delegacia misógina, machista e racista, ou seja, a senzala da modernidade. Thamires viu o tronco dos açoites, a chibata da modernidade. Sua carne foi a mais barata no dia 09 de Janeiro de 2015 na mão dos feitores.

A vivência de Thamires Fortunato vai de encontro ao de Miriam França, não havendo nenhuma coincidência, apenas fatos, ambas vítimas da violação, perseguição, massacre e expropriação pelo Estado brasileiro. É histórico no Brasil a polícia militar, o governo e a sociedade usarem sempre o artificio de jogar a culpa de suas mazelas no povo negro e negra, sentenciado e silenciado-os, para depois receber um julgamento e ter direito a uma investigação. É nessa ordem mesmo. Miriam foi encarcerada pelo simples fato de ser negra, sem provas de que tenha cometido algum delito – tendo seus direitos constitucionais vilipendiados pela magistratura racista do País.

Mirian França foi violada emocionalmente, humilhada e cerceada de seus direitos básicos de defesa – inocente até que se prove ao contrário. Ser negra ou negro no Brasil já os tornam culpados. Vejam que mesmo Mirian atingindo um elevado grau de estudo, estando em igualdade educativa em relação a inúmeras mulheres brancas, foi submetida a marginalização através dos códices racistas subliminares. A situação da mulher negra no Brasil de hoje manifesta um prolongamento da sua realidade vivida no período de escravidão, com poucas mudanças, carregando as desvantagens do sistema injusto e racista do país, e as poucas que ascendem socialmente não conseguem, mesmo assim, romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial que se estruturam de forma velada. A jovem Miriam foi sentenciada pela polícia, sem julgamento e investigação, pela morte de Gaia uma turista italiana branca. Agora encontra-se em liberdade, graças à revogação de sua prisão. Porém, deverá permanecer no Ceará por 30 dias, tempo necessário para que, segundo declaração da polícia à imprensa, saia o resultado da perícia.

A luta pelo direito de existir, pelo respeito integral e o orgulho de sua negritude as tornam perigosas, indesejáveis e passiveis de serem eliminadas através de inúmeros artífices nas ruas desse país ainda escravocrata. A resistência cultural, social e emocional incomoda, como sempre, a elite branca, que sempre almejou ser “européia”. Mulheres Negras incomodam, porque gestam uma força contínua, suas vozes ecoam ao longo, seja baixo ou em alto bom som, não se rendem, não adormecem, não se dão por derrotadas, não conhecem o significado dessa palavra, são perigosas por que sua batalha é ancestral, nascem lutando e fortes como se soubessem sobre o que as aguardam. E certamente não se calarão, jamais irão se recuar, nunca tiveram opção e seguir em frente sempre foi a única condição.

Nota da R.I.A sobre as recentes questões políticas da mobilização contra o aumento das passagens no Rio de Janeiro

É com desalento que nós, enquanto rede midiativista livre e autônoma, vemos e vivenciamos as disputas egoicas que se desenrolam no campo político do Rio de Janeiro. Mesmo com a experiência das revoltas de 2013, onde tornou-se claro que somente a pressão popular nas ruas pode ser capaz de modificar nossa realidade, o que percebemos é a insistência de algumas organizações em se afirmarem como a voz máxima de um povo que mal sabe que as mesmas existem. O século XIX já se foi e aos poucos algumas nuances do passado vão se desvanecendo e dando espaço para novas formas de pensar, agir e, sobretudo, lutar. Afinal, é a luta política cotidiana por uma sociedade justa e livre que nos mantém vivas e vivos, a luta sem os ismos, em especial os ismos fora do lugar, importados de outros tempos e de outras realidades alheios ao contexto local de opressões. Reivindicamos, assim, a busca por uma construção coletiva da liberdade e não um direcionamento a ela, a luta que cada vez mais nos desapega de toda inércia social e que prossegue junto com os de baixo, porque somos os de baixo.

Mas é com prazer que ainda sentimos o ímpeto libertário batendo em nosso peito (e como bate!), suas utopias seguem alimentando corações que já não suportam mais os fracassos das políticas sectárias e do vanguardismo que busca medir quem entre nós é o mais e o menos revolucionário, o que os tornam cegos para as resistências efetivas que tomam lugar cotidianamente nas favelas, nas periferias e nas ruas de nossa sociedade. Cada vez mais essas organizações se distanciam da população, de quem vive na pele o dia-a-dia da exploração assalariada e da prisão social. Precisamos de uma nova arte para pessoas reais, e não insistir em seres fictícios que o imaginário vanguardista julga existir.

É nesse sentido que entendemos o midiativismo como ferramenta de potencialização de quem é silenciada e silenciado, de todas as pessoas cuja fala é abafada; entendemos o midiativismo como ferramenta de construção da liberdade, onde o indivíduo libertário se faz a partir de suas próprias escolhas e não como forma de condução das massas.

Repudiamos toda forma de verticalidade, toda forma de protagonismo vanguardista; repudiamos partidos políticos e seus métodos centralizadores; repudiamos o uso da mídia como forma de manipulação política, o desrespeito ideológico que reproduz formas sectárias que são análogas ao próprio modo de agir do capital; repudiamos o Capitalismo e o Estado, a perseguição política e a criminalização da pobreza, entendendo que a última é um dos grandes males sociais das últimas décadas, condição imperativa que nos inclina de coração e mente abertas a cada dia mais nos sacrificar pela luta libertária e libertadora.

Vemos com enorme tristeza alguns coletivos compactuando e reproduzindo calúnias infundadas contra movimentos que tocam importantes lutas populares, no caso, o Movimento Passe Livre do Rio de Janeiro, calúnias essas fabricadas pelas organizações sectárias e vanguardistas que denunciamos anteriormente. O espanto é perceber que a difamação do MPL-Rio segue lógica similar à forma como a mídia burguesa opera para desmobilizar e criminalizar as lutas populares. Pensam eles estar combatendo o governismo que se infiltra nos espaços de mobilização libertária, mas ao invés de boicotar essa invasão com base na construção organizacional autônoma e no debate político, preferem berrar aos microfones autoritarismos que pedem pela expulsão agressiva de pessoas em espaços que se pretendem abertos.

Lembramos que no I Encontro contra o Aumento da Passagem, alguns homens membros dessas organizações vanguardistas vociferaram agressivamente contra uma pessoa que, apesar de ser afiliada a um partido governista, era mulher. Não nos espanta o machismo contido nas ações de militantes que reproduzem práticas autoritárias. O agravante é que no raiar do dia, o papel do governismo de se infiltrar nas lutas populares com o intuito de desmobilizá-las acaba sendo efetuado por esses supostos revolucionários quando estes decidem caluniar e difamar aqueles com quem eles deveriam estar marchando ombro-a-ombro. Não bastasse a cooptação partidária, a criminalização política e a perseguição midiática, ainda temos que lidar com fogo amigo.

Estamos aqui para contribuir, criar e construir a descentralização dos meios de comunicação e informação para uma sociedade livre e para a autogestão socioeconômica. Priorizamos métodos que contemplem quem não é ouvido, não excluindo qualquer pessoa por divergências ideológicas, mas sim trabalhando de maneira fraternal, horizontal e mútua, desde que respeitadas os princípios básicos da luta libertária.

No mais, esperamos nos vermos nas ruas, junto à população. Nosso inimigo está do outro lado das barricadas!

p1060575            “A las barricadas! A las barricadas!”